LENDA URBANA- O LEITE DA VIRGEM
Júlia tinha dezesseis anos quando Cartago, a cidade em que ela morava, foi invadida por uma horda de bárbaros guerreiros, conhecidos como vândalos. Isso ocorreu no ano 439 da Era Cristã. Os vândalos arrasaram a cidade e mataram a maioria dos seus habitantes. Os que não morreram foram aprisionados e vendidos como escravos.
Júlia foi um deles. Aprisionada e levada para o mercado de escravos, acabou adquirida por um comerciante sírio, que para sua sorte, era cristão como ela. Esse mercador era um bom homem, muito piedoso e firme na fé em Cristo. Tratou a jovem Júlia como se fosse sua filha e sempre a levava em suas muitas viagens pelo território do então claudicante Império Romano, que já nessa época estava sendo rapidamente destruído pelos bárbaros vindos da Europa central e do norte.
O amo de Julia, em suas viagens comerciais pelo Império, aproveitava para levar também a palavra de Cristo aos povos que visitava. Era um competente missionário cristão. Assim, a jovem, que constantemente viajava com ele, tornou-se também uma eficiente propagandista da fé e da doutrina que Jesus Cristo inaugurou e Paulo de Tarso, quatro séculos antes, havia disseminado por todo o mundo romano.
Nessa época, em virtude da conversão do Imperador Constantino, ocorrida cerca de um século antes, o Cristianismo já era a religião mais professada no Império Romano. Mas em muitas regiões ainda dominadas por Roma, as populações locais não haviam abandonado suas antigas crenças pagãs, e não raros eram os conflitos entre os missionários cristãos e as autoridades locais, que professavam os antigos credos e as velhas práticas religiosas de seus ancestrais.
Uma dessas regiões era a ilha de Córsega, onde se cultivavam velhas tradições religiosas pagãs que comportavam práticas condenadas pela Igreja de Roma. Algumas dessas cerimônias litúrgicas, praticadas pelos corsos, envolviam orgias sexuais, desenvolvidas em forma de ritos pagãos. Eram os chamados ritos da fertilidade, reminiscências das antigas iniciações conhecidas como Mistérios, que na antiguidade eram praticadas em várias regiões, com a finalidade de honrar as divindades da natureza, para que elas favorecem as colheitas e garantissem a prosperidade dos povos que as praticavam.
Júlia, em suas pregações na ilha, condenou violentamente essas práticas. Pregando com firmeza e coragem em praça pública, ela concitou os corsos a abandonarem seus ritos pagãos e abraçarem o Cristianismo. Muitos acreditaram nela, principalmente as pessoas mais simples. Em consequência, os templos onde os rituais eram praticados começaram a ficar vazios.
Não é difícil imaginar um cenário desses. Seja qual for a religião, e seja qual for o lugar e o tempo, templos vazios significam menos recursos para a manutenção das pessoas que ministram seus sacramentos e administram seus bens. Interesses contrariados geram conflitos em qualquer lugar e tempo. Não há revolucionário mais perigoso que aquele que perde seu ganha pão e se vê contrariado em suas crenças. E pior do que isso, vê o seu lugar sendo ocupado por outro. Assim, não demorou muito para que Júlia fosse aprisionada e levada perante as autoridades locais, acusada de subversão. O pretor local, um sujeito chamado Félix, que ainda julgava as querelas públicas de acordo com as leis de Roma, logo viu que ali se tratava de uma questão religiosa. Júlia não tinha cometido nenhum crime, pois desde o Édito de Milão, promulgado em 313 pelo Imperador Constantino, o estado não se envolvia mais em questões religiosas, sendo livre o exercício da religião em todo o território romano. Mas havia ai um grave problema político a contornar. O pretor romano da ilha sabia que se não tomasse nenhuma providência, poderia provocar uma séria rebelião na ilha, pois a maioria das pessoas influentes ali ainda eram pagãs. Assim, se legalmente não podia condenar Júlia, pois ela tinha o direito de pregar sua religião, não obstante era preciso apaziguar os poderosos barões locais, que exigiam sua punição. Sustentando que a querela não se tratava de uma questão de Estado, mas de uma causa que envolvia crenças locais, ele fez como Pilatos: lavou as mãos e entregou a jovem para ser julgada pelos próprios cidadãos locais.
Assim, após um sumário julgamento, feito em segredo e dirigido pelas próprias pessoas que a acusaram, foi dada à jovem donzela a seguinte alternativa: participar do ritual pagão, entregando seu corpo à orgia ritual, ou então a mutilação e a morte.
Júlia escolheu a segunda hipótese. Em consequência, ela foi condenada à morte. O rito da execução exigia que ela tivesse os seios cortados e atirados do alto do penhasco onde as cerimônias rituais se realizavam. Assim, a natureza não deixava de ter o seu sacrifício á fertilidade. Nada simboliza mais a fertilidade do que os seis de uma mulher.
Assim, a jovem teve os mamilos decepados e atirados penhasco abaixo.
Mas dos seios de Júlia saíram duas gotas de leite, que pingaram sobre o rochedo. E no lugar onde elas caíram, dois olhos de cristalina água brotaram imediatamente, formando uma fonte. A essa fonte, os habitantes da região chamaram de “Fonte de Juventa”, ou Fonte da Juventude.
Na tradição católica essa lenda ficou conhecida como a lenda de Santa Júlia de Cartago. Sua igreja, que existe ainda hoje, pode ser vista sobre o rochedo que emoldura a aldeia de Nonza, na Córsega.
Dizem também que quem tiver suficiente sensibilidade, poderá ver, no crepúsculo, uma linda jovem nua, sentada sobre umas das pedras que formam o enorme bloco rochoso onde a igreja foi construída. E de quem ela se agrada, oferece os belos seios, para que o feliz mortal deles beba o leite morno da virgem.
Afirmam também que esse leite miraculoso reverbera ao sol poente como raios refletidos em um lindo rubi; e quem tiver a felicidade de prová-lo, receberá a graça da saúde e da longevidade.
É claro que o pároco da igreja de Nonza, bem como a comunidade católica da cidade não demostram muita simpatia por essas histórias contadas a respeito da sua santa padroeira.
Dizem que são lendas pagãs, reminiscentes das antigas tradições, que os habitantes da ilha ainda guardam no inconsciente e teimosamente se recusam a renunciar. A versão oficial da lenda, adotada pela igreja, termina com o martírio da jovem e enfatiza a sua luta pela defesa da castidade e a sua crença na virtude da fé cristã. Contam, na verdade, outra história, na qual a jovem é martirizada a mando do cruel governador da Ilha, que ficou ofendido pelo fato de ela não querer participar dos ritos pagãos aos quais ele queria obrigá-la.
Não gostam da lenda do leite da virgem, que concede a eterna juventude aqueles que o provam, pois dizem que além de pagã, ela incorpora um elemento de sensualidade. Mas não se incomodam que os comerciantes da ilha incentivem os turistas para beber da água da fonte, que eles chamam de "leite da virgem". Um copinho custa cerca de cinco euros, pelo câmbio atual.
(Reeditadoi em 18-6-2014)
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 19/06/2014
Alterado em 19/06/2014