A VERDADEIRA IDENTIDADE
Todos no mundo reconhecem o belo como Belo,
E dessa forma sabem o que o Feio.
Todos no mundo reconhecem o bem como Bem,
E dessa forma, sabem o que é o Mal.
Assim, o Ser e o Não-Ser geram-se mutuamente.
O longo e o curto se delimitam,
O alto e o baixo se inclinam
O tom e o som se harmonizam
O antes e o depois seguem-se um ao outro.(..)
Tao Té Ching-Verso II
Diz a antiga sabedoria chinesa, expressa no Tao Te Ching, que para entendermos, de fato, o universo e suas razões, para saber o que ele é realmente, e o que ele quer de nós, temos que subjugar o nosso “eu”, mitigar os nossos desejos, suprimir o nosso ego até o limite do nada cósmico de onde viemos. Por que ali todas as identidades se fundem num único e indistinguível elemento: O Princípio que gerou todas as coisas.
O Budismo ensina que devemos limpar a mente de todas as formas universais, pois estas são apenas as projeções dos nossos desejos. Essas formas, que na verdade são arquétipos conformadores da nossa personalidade, nos impedem a união com o Principio, o todo amorfo que estava no início de tudo. Isso é o mesmo que despregar nossa mente de todos os apegos que a vida nos proporciona. Pois somente quando nenhum traço de matéria restar na nossa mente para contaminar a nossa alma - que é pura energia - ela poderá se alçar á gloria da existência eterna. Alguém poderia dizer que isso é puro espiritismo kardecista, mas não é: é budismo-zen, é taoísmo.
Na poesia da intuição taoísta e da mentepsicose budista encontramos traços das mais modernas teorias científicas. Pois o que dizem as modernas teses sobre a origem do universo? Nada mais que os sábios taoístas já diziam: que tudo que existe no universo estava condensado num único ponto de extrema densidade energética. Os taoístas chamavam esse ponto de Tao, o Princípio, os cientistas chamam de Singularidade.
E o que dizem os taoístas e os budistas-zen sobre a nossa própria visão de mundo? Que ele é uma “gestalt”, ou seja, ele é o que a nossa mente quer ver nele.
Quando olhamos o horizonte, o que vemos não é o horizonte, mas as formas que se destacam no seu fundo. O horizonte é o fundo, é o nada. Quanto mais tentamos vê-lo, mais ele se afasta dos nossos olhos. Se pudéssemos fixar nosso olhar no horizonte e ignorar as formas que contra ele se destacam e obstruem nossa visão, nós poderíamos realmente ver o que existe nele. Veríamos, como diz o Tao “ o rosto que tínhamos antes de termos nascido.”
O taoísmo não idealiza os conceitos de bem e mal. Bem e mal são os dois lados de uma moeda, e ela não existiria, não apresentaria qualquer valor se as duas faces não existissem. É diferente da doutrina judaico-cristã, na qual se sublima o conceito do bem e toda a luta do espírito deve ser travada no sentido de eliminar o mal e glorificar o bem. Dessa forma identifica o bem com o positivo e o mal com o negativo. Para atingir a perfeição o espirito humano deve mitigar o negativo- o mal- e cultivar o positivo, o bem.
Para os cultores do Tao essa é uma fórmula incompreensível. Como se pode aproveitar uma corrente elétrica que só tem um polo? Como se pode dirigir um espírito em uma única direção? Como se pode manter equilíbrio com uma única força empurrando só para um lado?
Por isso, nada que seja separado do seu contexto pode ser entendido de verdade, porque o ser só existe na sua integridade relacional. Uma rosa separada do seu caule ainda é uma rosa? Uma tartaruga sem seu casco ainda é uma tartaruga? Uma faca sem gume, ou que nada tenha para cortar ainda é uma faca? Uma casa onde ninguém habita ainda é uma casa?
A Vênus de Milo é bela? Alguém poderia dizer que é apenas o busto de uma mulher mutilada. Se pensássemos nela como uma criatura de carne e osso, que impressão nos causaria uma mulher sem braços? Jesus Cristo era um homem bom? Os sacerdotes judeus e as autoridades romanas não devem ter pensado que era, pois o mataram.
O que são o bem e o mal, o feio e o bonito, o exato e o falso, o ínfimo e o imenso? São apenas conceitos obtidos a partir da nossa capacidade de destacar no horizonte certos atributos que colamos ás coisas e às pessoas. Quando algo é bom ou ruim? Quando nos atende, ou desatende, em algum aspecto. Quando algo é bonito ou feio? Quando agrada, ou não agrada, aos nossos olhos. Mas, no entanto, se percorrermos toda a linha que vai de um a outro conceito, ou seja, toda a linha do horizonte que vai do bem ao mal, do feio ao bonito, do verdadeiro ao falso, veremos que essa dualidade é, na verdade, um círculo que começa e termina em qualquer ponto da linha que o demarca, e é impossível determinar onde começa um e o outro termina. E nesse sentido, não há feio nem bonito, nem claro ou escuro, nem quente ou frio, nem exato ou falso.
Nem o bem ou o mal. Somente a tábua de valores que nós criamos para nos situarmos dentro dessa escala.
Toda vez que emitimos conceitos estamos “recortando” figuras no horizonte. Mas as figuras que recortamos não são o horizonte. São apenas imagens dos nossos próprios desejos que nele projetamos. No horizonte das nossas almas não existem pontos extremos. Nós é que os colocamos lá para evitar que nos percamos no infinito de nós mesmos. Todavia, como diz o Tao, é além do horizonte de nós mesmos que encontraremos a nossa verdadeira identidade.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 24/07/2014