João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


BRINCADEIRA MACABRA
 
Minha mãe dizia que brincadeira tem hora. Eu devia ter ouvido o conselho dela. Se tivesse ouvido não carregaria pela vida toda este sentimento de culpa, que até hoje, já quase perto da hora de devolver a alma que me foi emprestada, ainda carrego como se fosse uma corcova que aderiu a mim e me pesa nas costas, tanto, tanto, que ando encurvado como um corcunda psicológico.
Eu fui o culpado pela morte do meu melhor amigo. Pois fui eu que inventei aquela brincadeira idiota que tirou a vida dele. Isso já faz mais de cinquenta anos, mas para mim é como se fosse ontem, pois toda vez que me lembro daquele instante, eu vivo novamente aquela experiência terrível, e a cada vez que revivo, me sinto mais culpado.
Éramos dois garotos muito arteiros. Éramos como irmãos. Desde a escola primária, quando nos conhecemos, andávamos juntos para todos os lados. Quem brigasse com um brigava com o outro. Se um não fosse escalado para jogar no time da rua, o outro também não jogava. Quem quisesse encontrar um podia ter certeza que também ia encontrar o outro. Era sempre o Neguita e eu. Eu e o Neguita.
Até o dia que resolvemos fazer aquela brincadeira idiota com o Tonhão. O Tonhão era um cara mau. O bandidão do bairro. Todo mundo sabia disso e ninguém se metia com ele. O Tonhão tinha uma amante chamada Helena, prostituta bastante conhecida na cidade. Ele era o cafetão dela. Era ela quem o sustentava. Em troca, só recebia porrada. O Tonhão batia nela todo dia. Coisa de mulher. Naquele tempo havia um ditado, dizem que cunhado por Nelson Rodrigues, que dizia que mulher gosta de apanhar. Mulher de malandro ainda mais. Era uma idiotice herética, mas tinha, e ainda tem homem que acredita nisso. Talvez algumas mulheres também, pois conheço algumas que apanham de seus homens, mas nunca arrumam coragem para largá-los.
A Helena não. Ela gostava mesmo do Tonhão. Enquanto o amor durou ela aguentou as porradas. Mas não tem amor que resista a tanto desrespeito. Mesmo quando a gente já perdeu o respeito por si mesmo. Então, um dia a Helena se cansou de apanhar e largou o Tonhão. Deu no que deu. Ele não se conformou em perder o sustento e foi procurá-la. Inventou de tudo para que ela voltasse. Fez promessas, jurou amor, disse que ia trabalhar, que ia se casar com ela e ela ia poder deixar aquela vida, enfim, tudo que um sujeito faz numa ocasião dessas. Mas a Helena sabia com quem estava lidando. Provavelmente aquilo já acontecera outras vezes. Ela já estava calejada. Ficou irredutível. Então eles brigaram. Pela primeira vez ela reagiu á agressão. Meteu as unhas na cara dele. Briga feia. Ela correu para a cozinha do barraco onde estava morando e puxou a gaveta do armário em busca de uma faca. Ele percebeu a manobra e foi mais rápido. Sacou o punhal que sempre levava consigo e lhe deu três estocadas certeiras no peito. No dia seguinte, no bairro não se falava de outra coisa: o Tonhão matou a Helena.
Ele deve ter arrumado um bom advogado porque não ficou mais que um mês na cadeia. Crime passional, disseram que foi. Afinal, houve também quem dissesse que não se perdera nada, pois a mulher que ele matara era uma prostituta, uma mulher perdida que envergonhava a espécie. Por conta disso todo mundo esqueceu a coisa muito depressa.
Menos nós. O Neguita e eu. Por isso resolvemos fazer aquela brincadeira boba com o Tonhão. Ele morava em um barraco, na beira de um córrego. Para chegar no barraco ele tinha que passar por um terreno baldio, onde havia um barranco alto, cheio de moitas, também altas. Então nós arrumamos uma folha grande de cartolina preta e pintamos nela, com tinta branca, um esqueleto, que recortamos e colamos em um cavalete de bambú. E fixamos o esqueleto em cima de um carrinho de rolimãs, no alto do barranco. Com uma corda amarrada nele nós, escondidos atrás de uma das moitas, o movimentávamos, dando a impressão que o esqueleto estava andando. Três velas acesas também faziam parte da engenhoca.
A idéia era dar um susto no Tonhão. Ele não ia pegar a gente, porque até conseguir subir o barranco nós já estaríamos longe. A moita onde estávamos escondidos ficava a mais de vinte metros do caminho. A noite estava escura como breu. Oculta entre as moitas, a nossa engenhoca, vista de longe, parecia mesmo um espectro. E quando ela se movimentava, parecia, de fato, uma assombração.
O único som que se ouvia era a serenata dos grilos. Ficamos atrás da moita esperando o Tonhão passar. A ideia era quando ele passasse, o Neguita chamá-lo pelo nome, imitando a voz de um fantasma, ou tentando imitar, do jeito que a gente costumava ver no cinema. Enquanto isso eu puxava a corda, movimentando a engenhoca.
“ Tonhãooooooo, você me mat....”
Não deu nem tempo do Neguita terminar a frase. Um clarão iluminou a noite e um estampido cobriu a voz dos grilos. O Neguita caiu sem um gemido, a mão no peito, uma rosa de sangue a desabrochar por entre os dedos. Nunca corri tão rápido como naquela noite. E nunca tinha sentido tanto medo também. Aliás, esse medo é outra coisa que nunca mais me abandonou.
O Tonhão foi preso e pegou doze anos. O meu testemunho ajudou a condená-lo. Ele foi condenado mais pelos antecedentes do que pela morte do Neguita, creio eu. Confesso que até menti um pouco, dizendo para o delegado que a brincadeira não era para ele, mas para outros amigos que costumavam passar por ali. Mas desde então me senti tão condenado quanto ele. Punido pela culpa de ter inventado aquela brincadeira idiota e pelo medo de que o Tonhão saísse da cadeia e quisesse se vingar de mim. Graças a Deus ele morreu na cadeia, assassinado por outro preso. Desse medo eu me libertei, mas da culpa não. Aquele lugar, onde fizemos aquela brincadeira irresponsável, hoje é uma rua cheia de belas casas. Mas quando passo por lá, tenho a impressão de que o espírito do Neguita ainda está ali, no mesmo lugar onde ele tombou. E que ele ainda chama por um nome, sem conseguir completar a frase. Só que não é Tonhão o nome que ele chama. É o meu. E que ele só vai poder completar essa frase no dia em que estivermos juntos de novo.
 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 17/10/2014


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