O BO|ÊMIO DEFUNTO
Encontrei tempos atrás um antigo camarada, o Vadico. Me deu uma pena danada dele, porque ele tinha virado morador de rua. Seu aspecto de bêbado pedinte não deixava dúvidas. Fazia muito tempo que a gente não se via, mas ele me reconheceu de pronto.
─ Joãozinho, meu amigão! Como é que você está?
Ele veio para cima de mim com os braços abertos.
Levei algum tempo para reconhecê-lo, mas logo me lembrei do meu velho amigo de juventude. Vadico, um garoto que andava sempre bem vestido, cabelo engomado com brilhantina, bom papo. E muito bom cantor.
Senti uma espécie de mal estar indefinível, que se espalhou pelo meu corpo como se minha energia vital estivesse sendo drenada. Quis me afastar do seu abraço, mas não deu. Um abraço frio, de corpo que parecia já ter perdido todo o calor de um organismo. Uma péssima sensação. Computei o fato ao deplorável estado em que ele se encontrava.
─ Eu estou ótimo ─ respondi, tomando cuidado para não devolver a pergunta. Logo vi que ele não ia poder responder que estava bem. Não com aquela aparência miserável de mendigo. E se fizesse, eu saberia que ele estava mentindo.
O rapaz estava que era um trapo só. Sujo, fedorento, cabelo desgrenhado, roupas todas puídas e remendadas aqui e acolá. E nos olhos aquela vermelhidão dos alcoólatras contumazes. Estava parado na porta de uma padaria. Era cerca das oito da manhã e eu tinha ido lá para comprar pão.
─ Vadico, meu velho, há quanto tempo não o vejo. O que você anda fazendo na vida? Perguntei mais por interesse do que por curiosidade, esquecendo a minha prudência anterior. Eu já sabia a resposta.
─ Ando por aí ─ respondeu, com um sorriso estranho.
“ Pelo visto, só enchendo a cara,” pensei. Mas só pensei e não deixei a língua articular o pensamento. O cheiro de cachaça barata que ele exalava, já naquela hora da manhã, não deixava dúvidas. Ele, além de morador de rua, se tornara alcóolatra. Mas eu não queria magoá-lo. Era um amigo da minha juventude, que eu não via há mais de dez anos.
─ Ainda gosta de cantar? ─ perguntei, só para desviar a conversa para um tema mais agradável.
─ Se gosto de cantar? Você pergunta se ainda gosto de cantar? Escuta só: “ Boemia, aqui me tens de regresso/ E suplicante te peço.../ E ele cantou, em capela, toda a velha canção do Adelino Moreira, que o Nelson Gonçalves imortalizou.
As lágrimas rolavam dos olhos vermelhos dele enquanto cantava. A minha tristeza aumentou. Relembrei as nossas noites de serestas pelos bares da cidade. A voz ainda era a mesma. Não havia se deteriorado como o corpo.
─ Caramba. " A Volta do Boêmio”. Você ainda se lembra dessa música? Você sabia cantá-la muito bem ─ respondi.
E isso não foi nenhuma gentileza da minha parte. Ele cantava bem mesmo. Aliás, era uma das coisas que ancorava a amizade da gente. O nosso gosto comum pela cerveja e pela cantoria. Principalmente músicas da velha guarda. Nas noites de sexta e sábado, especialmente, a gente andava pela cidade, parando nos bares para uma cervejinha. Se aparecesse alguém com um violão, nós só íamos casa quando o dia clareava.
Boêmios, seresteiros, notívagos, ou simplesmente pinguços, não importava o carimbo que nos davam. Éramos felizes. Éramos jovens e tudo que fazíamos parecia certo.
Olhei para o Vadico e dei graças á Deus por ter mudado de idéia a respeito da vida. Por ter acordado um dia com aquele gosto amargo na boca e a certeza de que aquela vida não ia me levar a nada. Ou melhor, levaria a um nada doloroso, que é pior do que um nada sem dor nem prazer, nem sentimento de qualquer espécie, que é o que sobra para aqueles que passaram a vida toda sem comprometimento com coisa alguma. Por isso larguei a boemia, arrumei emprego fixo, estudei, constitui família. Virei cidadão comprometido. Parei de andar pelos bares noturnos e cantar, só no banheiro. Também não fazia falta nenhuma. Nunca fui bom cantor mesmo. O Vadico era.
─ Vem. Me paga uma pinga ─ disse o Vadico, me pegando pelo braço e arrastando-me para dentro da .padaria
─ Vadico, Vadico. Você não prefere uma média com pão e manteiga? ─ perguntei, pensando no estado etílico que ele já apresentava naquela hora.
─ Ainda não tomei o meu primeiro gole do dia ─ disse ele.
─ Não sei, não ─ respondi. ─ Não gosto de ver você assim ─ disse eu, finalmente, abandonando a minha postura politicamente correta, de não querer magoar o meu velho amigo, demostrando pena pelo seu lamentável estado. Mesmo naquela situação imaginei que o Vadico ainda devia possuir alguma autoestima.
As duas lágrimas que haviam saído dos seus olhos vermelhos foram seguidas por outras duas mais grossas.
─ Eu só quero uma birita ─ disse ele enxugando os olhos vermelhos com a manga rota e encardida da camisa.
─ Cachaça a esta hora? Isso vai acabar matando você, cara. Isso é um veneno ─ disse eu, com pouca convicção na voz, pois já sabia que o argumento não ia impressioná-lo. Não impressionou mesmo, mas eu senti uma estranha sensação de tristeza na resposta que ele deu. Uma resposta que me magoou até o fundo da alma e fez um arrepio brotar na sola do meu pé e percorrer minha espinha, até o alto do couro cabeludo. E, no entanto, não havia nada de estranho no que ele disse.
─ Gostaria que me tivessem dito isso há uns dois anos atrás ─ .Eu ainda estaria vivo.
Não gostei da metáfora. Ensaei alguma para dizer, algo assim como, enquanto há vida há esperança, mas a frase não saiu. Ele percebeu o meu constrangimento e me devolveu um simulacro de sorriso, sarcástico e meio sinistro.
Só então me dei conta que era presença física dele que me provocava aquele mal estar. Era assim como um horror sem causa, uma queda na energia vital, como aquela que se tem quando uma anemia profunda toma conta do nosso organismo. Então, para me livrar logo daquele incômodo que a presença dele causava em mim, fui com ele ao balcão e paguei a pinga que ele, praticamente tomou de um gole só, como se fosse um viajante no deserto, tomando um copo de água.
─ A gente se vê qualquer dia desses ─ disse ele, agradecendo e saindo.
─ Tchau. Te cuida! ─ respondi, intimamente aliviado por se livrar daquela presença insalubre. Suspirei aliviado, mas não me livrei daquela sensação esquisita que a sua presença me trouxe. E ela está ancorada em mim até agora, pois sempre me vem quando me lembro desse meu encontro com ele.
Nunca mais o vi. A única coisa que soube dele depois disso foi que eo Vadico havia sido encontrado morto na porta de uma padaria e fora enterrado como indigente. Quem me disse isso foi o Peixoto, outro amigo nosso daqueles tempos, que também cultivou, como nós, a boemia da cidade. Ele trabalhava no necrotério e assistiu ao enterro do Vadico. Ele era a única pessoa presente, além dos coveiros.
Isso não me estranhou. Depois que eu vira no que o meu amigo se tornara, eu tinha a certeza de que mais dia, menos dia, alguém ia encontrá-lo morto em uma calçada qualquer da cidade. Aliás, ele já cheirava a cadáver. Depois que o Peixoto me contou isso senti uma certa culpa por ter pago aquela pinga para ele. Devia ter insistido na média com pãe e manteiga. Pagando cachaça para ele era como se eu tivesse colaborado para a morte prematura dele. Fui ao cemitério visitar o túmulo dele, segundo a indicaão que o Peixoto me deu. Só uma tosca cruz numa cova simples marcava o local. Alguém, talvez, o próprio Peixoto havia escrito o apelido dele na cruz. Vadico. Acho que ninguém sabia o verdadeiro nome dele. Talvez fosse Osvaldo, ou Valdir. Isso não importava mais. A única coisa que tirou o meu sono, e continua a atormentar o meu espírito até agora, foi a data que o Peixoto escreveu na cruz como sendo a da morte do Vadico. Era quase um ano antes daquele nosso encontro na porta da padaria. Que por sinal era a mesma onde nós havíamos nos encontrado e ele cantara a Volta do Boêmio, segundo eu soube. Eu havia pago uma pinga para um defunto. Quando me lembro disso aquele mesmo arrepio percorre todo o meu corpo, desde a sola do pé até os últimos fios de cabelo. Estou sentindo isso agora. Brrrrrr.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 21/10/2014
Alterado em 06/11/2014