João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


O OUTRO
Sabemos agora que toda partícula tem uma antipartícula, em relação á qual ela pode se anular.(...) Poderia existir um antimundo e antipessoas, feitas de antipartículas. No entanto, se você encontrar seu antieu, não aperte a mão dele! Vocês desapareceriam ambos num grande foco de luz.” 
                          Stephen W. Hawking- Uma Breve História do Tempo.          
 
 
 
                             O OUTRO



Sabemos agora que toda partícula tem uma antipartícula, em relação á qual ela pode se anular.(...) Poderia existir um antimundo e antipessoas, feitas de antipartículas. No entanto, se você encontrar seu antieu, não aperte a mão dele! Vocês desapareceriam ambos num grande foco de luz.” 
           Stephen W. Hawking- Uma Breve História do Tempo.         
 
 
Eu comecei a desconfiar que alguma coisa estava errada quando a minha mulher olhou para mim daquele jeito. Foi um olhar de desconfiança, de estranheza, de alguém que acaba de descobrir no companheiro de vinte anos uma faceta desconhecida.

Não, não era nenhuma coisa ruim. Pelo contrário, era coisa muito boa. Para ela, pelo menos. Vi isso na comunicação não verbal dela. Ela estava feliz com aquilo que parecia ser uma mudança qualitativa que estava ocorrendo em mim. Uma mudança para melhor, segundo ela.
Mas quando uma pessoa começa a se comportar de modo diferente do que sempre fez, o desconfiômetro é imediatamente ligado. Principalmente desconfiômetro de mulher. Geralmente elas acham que a gente está tendo um caso e por isso procura compensar em casa com mais carinho e atenção. Foi isso que ela me disse e eu, juro por Deus, não entendi bulhufas o que estava acontecendo, pois para mim, eu não estava fazendo nada diferente do que sempre fiz. Não sou perfeito, sei até que não sou um caráter sem mácula, mas fiel eu sempre fui.
Mas minha mulher jurava que sim, que andava mudado. Que eu tinha me tornado mais carinhoso, mais atencioso, mais gentil com ela e com as crianças. Solicitou o testemunho delas e elas confirmaram. Notara também que eu me tornara mais atencioso e simpático com as pessoas. Antes eu era um cavalo. Disse até que eu havia me tornado mais cuidadoso no trânsito. Que eu não avançara nenhum sinal amarelo no último mês, nem invadira faixa de pedestres, como costumava fazer. No entanto, eu tinha certeza que nada mudara com relação a isso. Pedestres continuavam a ser um estorvo para mim. Sinal amarelo uma zona de disputa onde o mais rápido vence. Eu ainda pensava e fazia as mesmas coisas que sempre fiz e não tinha lembrança de qualquer mudança no meu comportamento habitual. Mas ela insistia que sim. Que eu mudara. Que eu estava até mais viril no sexo. O que, depois de vinte anos, com a mesma mulher, reconheçamos, é uma façanha. Eu não acreditava muito nisso. Se fosse com outra mulher podia ser. Touro só é touro por que sempre troca de vaca. Pelo menos era isso que eu costumava dizer para mim mesmo, embora como já disse, eu não fosse muito de aventuras fora de casa. Não por virtude de caráter mas por uma razão muito prática: amantes custam caro e quase sempre dão dor de cabeça.
Mas todas as pessoas que conviviam comigo começaram a dizer a mesma coisa. Que eu estava mudado. Não fisicamente, é claro. Mas de personalidade. Que eu parecia estar mais jovial, mais inteligente, mais participativo, mais simpático, mais tudo isso e menos egoísta, menos egocêntrico, e coisas tais que eu nunca reconheci ser, mas que todo mundo parecia achar que eu estava sendo. E eu, na verdade, não via nada daquilo acontecendo em mim.
Salvo que eu estava me sentindo cada vez mais fraco, mais ausente de mim mesmo, mais esquecido de mim próprio. Sim, houve momentos que eu me peguei na rua sem saber quem eu era e para onde estava indo. Foram momentos de total apagão neurológico, nos quais a minha própria identidade era esquecida, e eu sequer sabia o meu nome e onde morava, o que fazia na vida e coisas tais.
 
No início foram alguns lampejos de esquecimento. Começou assim, como pequenos escotomas, minúsculos laivos de insensibilidade, nos quais eu não via as chaves do carro que estavam na minha frente, ou esquecia os óculos que estavam no meu próprio rosto e começava a procurá-los, ou esquecia o relógio que estava no pulso e ficava revirando a casa atrás dele. Eu havia lido que escotomas são manchas que aparecem no campo da sensibilidade visual das pessoas, “ escondendo”  certos pontos ou regiões do nosso campo visual, e que isso era normal nas espécies mamíferas. Todas têm uma espécie de “ponto cego” em seus campos de visão. Mas eu não sabia que isso podia ocorrer também com os campos da memória, da sensibilidade tátil e com a sensação do próprio ego.
Mas era o que estava ocorrendo comigo. Aliás, é o que está ocorrendo comigo. Eu estou simplesmente apagando aos poucos. E agora sei que é um processo irreversível, que está ocorrendo no interior da minha mente e vai ocupando todas as células do meu corpo. Mas é um procedimento completamente diferente de todo e qualquer outro processo de morte que algum ser vivo jamais experimentou. É uma morte psíquica, uma morte ontológica, na qual o organismo sobrevive e até se renova, mas é a sua alma, o seu espírito que morre.
É a morte do ser. Nenhuma religião, nenhuma doutrina, nenhuma filosofia sequer conseguiu descrever uma forma de morte assim. As religiões costumam matar o corpo para preservar o espirito e a alma. Mas isso é porque o corpo é a única coisa que se pode ver, ouvir e sentir. Alma e espírito são realidades que estão além dos nossos sentidos. Só podemos matar aquilo que vemos, ouvimos ou sentimos. Por isso pensamos que o espírito sobrevive á extinção do organismo e a alma é uma substância imortal.
No entanto, eu vejo, escuto e sinto o meu espírito e a minha alma se extinguindo lentamente como se fosse uma mina de água secando por falta de chuva. Sinto-me como uma bateria que está sendo descarregada aos poucos e não consegue pegar mais carga. Mas o meu corpo, esse eu sei que ele está, de alguma forma, vivendo, e cada vez com mais energia, vigor e sensibilidade. Não sou eu que o digo, mas as pessoas que me conhecem. Elas me reconhecem, me elogiam por essa mudança, congratulam-se comigo por essa melhoria de personalidade, como eles dizem, mas eu, eu, que já fui, e estou no estertor da minha agonia enquanto ser, sei que esse indivíduo simpático, solerte, agradável e viril que eles elogiam e recebem com prazer e satisfação, muito mais do que me recebiam, não sou eu.
Ele, o outro, está ocupando o meu lugar no universo e assumindo tudo o que eu sou. Isso me incomoda. Sei que ele é melhor do que eu. Ele vai ocupar o meu lugar no afeto dos meus amigos, no coração da minha esposa e filhos, o meu espaço na cama com ela. E ela, eles, os meus filhos, vão amá-lo mais do que a mim. Mas ele não é eu! Ele não é eu!
Eu sei que estou chegando ao fim desta extraordinária experiência. Sei disso porque o tenho visto, sim, já invadindo o meu campo energético. Sim, o outro eu já está andando ao meu lado, já me substitui no espelho, quando me olho, usando as minhas roupas, os meus sapatos, o meu aparelho de barba, os meus óculos, e até os meus pensamentos. Nem sei se ainda tenho alguma coisa que possa chamar de meu. Ele já se apropriou de tudo. Já o peguei até fazendo amor com a minha mulher. E ela parecia estar gostando mais do que quando era eu. Ele já assumiu a minha essência física quase que totalmente e eu já não tenho nenhuma força para confrontá-lo. Ele já chupou todas as minhas energias físicas, como se fosse um vampiro neurológico que assumiu o controle do meu corpo e de todos os meus estados interiores, substituindo-os pelos dele.
É com o último lampejo de energia que ainda tenho que escrevo este registro. Se não conseguir terminá-lo já sabem por quê.  Ele está chegando, se aproximando, eu sinto, e desta vez será definitivo. Ele é o meu antieu. Não sei como ele conseguiu manipular a mecânica das leis quânticas para vir a ocupar o mesmo universo que eu. Mas sei que nós dois não podemos conviver no mesmo espaço dimensional. Um dos dois terá que se anular. E esse será eu. Eu sei disso. Eu sei disso.
Ele está chegando, e desta vez para ficar. Ele sabe que não pode tocar em mim e eu sei que não posso tocar nele. Ambos desapareceríamos em uma grande explosão de luz que destruiria o universo em que vivemos. Ele é esperto e não quer isso. Ele quer o meu lugar. Talvez estivesse esperando por isso há milhões de anos. Talvez me invejasse e sempre quisesse viver neste lado do universo paralelo onde as coisas podem ser sentidas. Por isso ele foi me ocupando aos poucos. Assumindo tudo que eu fui. E cada célula do meu corpo. Cada gota do meu sangue. Cada neurônio do meu cérebro. Devagarinho, sem alarde, sub-repticiamente, para que eu não percebesse e achasse um meio de reagir. Agora não tem mais jeito. Os polos já estão completamente invertidos. Agora ele é o positivo e eu, eu serei o negativo. Mas eu não sentirei mais nada. Ele está chegando para me assumir de vez. O outro. O antieu.
 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 19/11/2014
Alterado em 04/02/2015


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