João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


A METAMORFOSE 
Um dia o Seu Geraldo acordou com uma sensação muito desagradável no corpo. Não sabia o que era. Sentou-se na cama tentando escutar os próprios pensamentos, mas eles só falavam das coisas que ele precisava fazer no dia e das dificuldades pelas quais ele estava passando na sua vida profissional e pessoal.  Seu Geraldo sabia que todos os nossos sentimentos são informados por três classes de sentidos que o nosso sistema neurológico reconhece e cataloga: um sentido visual, que transforma tudo em imagens, um sentido auditivo, que transforma tudo em sons, e um sentido de cinestesia que transforma tudo que sentimos em sensações táteis, gustativas e aromáticas. Como o sentido auditivo não lhe dizia nada a respeito daquele estranho sentimento que estava experimentando, ele apelou para o cinestésico. Passou a mão pelo corpo todo, explorando cada milímetro dele, á procura de alguma pista que pudesse lhe dar alguma informação á respeito daquele estado de desconforto que se apoderara dele. Nada. As sensações táteis não tinham nada para lhe informar. Nem obteve qualquer sucesso apelando para o nariz, pois todos os aromas que captou eram os mesmos de todos os dias; e quanto aos paladares, á única coisa que sentia era aquele mesmo gosto amargo na língua que não o abandonava desde que ele começara a beber além da conta e a tomar remédios para dormir. O último recurso seria apelar para o visual.  Seu Geraldo então postou-se em frente ao espelho, inteiramente nu e examinou o corpo todo á procura de algum sinal que pudesse lhe dar alguma informação sobre o estranho incomodo que estava sentindo. Explorou o corpo inteiro, desde as solas dos pés, até o couro cabeludo, que ele examinou com o auxilio de um  espelho.
Foi aí que ele viu aquela barata correndo pela parede do banheiro. Nojenta, cascuda, com aquelas anteninhas vibrando, como se estivesse tentando entrar em contato com ele. Odiava baratas. Então pegou um mata-moscas e passou a persegui-la pelo banheiro. Derrubou-a no chão e liquidou-a com três golpes do mata-moscas. Depois, usando-o como uma pazinha, pegou o asqueroso corpinho e jogou-o no vaso. Deu a descarga e ficou a observar o remoinho das águas levando o cadáverzinho nojento para as profundezas do inferno dos esgotos.

Como sua vida parecia que estava indo. Não pode evitar a analogia. Estava se tornando alcoólatra e dependente de remédios para dormir. Já não tinha mais vida social. Vivia na sombra, evitando a luz, como uma barata. Lembrou-se da estranha sensação que tivera ao acordar. Decidiu continuar a explorar-se para ver se encontrava algum sinal físico que justificasse aquele sentimento.  Nada digno de nota. A não ser aquele pelinho estranho na pestana direita. Um pelinho negro que crescera mais que os outros, projetando sua ponta para fora da espessa moita de fios brancos e negros que formavam as suas fartas pestanas. Parecia uma anteninha de inseto. Seu Geraldo pegou a tesourinha que usava para aparar os pelos do nariz e imediatamente decepou a vantagem que aquele pelinho ousado tinha tomado sobre os seus companheiros epilecteliais. Esqueceu-se por um momento da sensação de inquietude que o dominava. Tomou uma ducha, escovou os destes, penteou os cabelos, vestiu-se. Escutou de novo os pensamentos. De novo só as preocupações do dia a dia.
Que não eram nada fáceis. Seus negócios estavam indo de mal a pior. Perdera a maioria dos clientes que amealhara em mais de quarenta anos de árduo trabalho. A maldita cultura do descartável. Ninguém mais mandava fazer ternos. Sua alfaiataria, que já fora a mais próspera da cidade, agora vivia ás moscas. Sobrevivia á custas de velhos clientes, que ainda se mantinham fiéis á velha moda dos ternos feitos sob medida, com cortes e tecidos escolhidos á dedo pelo freguês. Mas esses estavam escasseando cada vez mais. Há mais de três anos que seu Geraldo não captava nenhum cliente novo. E nos últimos anos comparecera a tantos funerais de antigos fregueses, que se deu conta de que logo não teria mais algum. O que faria ele da vida depois disso, ele que só fizera isso a vida inteira? Caçar as moscas que invadiam sua alfaiataria? Correr atrás das baratas que infestavam sua cozinha?
Quanto á vida pessoal, essa também nada tinha de promissora. Fora feliz sim, até algum tempo atrás enquanto Dina estava vida. Dina, a sua fiel companheira de quarenta anos! Dina e a alfaiataria. As duas entraram na sua vida quase ao mesmo tempo. Eram duas relações que se confundiam. Ás vezes Seu Geraldo tinha dificuldades de saber a quem amava mais. Passava mais tempo na alfaiataria, é verdade, onde se sentia realizado, mas quando estava com Dina era a alegria de uma relação estável e feliz que enchia o seu coração. Feliz com Dina, realizado com a alfaiataria. Esses eram os dois componentes do equilíbrio emocional do Seu Geraldo, e quem o conhecia tinha certeza que eram esses dois fatores que faziam dele o homem amável, simpático e educado que ele sempre foi. Um homem que era capaz de ler Freud e Jung com a mesma disposição com que lia o jornal diário e conversava com os doutores que encomendavam os seus ternos com a mesma desenvoltura com que discutia futebol com os ajudantes que pregavam os botões nos ternos e faziam as entregas.  
No entanto, Dina morrera há dois anos atrás. Seus dois filhos, um formado em engenharia de produção, outro em administração de empresas, estavam longe. Um trabalhando em outro estado, o outro tinha se mudado para o exterior. Nenhum deles quis seguir a profissão do pai. Fizeram bem, pensava o Seu Geraldo. Se tivessem seguido a carreira do pai, hoje estariam sem profissão.
 Dina se fora há dois anos. Os filhos também. A alfaiataria, se durasse mais dois, seria muito. Aquela sensação de incômodo neurológico surgiu novamente. O que fazer da vida naquela situação? Sentia-se uma barata tonta.  Seu Geraldo olhou para o espelho.  Agora eram dois os pelinhos negros que se destacavam nas pestanas, formando duas curiosas antenas. Pegou novamente a tesourinha e aparou-os. Passou o pente nelas e foi para a cozinha preparar o café.
Coisa horrível ter que tomar café da manhã sozinho. Seu Geraldo fazia isso há dois anos já, desde que Dina morrera. Mas nunca tinha sentido a plena nostalgia que isso lhe provocava como agora. Cortou o pão para passar a manteiga e reparou nos fragmentos de pão que caia no chão da cozinha. Lembrou-se do cuidado com que Dina limpava a cozinha. “ É para não criar baratas”, dizia ela. Seu Geraldo tomou o café, comeu o seu pão com manteiga, levou a xícara para a pia, lavou-a, guardou os apetrechos com que fizera o café e pegou a vassoura de pelos para varrer a cozinha. Não queria deixar nenhum fragmento de pão no chão. “Para não atrair baratas”, pensou ele, conectando esse pensamento com Dina. "Odeio baratas", murmurou ele, para si mesmo.
Dina, Dina. De repente, seu Geraldo sentiu vontade de catar os fragmentos de pão que caíra no chão, ao invés de varrê-los, como sempre fazia. Agachou-se e começou a catá-los. Um a um,foi pegando com a mão os pequeninos pedaços de pão. Mas ao invés de colocá-los na pazinha com que recolhia o lixo para depositar na lata, ele começou a comê-los. Parecia-lhe natural fazer aquilo. Andou de quatro pela cozinha toda, recolhendo aqui e ali fragmentos de comida que foi encontrando, debaixo do fogão, embaixo da pia, nos vãos dos armários. Grãos de arroz, fragmentos de pão, restos de açúcar, quanto restinho de comida não ficavam escondidos pelos cantos mais ocultos de uma cozinha, que ele nunca imaginara que ficassem? Dina, Dina. Ela tinha razão, era preciso limpar bem a cada. “Para não criar baratas”.
Tudo isso não deve ter passado de um minuto ou mais. Mas para o Seu Geraldo pareceu que tinha feito isso a vida inteira. Todavia era a primeira vez que ele andara pelo piso da cozinha procurando fragmentos de comida. E comendo-os, o que era mais estranho. E de repente, também, da mesma forma intempestiva com que iniciara aquele comportamento, ele se deu conta do ridículo daquela situação. “O que estou fazendo?”, pensou ele. Levantou-se imediatamente e correu para o banheiro. Lavou as mãos com água e sabonete e escovou os dentes. Depois bochechou um antisséptico bucal, pensando na estranha sensação que sentia. Não estava com nojo. Apenas estava perplexo por ter praticado comportamento tão bizarro.
Quando foi ao quarto para pegar a carteira com os documentos para sair, Seu Geraldo deu-se conta de que não estava com nenhuma vontade de sair naquele dia. Os quarto estava na penumbra, pois ele não havia aberto a janela nem acendido a luz. Esticou a mão para o interruptor e acendeu a luz. E imediatamente sentiu que ela o incomodava. Apagou-a imediatamente, dirigiu-se para a janela e começou a abrir as cortinas. O sol feriu seus olhos com uma intensidade tal que ele teve que cerrá-las imediatamente,  como se alguém estivesse atirando nele. Percebeu que gostava da penumbra. E a que luz o incomodava.
Sentiu de repente um imenso medo de sair de casa. O que era aquilo que estava acontecendo com ele? Talvez estivesse ficando doente. Adquirira uma fobia?  Estaria com febre e tendo alucinações? Passou a mão pela testa.  Não, não tinha febre. Foi ao banheiro, lavou o rosto. Enquanto passava a mão pelo rosto, no ato de lavar, sentiu novamente as duas pontas salientes nas sobrancelhas. Olhou para o espelho. Elas estavam lá de novo, as anteninhas peludas, e agora mais salientes do que antes. Seus olhos também estavam diferentes. Estavam mais arregalados, mais inchados nas órbitas, e com uma cor estranha, entre um branco opaco e um amarelo bilioso. Sua boca também lhe pareceu mais enrugada, engrelhada, e seus dentes tinham a aparência de pequenos tentáculos que se fechavam com um movimento de pinças e não com o sobe-desce de martelos de moinho em processo de maceração, como ele sempre achava que a dentadura se parecia quando mastigava os alimentos.  
“Credo”, pensou o Dr. Geraldo. “Acho que estou mesmo ficando louco.”
Mas tudo aquilo devia ser apenas uma alucinação. Aquela vida solitária e sem perspectiva estava começando a cobrar seus efeitos. Afinal a sua vida, nos últimos dois anos, tinha sido uma vida de barata doméstica, como ele mesmo dizia aos poucos amigos que ainda lhe restava. Da casa para alfaiataria, da alfaiataria para casa. Em casa somente a companhia da televisão ou de um livro. No trabalho a máquina de costurar, o giz para marcar, a régua, a máquina de corte, as linhas, as agulhas, dedais, chumaços. Pouca ou nenhuma luz do sol. Pouca ou nenhuma companhia humana. Sanduiches no almoço. Fragmentos de comida pelo chão, que precisavam ser recolhidos diariamente.  As moscas que se ajuntavam e ele tinha que persegui-las pelo aposento, com um mata-moscas na mão. Vida de barata. E no entanto, ele tinha horror á baratas.
Lembrou-se do seu papagaio, única presença viva que ainda tinha em casa. Precisava dar-lhe ração e água antes de sair. Geraldinho, era como ele o chamava. Geraldinho vivia em uma gaiola no quintal. Completamente domesticado, a gaiola ficava aberta e ele tinha liberdade de passear pela casa inteira. Fazia a maior festa quando  o dono ia visita-lo pela manhã, levando água e ração. Seu Geraldo pôs um par de óculos escuros e saiu até o quintal. A luz do sol parecia incomodá-lo cada vez mais. Mas assim que ele aproximou-se da gaiola do Geraldinho, o papagaio imediatamente saltou de dentro da gaiola e foi empoleirar-se no telhado. E lá ficou, por uns instantes soltando gritos desesperados, como se tivesse acabado de presenciar alguma coisa extremamente assustadora. E de repente, sem nenhum aviso, ele voou para cima do Seu Geraldo e começou a atacá-lo com uma fúria que ninguém julgaria que ele fosse capaz.
Seu Geraldo conseguiu livrar-se do papagaio com muita dificuldade. E não sem alguns ferimentos pelo rosto. Geraldinho enlouquecera. Diabos. Será que naquela casa todo mundo estava ficando louco? Ele, tendo alucinações e comportamentos estranhos. O Geraldinho, de repente, não o reconhecia mais e se tornara agressivo.
Decidiu que naquele dia mesmo ia procurar um médico. Antes,  foi ao banheiro para lavar-se e fazer uns curativos nos ferimentos que as bicadas do Geraldinho lhe fizera. Mas quando se olhou no espelho seu coração disparou e ele caiu no chão. Entendeu imediatamente porque o papagaio o atacara. Não tinha mais um rosto humano. Seu rosto era o de uma gigantesca, nojenta e horripilante barata, cascuda e com duas varetas pontudas como antenas de automóvel.

 Seu Geraldo foi encontrado morto em casa três dias depois.  A perícia concluiu que ele caira no banheiro e batera com a cabeça no vaso. Os vizinhos só se deram conta da sua morte por causa do cheiro horrivel que saia da casa. A casa dele está fechada até hoje. Só os vizinhos do Seu Geraldo é que reclamam muito que suas latas de lixo, pela manhã, aparecem sempre  reviradas e que um cheiro fétido, de restos de comida e coisas mortas, costuma sair da casa onde ele morava. Mas ninguém teve coragem de ir checar o que há  lá dentro, pois há quem diga que a casa é mal assombrada. Dizem que lá habitam imensas e horripilantes baratas, cascudas, nojentas e canibalescas.
 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 01/01/2015
Alterado em 02/01/2015


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