A M´MUIA DO DITADOR
O ano é 2063. Nas ruas de Cascara, capital da república bolivariana da Cavelândia, uma extraordinária agitação popular está sacudindo os 15 milhões de habitantes dessa que é uma das mais populosas e problemáticas cidades do planeta. O petróleo, que é a maior riqueza do país está se esgotando e o governo não conseguiu alavancar uma economia sustentável com os lucros da exportação desse produto, pois durante os últimos cinquenta anos procurou seguir á risca a doutrina imposta por seu grande líder, o coronel Lugo Cávez, cujo nome foi dado ao país após a sua morte. Essa política, centrada num programa de distributivismo sem contrapartida, que alienou o povo ao invés de fazê-lo participar do processo de desenvolvimento, estava agora cobrando sua parte.
Um povo sem educação e sem saúde, um país sem indústrias e pobre em serviços públicos e privados, entrava agora em ebulição, ameaçando um governo conduzido com mão de ferro pelos herdeiros do grande líder bolivariano que, agora, cinquenta anos após sua morte, estava de novo na berlinda. O povo de Cavelândia, durante todos esses anos, viveu ás custas dos dividendos do petróleo, distribuídos pelo governo na forma de cestas básicas, bolsas-família, vale isso, vale aquilo e outras benesses desse tipo, que já não podiam mais ser mantidas por força do esgotamento das suas jazidas de petróleo.
Porém, o grande frenesi que agora sacudia a capital do país não era propriamente as dificuldades do governo em manter a ordem social ameaçada pelo colapso da sua economia. Essa, bem ou mal o governo controlava pela repressão e pela truculência da sua polícia. Os mortos se contavam aos milhares, mas isso era o que menos importava aos governantes.
Fora a notícia que se espalhara pela cidade desde a noite passada, que mobilizava todos os escalões do governo e enchia todas as páginas da imprensa controlada e os canais de Tv. Pois ela dizia simplesmente que o grande líder Lugo Cávez, cujo corpo estava depositado numa urna de vidro numa sala especial do museu de Cascara, desde a sua morte, em 2013, havia ressuscitado.
Nada mais normal para o bom povo cavelista, pois este sempre considerara seu grande líder como um Messias que havia vindo á terra para libertar o seu país do domínio imperialista predador, praticado pelas chamadas nações desenvolvidas, especialmente o grande vizinho do norte, os Estados Unidos da Cariméa. Durante toda sua vida ele mesmo havia pregado isso e depois, durante os cinquenta anos de sua morte, o governo, dominado pelos seus seguidores, especialmente o presidente atual, um sindicalista parecido com um ditador de opereta, procuraram fortalecer essa doutrina cada vez mais, controlando a mídia, a educação, a vida do país em todos os seus seguimentos e evitando, a todo custo, que a oposição prosperasse e que qualquer contra informação pudesse colocar em dúvida que o cavelismo era a doutrina redentora e nenhuma outra mais poderia levar a Cavelândia ao paraíso.
Na verdade a noticia que circulou naquela noite não dizia, propriamente, que o grande líder havia ressuscitado. Mas sim, que ele voltara á vida por um breve momento para dizer ao seu amado povo quem era o culpado pelas dificuldades que o país estava passando. Isso foi contado por quem presenciou a bizarra cena, ou seja, os soldados que montavam guarda dia e noite em frente á porta da sala especial do museu onde o esquife do grande líder bolivariano estava depositado há cinquenta anos. Eles contaram, que por volta da meia-noite do dia anterior, ouviram um grande grito na sala do esquife, seguido por um barulho que parecia ser de vidros quebrados. Imediatamente abriram a grande e pesada porta de madeira, e com as armas engatilhadas (porque a primeira idéia foi de que um ladrão havia penetrado ali, talvez para roubar as magníficas medalhas e a primorosa espada que o corpo já quase mumificado do grande líder ostentava), se prepararam para abater o miserável profanador. Mas o que viram fez com todos os seus cabelos se arrepiassem e seus quepes voassem de suas cabeças como se arremessados por uma descarga elétrica. Pois ali estava, sentado no esquife, com a boca carcomida desmesuradamente aberta, soltando um grito agudíssimo, com o dedo apontando para o norte, como que a imprecar e apontar para alguém, o grande líder, Coronel Lugo Cávez.
Os guardas, assustados, não quiseram saber de mais nada. Largando seus rifles a lazer, importados dos Estados Unidos da Cariméa, fugiram apavorados. E foi só depois de algumas horas, medicados e finalmente acalmados em seus estados de completo blackout emocional, que eles conseguiram reportar aos policiais e para médicos que os atenderam o bizarro acontecimento. É claro que, em princípio, ninguém acreditou na história deles. Provavelmente tinham sido vítimas de uma alucinação. Afinal, mesmo sendo quem era, o grande líder e profeta do cavelismo não poderia competir com aquele que há mais de dois mil anos atrás inaugurara esse tipo de experiência. Seria ousadia demais querer comparar o Coronel Cavés com Jesus Cristo, embora, em vida ele mesmo tivesse chegado a fazer isso.
Mas para desencargo de consciência foram ao museu para certificar-se. E o que lá viram, embora os deixasse desconfiados, não obstante não deixou também de provocar-lhes um arrepio no alto do couro cabeludo. Pois a tampa de vidro da urna em que o corpo do grande líder estava depositado estava toda quebrada. Os cacos de vidro, espalhados no chão, não deixavam dúvidas: o impacto que a destruíra, tinha vindo de dentro do esquife e não de fora. Na cabeça e nas mãos do cadáver podiam ser notadas algumas escoriações que pareciam ter sido provocadas pelo impacto deles contra a tampa de vidro. Nada havia sido roubado. As belas medalhas, os botões dourados da túnica do presidente, sua linda e coruscante espada, tudo estava ali. O que mais espantou os policiais e os paramédicos que os acompanharam, entretanto, foi o fato de que o cadáver estava agora em outra posição. Sua cabeça estava virada para o norte e seu dedo indicador também apontava para essa direção.
“Nossa”, disse um dos paramédicos, bem baixinho aos ouvidos do colega mais próximo: “ Não é que ele está parecendo mesmo a múmia do Ransés II?” *
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Nota:
Ramsés II foi o mais famoso faraó do Egito. Em seu longo reinado, que durou cerca de cinquenta anos, o Egito antigo alcançou o seu período de maior glória. Foi também um grande guerreiro e administrador. Conquistou boa parte do Oriente Médio e construiu os maiores templos e monumentos que ainda hoje existem no o Egito. Ficou famoso pelas guerras que travou contra os hititas, povo que habitava na Anatólia, região hoje pertencente á Turquia. Acredita-se que ele tenha sido o faraó da época em que os hebreus, comandados por Moisés, deixaram o Egito no grande Êxodo descrito na Bíblia. Seu governo foi marcado também por uma intensa ação social-assistencialista, de forma que esse faraó foi chamado pelo povo egípcio de “pai dos pobres”.
Há uma lenda urbana a esse respeito, muito divulgada e acreditada por muita gente. Conta-se que a múmia de Ransés II foi retirada do seu túmulo e depositada numa urna de vidro, no museu do Cairo, com a cabeça voltada para o sul. Logo na primeira noite em que ela passou no museu, os guardas ouviram um grito agoniado, seguido do ruído de vidros partidos, que vinha da sala onde ela estava exposta. Correram para lá e o que viram os deixou completamente atônitos: a múmia do faraó Ransés II, estava sentada no sarcófago, com a boca completamente aberta, gritando. Em seguida virou-se dentro do sarcófago, voltou a cabeça para o norte e deitou-se novamente na posição onde se encontra até hoje.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 05/07/2015
Alterado em 05/07/2015