“ Quincas Borba mal podia encobrir a satisfação do triunfo. Tinha uma asa de frango no prato, e trinchava-a com filosófica serenidade. Eu fiz-lhe ainda algumas objeções, mas tão frouxas, que ele não gastou muito tempo em destruí-las.
- Para entender bem o meu sistema, concluiu ele, importa não esquecer nunca o princípio universal, repartido e resumido em cada homem. Olha: a guerra, que parece uma calamidade, é uma operação conveniente, como se disséssemos o estalar dos dedos de Humanitas; a fome (e ele chupava filosoficamente a asa do frango), a fome é uma prova a que Humanitas submete a própria víscera. Mas eu não quero outro documento da sublimidade do meu sistema, senão este mesmo frango. Nutriu-se de milho, que foi plantado por um africano, suponhamos, importado de Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; um navio o trouxe, um navio construído de madeira cortada no mato por dez ou doze homens, levado por velas, que oito ou dez homens teceram, sem contar a cordoalha e outras partes do aparelho náutico. Assim, este frango, que eu almocei agora mesmo, é o resultado de uma multidão de esforços e lutas, executadas com o único fim de dar mate ao meu apetite.”
Machado de Assis- Quincas Borba.
O texto acima resume a filosofia do personagem criado por Machado de Assis, Quincas Borba. É uma espécie de darwinismo nazistóide, que vê no instinto predador do mais forte uma lei natural destinada a aperfeiçoar a raça humana. É uma lei que se justifica no postulado segundo o qual o mais fraco foi feito para servir de pasto ao mais forte. Mais ou menos o que tem acontecido na história dos povos do mundo desde o alvorecer da História e continua acontecendo hoje, bem debaixo dos nossos olhos e narizes.
Estados Unidos e Europa, os dois centros desenvolvidos da civilização ocidental estão sofrendo com as ondas migratórias dos fugitivos da guerra e da miséria. Passageiros da agonia e hospedeiros do desespero, esses infelizes são arrebanhados por "coiotes" sem alma, que tomam tudo que eles têm e não têm, com a promessa de levá-los ao paraíso. E quase sempre os abandona na estrada ou no mar para morrerem.
O problema dos Estados Unidos é com a leva de latino-americanos que todo dia tentam entrar lá e a Europa com o povo vindo da África e do Oriente Médio, expulso pela fome, pelas guerras e pelo sofrimento continuo e desagregador. O principal problema dos Estados Unidos é com o México. Os mexicanos estão para os Estados Unidos como o garoto da favela que passeia pelo shopping e fica olhando as vitrinas das lojas sabendo que se entrar nelas logo vai ser interpelado pelo segurança e escorraçado de lá. Ou então como o morador da favela de Paraisópolis, que de longe fica olhando as mansões, as piscinas e os carrões dos seus vizinhos do Morumbi, e sonhando com o dia em que vai poder ter uma vida igual.
É a mesma coisa com a Europa em relação aos seus vizinhos da África e Oriente Médio, Os centros mais desenvolvidos da civilização humana sempre foram uma atração para as populações dos países menos desenvolvidos. São como lâmpadas para as mariposas. Ao longo da história as migrações como a que agora se veem na Europa, e no curso deste século tem sido vista na fronteira americana com o México, são cíclicas e obedecem á uma lógica natural.
Estados Unidos e Europa Ocidental são como a Roma dos tempos clássicos. Todo mundo quer ir para lá porque é lá que estão as melhores oportunidades de trabalho, de progresso, de viver uma vida com mais qualidade. Um dia essas economias quebram justamente pelo inchaço que acabam acumulando com essas migrações e com a pressão que as classes menos protegidas acabam exercendo sobre o estado. Esse, provavelmente, é o grande temor das autoridades americanas e europeias em relação ás ondas migratórias atuais.E é a justificaviva da repressão movida contra esses infelizes e a razão de tanta insensibildade.
Em tudo isso há uma lógica extremamente perversa. Em sã consciência ninguém justifica que uma pessoa imigre pelo prazer de imigrar. Quem se arriscaria em deixar a terra onde nasceu e construiu família, relacionamentos e ligações sentimentais, a terra com a qual possui inclusive laços de civismo e identidade cultural, para se aventurar no estrangeiro, se não for para tentar construir uma vida melhor, ou para explorar oportunidades que não encontra em seu próprio país?
Nesse sentido, ao invés da eterna exploração praticada pelos países desenvolvidos contra os subdesenvolvidos, não seria mais simples e mais barato se as primeiras ajudassem as segundas a se desenvolver, para que elas pudessem alcançar um nível econômico e uma qualidade de vida que estimulasse seus naturais a viver neles ao invés de deixá-los? Talvez custasse menos e fosse mais simples do que as dispendiosas, cruéis e ineficientes medidas de controle e repressão que os países desenvolvidos têm tomado para impedir a invasão dos imigrantes aos seus territórios.
O problema é que a grande maioria dos países desenvolvidos é constituída de antigas potências coloniais, cujo DNA hospeda, ainda hoje, o vírus da submissão dos seus vizinhos mais fracos. O vírus de Humanitas, no dizer do bizarro personagem de Machado de Assis. Para essas nações, os países menos desenvolvidos são vistos apenas como um cativo mercado consumidor de seus produtos industrializados e fornecedor de mão de obra barata. São territórios e populações onde as vantagens comparativas da sua superior tecnologia faz hoje o papel que as forças armadas fazia na antiguidade romana e na época da colonização do novo mundo. Essa é uma forma moderna de servidão, mascarada pela subserviência cultural e tecnológica, um novo tipo de colonialismo que talvez seja até mais pernicioso que os modelos anteriores, por que contra este é mais difícil de lutar, já que nunca se sabe direito contra o que se está lutando, nem se a luta é justa.
É nesse sentido que as nações desenvolvidas são todas discípulas de Quincas Borba. E vivem escrevendo, continuamente, a história universal da infâmia, com episódios como o que estamos vendo agora na Europa.
Talvez os líderes das potências ocidentais pensem que estão hoje mais protegidas do que a Roma antiga estava nos séculos III e IV quando os povos da periferia do império começaram a se movimentar em direção ao coração do estado romano, fugindo exatamente do confronto com as populações mais pobres do mundo que eles chamavam de bárbaros. Bárbaro, naqueles tempos, era o que chamaríamos hoje de subdesenvolvido. Todos sabemos o que aconteceu ao poderoso império romano. Não há nacionalismo chauvinista, nem solução de força que consiga salvar um território quando ele é invadido por hordas famintas e desesperadas para encontrar um lugar para viver. Contra uma invasão armada é mais fácil resistir. Contra a fome e o desejo de sobreviver, a luta é sempre mais difícil, porque o adversário não tem nada a perder. E quem não tem nada a perder só vai poder ganhar.
Humanitas, a imoral e aética divindade de Quincas Borba, que abençoava a supremacia do mais forte e via nela a forma mais perfeita da seleção natural, não salvou Roma da tragédia, nem outros grandes impérios que procuraram se garantir praticando a autofagia da própria espécie. Nesse sentido seria bom que as autoridades dos países desenvolvidos se lembrassem disso
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 06/09/2015