PEROBAS E JEQUITIBÁS
De vez em quando vou ao meu quartinho de despejo e abro um armário que tenho lá, cheio de velhas caixas e antigas pastas, todas empoeiradas, com cheiro de mofo e colônias de ácaros por todos os lados. Deixo as portas abertas para que o ar entre e pelo menos aquele odor de coisa velha e esquecida se dissipe. Talvez o cheiro desagradável não grude nas coisas porque elas são velhas. Isso ocorre quando elas são esquecidas. Porque é o esquecimento e a ingratidão que fede e não a idade. Dei-me conta disso um dia desses, quando no meio dos meus guardados, encontrei um antigo texto de Lauro de Oliveira Lima que falava de eucaliptos e jequitibás, comparando a destruição da nossa floresta nativa e sua reconstituição com árvores de corte ao que vem acontecendo em nossa educação. O texto é dos anos setenta, quando eu fazia minha licenciatura para professor, mas o reli como se tivesse sido produzido hoje.
Ele me fez lembrar de um velho livro que eu tinha, que catalogava os lugares e os profissionais da minha cidade, listando praças, igrejas, ruas, prédios e pessoas importantes do município, em fins dos anos cinquenta, um a um, com suas profissões e históricos familiares.
O velho catálogo já não tinha capa nem as primeiras folhas introdutórias. Por isso não consegui identificar quem foi o brilhante organizador desse precioso glossário histórico que teve a consciência e a feliz idéia de preservar para a posteridade as excelências do momento vivido por uma comunidade, registrando justamente aquilo que a inclemência do tempo e a nossa indiferença para com as coisas do nosso meio ambiente nos forçam a relegar ao esquecimento.
O catálogo era interessante porque listava o nome de comerciantes, médicos, bacharéis, sacerdotes, farmacêuticos, músicos, professores e outros personagens conhecidos na cidade naquela época. Os profrddores apareceriam no fim da listagem, mas o simples fato de estarem ali mostrava, que pelo menos em certo tempo da vida desta nossa comunidade, os profissionais da educação eram considerados gente importante.
Lembro-me que lá estavam listadas algumas profissões, atividades e empresas que já estão extintas. Selaria Paulista. Leiteria Estrela. Lavanderia Elite. Armarinhos A Vantajosa, Cecília Faz Tudo, Padaria Nossa Senhora de Fátima, Carroceiro Cabo Verde. Rancho do Tropeiro, Fábrica de Móveis Padovani, BAr e Bilhar Glória, Pizzaria Maracanã, Pizzaria Maracanã, os cinemas da cidade, Urupema, Odeon, Avenida, Parque, armazém do Tuffy, Sapataria do Balá, etc..
Aí me veio á lembrança que meu pai foi tropeiro. Ele morreu quando eu tinha oito anos, mas eu o perdi de vista desde os cinco porque ele tinha sido internado em um hospital para se tratar de hanseníase. Naquele tempo gente com esse tipo de doença tinha que ser isolada. Mas com tudo que sei agora dá até para ter um certo orgulho do meu velho. Ele não era o Zé Ninguém, caipira caboclo que durante muito tempo eu achava que fora. Ele foi, na verdade, um empresário, dono de uma empresa de transporte. Pois a tropa de burros que ele tinha era o meio de transporte daqueles tempos. No lombo dos burros se transportavam as mercadorias para aqueles lugares aonde o caminhão e o trem não chegavam. Minha mãe dizia que lá pelos idos de 1932, na Revolução Constitucionalista, o governo paulista requisitou a tropa de burros do meu pai para transportar víveres e munições para os soldados paulistas que se acantonaram na Serra da Bocaina para tentar deter o avanço das tropas federais que vinham do Rio e desciam de Minas através das estradas reais. Disse que meu pai perdeu toda a tropa naquela revolução e o governo paulista nunca o reembolsou por isso. Veio daí a simpatia que ela tinha pelo Getúlio Vargas.
Triste fim o dos tropeiros. Engolidos na voragem de um mundo que fez da pressa e da massificação das ações a sua forma de sobrevivência. Lembrança puxa lembrança. Cadê os sapateiros, os alfaiates, os caixeiros-viajantes, os seleiros, os tanoeiros, os boticários, as parteiras, os mestre-escola, os inspetores de quarteirão, os moleiros, os caixeiros de loja, os tecelões, os sopradores de vidro, os rábulas, os tocadores de realejo, os párocos de aldeia, os boiadeiros?
Que fim levaram esses profissionais? Penso neles como velhinhos que se aposentaram e terminaram suas existências na obscuridade do esquecimento, como aqueles que somem da vida pouco a pouco, e quando morrem, seus enterros passam, com quatro pessoas a levar-lhes o caixão e outras poucas a acompanhá-lo, diante do olhar indiferente de um mundo que caminha, a passos largos e rápidos, na direção contrária à que eles vão.
Daí pensar no educador é apenas uma curta e rápida conexão mental. Onde andarão esses profissionais que constroem a consciência de uma nação? Será que se transformaram todos em professores? E estes em divulgadores de informação, repetidores de matéria? Talvez essa seja uma boa resposta, pois é assim mesmo que certas profissões desaparecem. Primeiro se transformam, como o artesão em operário braçal, o desenhista em designer, o datilógrafo em operador de computador, o boticário em farmacêutico e este em bioquímico. Desaparecem, com isso, as vocações, e no lugar surge a técnica. E da sacralidade do ofício, que era um prolongamento da mente e da habilidade das mãos, faz-se uma mera operação mecânica cujo único valor se mede pela quantidade e aparência do produto oferecido, aliado ao seu custo, que quanto mais baixo, mais estimado fica.
Vocação é uma coisa tão sutil que beira à espiritualidade. Não faz parte do currículo do profissional moderno a vocação para alguma coisa. Hoje vocação se chama perfil. Tem-se ou não perfil para médico, arquiteto, secretária, comerciante, vendedor, advogado. E não venham me dizer que perfil é a mesma coisa que vocação. Não é. Perfil é uma aparência de habilidade que se adquire por encaixe, por entalhe, por retoque. Alguém que é talhado para uma coisa. Adquiriu conformação para aquilo. Já vocação não se adquire por preparação, por aprendizado. É algo que se tem ou não se tem. É uma coisa de coração. Um atributo da alma. Algo que tem a ver mais com espírito do que com matéria. Por isso, antigamente, certas profissões só se adquiriam por iniciação.
Em qualquer profissão podemos encontrar vocações ou perfis. Parece difícil imaginar que alguém possa ter vocação para boiadeiro, tropeiro, sapateiro, alfaiate ou boticário. Mas isso existe sim. Talvez não mais hoje, mas um dia existiu e foi com base nessa relação de transcendência entre o homem e sua profissão, que nasceu a tradição de sacralidade de alguns ofícios, como as dos pedreiros, os forjadores, os alquimistas, dos médicos e principalmente dos educadores.
Por isso não encontramos mais verdadeiros boiadeiros, a não ser nas velhas canções das nossas duplas sertanejas. Nem tropeiros, nem seleiros, nem sapateiros nem alfaiates. Desapareceram também os médicos de família, aqueles que faziam da medicina um verdadeiro sacerdócio, primeiro fazendo o parto, depois tratando as doenças da infância, as moléstias do adulto, desde a pneumonia, o sarampo, a catapora, a caxumba, até a orgulhosa gonorreia da nossa juventude irresponsável. Eles acompanhavam o cliente do berço até o túmulo. Hoje temos especialistas para tudo, desde medicina celular até doutor em unha encravada, mas o que cura mesmo, o verdadeiro remédio, que era o amor, o carinho, a confiança que se tinha no profissional ninguém sabe mais receitar nem ministrar. Temos hoje muitos técnicos em medicina, mas quantos serão verdadeiros médicos?
É a mesma coisa com o educador. Haverá ainda lugar, em nossa civilização de cultura descartável, para um verdadeiro educador?
Da mesma forma que o boticário se tornou obsoleto, engolido pelas multinacionais do remédio pronto, o alfaiate pelas grifes e pelas fábricas que produzem roupas em larga escala, os sapateiros pela indústria do calçado bonito e descartável, também o educador perdeu seu espaço numa civilização que hoje não precisa mais de cultura nem educação, mas unicamente de informação. Aliás, que utilidade teria ele nessa verdadeira indústria de informação em série que hoje são as nossas escolas e universidades?
Lembrança puxa lembrança e estas sempre trazem um pouco de nostalgia. O que o Lauro de Oliveira Lima disse é uma grande verdade: é mais fácil plantar eucaliptos do que conservar jequitibás. E é assim mesmo que acontece. Derrubam-se as velhas árvores seculares, que nasceram sozinhas, por milagre da natureza e no seu lugar replanta-se a floresta com árvores próprias para o corte, como são os pinheiros e os eucaliptos. E desaparecem as jequitibás, as perobas, mognos e outras espécies nobres. E assim também caminha a sociedade humana.
A morte abate as nossas árvores mais nobres e são poucas as que nascem com a mesma nobreza para substituí-las. Até porque estas não podem ser plantadas em série nem são passíveis de ser cultivadas artificialmente. Elas precisam de habitat peculiar para nascer e desenvolver suas vocações. Não é na floresta petrificada da produção em massa e do lucro a todo custo que elas vicejam e crescem. Educadores são como as árvores nobres da floresta, verdadeiras entidades especiais que possuem uma alma, uma tradição, uma história, que se ligam ao ambiente em que ela existe e influi, de forma decisiva, neles. Por isso é que muitos povos que vivem mais próximos à natureza cultuam certas árvores, vendo nelas um “espírito protetor”, um totem que merece reverência, porque ela agasalha atributos de divindade e nasce e cresce exatamente naquele lugar para proteger aquele ambiente.
Que me perdoem aqueles que não entenderem a analogia, mas é assim que eu vejo o educador. Sua importância, seu carisma, seu resultado, sua habilidade não está no conjunto de informações que ele reúne para passar aos seus alunos, mas nessa relação de simbiose que ele mantém com seus pupilos, que verdade seja dita, são discípulos mesmos e não simplesmente alunos. Esse profissional nada tem a ver com o professor das nossas modernas escolas e universidades, que não por culpa deles, diga-se a bem da verdade, mas por força de um sistema que transformou o conceito de educação em créditos que o aluno tem que obter numa certa disciplina, o transformou em mero repetidor de informação. Hoje a escola só se preocupa em cumprir um programa sem alma, cujo conteúdo pode ser obtido, com maior prazer, na Internet ou numa revista de variedades. Se entendermos bem essa analogia, não será difícil compreender também porque hoje os nossos alunos estão tão indisciplinados, desmotivados e rudes, e os nossos professores tão infelizes e desanimados com suas profissões.
Da minha parte, estou morrendo de saudades dos mestres que passaram pela minha vida. Os nomes deles não estão no catálogo a que eu me referi no início deste texto, mas é através deles que saúdo todos os verdadeiros educadores do mundo, profissionais ou não, pois educador não é profissão, é vocação, missão, apostolado. Da mesma forma que hoje terçamos armas para conservar as árvores nobres, seria de bom alvitre preservar os verdadeiros educadores. Esses são, como dizia Lauro de Oliveira Lima, as perobas e jequitibás que nunca poderão ser substituídos por eucaliptos e pinheiros.