O OLHO DE VIDRO
Por Collodi
Era um olho de vidro, movido por um músculo no fundo da órbita. Dir-se-ia inútil, no entanto sagaz, via perto, via longe, de frente, dos lados, bisbilhotava, como que impulsionado por algo eletrônico, mas era um músculo remanescente no fundo da órbita que o impulsionava.
Era capaz de ver através dos muros, dos sobretudos, das saias, mas não contava o que via, era discreto, alimentava o desejo secreto de libertar-se como todo escravo, tinha defeitos como todo olho, como o de só ver o que lhe interessava, o que lhe dava gosto ver : os pássaros, a natureza, as flores, o resto só olhava de relance, como as pessoas com seus olhares hipócritas, suas expressões de escárnio.
O olho tinha uma íris escura, pousada num fundo opalino e uma pupila profunda, inquisidora, negra como carvão, como se estivesse a perscrutar o futuro.
Não fazia questão de demonstrar bom caráter, nem fazia amizade com o olho do lado direito, que era autossuficiente, antipático. Fazia-se mordaz, irônico nas horas cruciais. Mas era também covarde, nos momentos de perigo, escondia-se sob as pálpebras que se serravam ao menor ataque, queria passar despercebido, certo de que o olho bom daria perfeitamente conta do recado.
Volta e meia o olho de vidro escapava com a intenção de fugir; era pego do chão, lambido e posto de volta na órbita com o músculo mandão que o obrigava a se mexer. Estava cansado, um pouco arranhado pelos tantos tombos que levava, e sempre retornava a sua cela viscosa e de vez em quando adormecia, descansava de tanto ver e guardar para si o quanto via, cenas íntimas de alcova, vilanias, e outras manifestações humanas.
Um dia presenciou um crime, guardou-se em copas, por puro desejo de manter-se fora das intrigas, teve vontade de revirar-se, de fugir, de estilhaçar-se.
Certa vez apaixonou-se por um olho azul de acrílico. Eram brilhantes e os olhos se encontraram, foi amor à primeira vista, sem palavras, mas o tempo suficiente de enamorar-se. Nunca mais foi o mesmo, bastava lembrar-se do olho de acrílico, que pedia uma lágrima para banhar-se.
Naquele dia estava disposto a ganhar o mundo, escafeder-se de vez. Aguardou uma piscadela a atravessada, saltou da órbita e rolou para um bueiro e não foi encontrado entre dejetos, ratos e baratas, até que uma chuva o levou ao mar, onde se fincou na areia, entre algas, conchas e peixes. Viveu livre e feliz para sempre. De vez em quando lembrava-se do olho azul de acrílico e suspirava de saudade.
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Antonio Fernando de Souza, Natural de Mococa, SP,Tem poemas publicados no site "Recanto das Letras", presente em inúmeras antologias, publicou o livro "Rosa Guerrilheira"/Professor Universitário/ Fundador do Lions Clube de Mogi das Cruzes/ Comenda pelo CRO, Medalha Tiradentes(CRO)
Collodi (Antônio Fernando de Souza). E-mail: afsouzamanini2@gmail.com
DO LIVRO ANTOLOGIA- COMPANHEIRISMO EM VERSO E PROSA.
COLODI
Enviado por João Anatalino em 28/09/2015