João Anatalino

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A CABALÁ E A GNOSE
 
O que é Gnose
 
     Gnose significa sabedoria, iluminação, conhecimento das coisas divinas através da especulação metafísica, em contraposição ás religiões oficiais, que fundamentam suas crenças em revelações da divindade feitas a uns poucos escolhidos. É a iluminação obtida através do estudo e da meditação, feita com método e critério, por isso seus cultores não a consideram uma religião, mas sim um sistema de pensamento que tem por objetivo desvendar os grandes mistérios do mundo espiritual.
     Esse termo tem sido utilizado na história do pensamento religioso para designar o conhecimento esotérico perfeito das coisas divinas, transmitido através da tradição e dos ritos iniciáticos. Em filosofia, designa uma escola de pensamento que apareceu nos dois primeiros séculos anteriores ao cristianismo, tendo alcançado o apogeu entre os séculos II, III e IV da era cristã, desaparecendo praticamente por volta do século V, quando a Igreja de Roma conseguiu impor sua autoridade como religião oficial do Império Romano.
     A ambição dos gnósticos era criar uma espécie de religião filosófica, unindo as duas grandes vertentes de pensamento dominante nos primeiros séculos da era cristã, que eram o cristianismo e o paganismo. Nesse sentido eles procuraram conciliar os grandes mitos das religiões orientais com o espiritualismo do credo cristão, no sentido de fazer uma síntese que pudesse agradar a todos, no que, evidentemente, não tiveram sucesso. [1]
     Isso porque, a partir do Conselho de Nicéia, realizado em 325 da era cristã, as chamadas doutrinas gnósticas foram consideradas heresias e atiradas á clandestinidade. Atacadas tanto pelos cristãos ortodoxos, quanto pelos defensores das religiões pagãs, elas passaram á história como sendo um conjunto de doutrinas curiosas, formuladas por pensadores heréticos e com intenções contestatórias ao verdadeiro cristianismo.
     Em razão disso o gnosticismo ficou confinado á algumas parcas manifestações, praticadas por seitas consideradas heréticas, algumas delas, como os cátaros, por exemplo, combatidas com extrema violência e rigor pela Igreja de Roma. 
     Entretanto, com a descoberta dos documentos da biblioteca de Nag Hamadi, as doutrinas gnósticas voltaram novamente a ser estudadas e sofreram uma súbita revalorização, principalmente as que se referem aos primeiros anos do cristianismo, cujos textos mostram um Jesus Cristo bem diferente do que os evangelhos canônicos sempre divulgaram.[2] Hoje alguns temas desenvolvidos pelo pensamento gnóstico são estudados por modernos cientistas da física e da astronomia moderna, que neles encontram extraordinários paralelos com as descobertas da ciência mais avançada.[3]
 
O esoterismo e a física moderna

                                                         
     Nessa área específica do conhecimento humano, que constitui o espiritualismo, parece que o esoterismo e a ciência física estão se dando as mãos. De um lado é o mundo sutil que constitui o estofo do universo conhecido que começa a ser desvendado através das descobertas científicas, e por outro a ciência sendo enriquecida na mesma proporção pelas intuições da sensibilidade humana. Estas são, na maneira como as vemos, manifestações do nosso próprio espírito. Nesse sentido, matéria e espírito são apenas polos opostos da mesma corrente energética. Uma não pode existir sem a outra, nem subsistir por si mesmas. Ou como as chama a moderna ciência atômica, matéria e antimatéria. Talvez elas se desenvolvam em sentido contrário uma á outra, como intuiu o grande Teilhard de Chardin ─ a matéria se desenvolvendo para fora, no sentido do imenso, gerando o universo físico, e o espírito se desenvolvendo para dentro, no sentido do ínfimo, formatando o universo espiritual ─, mas de qualquer modo, são grandezas que se sustentam, obedecendo a um processo, que no fundo se completa em uma totalidade estrutural que tem sentido e finalidade, porque se trata de um plano arquitetado pela mente de Deus. [4]
 
A concepção gnóstica do universo
 
 De acordo com os gnósticos, de ontem e de hoje, o mundo é pensado por um Espírito Supremo e construído por espíritos delegados. Por Espírito Supremo devemos  entender o Grande Arquiteto do Universo. Esse termo, aliás, é uma inspiração gnóstica, adotada pelos filósofos dessa escola a partir da visão de Platão, que chamava Deus de Tecton, o Arquiteto. Nessa visão, Deus seria o Grande Arquiteto do Universo e os espíritos delegados seriam os anjos e os homens, respectivamente. Os primeiros atuando como mestres, os segundos como pedreiros.  
     Essa visão gnóstica é compartilhada pela Cabalá, como veremos, e sua repercussão no ensinamento maçônico é uma consequência da influência que essa doutrina passou a exercer sobre os adeptos da Arte Real a partir do momento em que ela deixou os canteiros de obras medievais para se tornar um vigoroso sistema de pensamento, apoiado por uma influente organização á nível mundial. 
      Por outro lado, a analogia existente entre o pensamento gnóstico e as teorias dos físicos modernos a respeito da formação e desenvolvimento do universo são bastante visíveis. Por ora, é importante ter em mente as visões gnósticas desse conceito, porquanto é nessas visões que a Maçonaria se inspira para desenvolver alguns dos temas que aparecem em seus rituais.[5]
     Em alguns sistemas gnósticos as várias emanações de Deus no mundo físico são chamadas por diversos nomes. Os mais conhecidos são Mônada e Eons. Mônada (monos, único), é a primeira susbstância, préexistente e incriada (Aieon Teleos). Na Cabalá é o correspondente do conceito conhecido como Ain Soph.  Eons (numa analogia com as teorias da física moderna), pode ser entendido como “átomos” do pensamento de Deus. Dentro desses seres (ou átomos) primordiais, os filósofos gnósticos identificaram a existência de diversos fundamentos, sobre os quais o universo (material e espiritual) é construído. A esses fundamentos foram dados nomes como Ennoea (Pensamento), Charis (Graça), Sige (Silêncio) Caen (Poder), Akhana (Verdade, Amor). Na visão cabalística essa noção corresponde ao Ain Soph Aur, ou seja, a Luz Ilimitada, que ainda presa dentro do seu campo de gravidade, não se manifestou no campo das realidades observáveis.
     Os eons, na doutrina gnóstica, sempre aparecem em pares masculino/feminino chamados sizígias, e são bastante numerosos. É o resultado da sua multiplicação (a panespermia) que gera o universo material. Ou seja, numa analogia com o moderno pensamento científico, o universo material é gerado pelo esperma divino (a luz) projetada no útero cósmico (o vazio).  
     Quando unidos, os eons masculino e feminino constituem o Pleroma, uma "região de Luz”, onde vivem os seres luminosos. As regiões abaixo do Pleroma estão mais perto da escuridão, como o mundo físico onde nós vivemos. Na tradição cabalística, os eons são semelhants ás fraternidades angélicas, as quais presidem etapas específicas da construção universal.
      Segundo algumas tradições gnósticas, o nascimento do universo físico ocorreu do seguinte modo. O eon chamado Sophia (a sabedoria) emanou (pariu sózinha) sem a participação do seu eon parceiro, um eon bastardo, chamado “Demiurgo”, ou semi-criador (às vezes chamado de Ialdabaoth nos textos gnósticos e cabalísticos).[6]
Essa foi uma emanação “que nunca deveria ter sido produzida” segundo os inspiradores dessa visão. Esse “ser cósmico” abastardado nunca pertenceu ao Pleroma, ou seja, foi gerado fora da zona de luz emanada por Deus. Foi esse ser que criou o mundo material, o qual, em razão disso, também é uma região que está “fora da zona de luz”. Por isso, o Uno (Deus), o Eon primeiro e fundamental, emanou dois eons, Cristo e o Espírito Santo, para salvar o mundo do poder do Demiurgo. Esse eon (Cristo) tomou a forma de ser humano (Jesus) para poder resgatar Sofia (a sabedoria) da influência do Demiurgo e ensinar aos homens como adquirir a Gnose (libertar a sua luz pessoal), para que assim todos possam retornar ao Pleroma (a zona de luz). [7]  
      Por isso é que uma das mais interessantes concepções da Gnose é a ideia de que o espírito é uma centelha de luz aprisionada na matéria. Nesse sentido, espírito e matéria assemelham-se aos dois burricos da fábula. Cada um quer seguir direção contrária em busca do seu próprio monte de feno. Só quando se juntam eles descobrem que são complementos um do outro, e que o objetivo de suas vidas é formar um conjunto equilibrado. E quando isso acontece, conseguem vencer a repulsão que os separa, e aí se tornam uma unidade, que é o verdadeiro “ser”. [8]
 
(continua)

 
 
[1] Sarane Alexandrian-  História da Filosofia Oculta- Edições 70- Lisboa,1973
[2] A Biblioteca de Nag Hamadi são antigos textos que falam sobre ideias e crenças que eram veiculadas nos primeiros séculos do cristianismo. Fazem parte do conjunto de documentos censurados no Concílio de Niceia, que foram ocultos e preservados por monges cenobitas em um mosteiro localizado na região de Nag Hamadi, no Alto Egito. Foram descobertos em 1945 por pastores árabes. Desse conjunto fazem parte vários “evangelhos” considerados apócrifos (falsos) pelo Vaticano.
[3] Nas teses gnósticas os estudiosos veem uma interessante correspondência com o atomismo desenvolvido pelos filósofos gregos Demócrito e Leucipo. Com base nessa correspondência os modernos gnósticos desenvolveram a tese do universo formado por uma “rede de relações”, informada pelos núcleos dos átomos, carregados com informações primordiais, que os fazem buscar as interações de que necessitam para constituírem as realidades do mundo físico. Ver, nesse sentido, Raimond. Ruyer- A Gnose de Princeton. São Paulo. Cultrix, 1974. Ver também Fritjof Capra-  O Tao da Física, São Paulo, Cultrix, 1992
[4] P. Teilhard de Chardin- O Fenômeno Humano- Ed. Cultrix, São Paulo, 1968
[5] Vide a nossa obra “Mestres do Universo”, publicada pela Biblioteca 24x7, - São Paulo, 2012, onde discorremos com mais profundidade sobre as influências cabalísticas no catecismo maçônico dos graus filosóficos.
[6] Ialdabaoth é um dos dez demônios que presidem a criação universal, como potência contrária aos anjos de luz, que são os anjos construtores.
[7] A esse respeito, ver Sarane Alexandrian, História da Filosofia Oculta,  Martins Fontes, São Paulo, 1983. Ver também a nossa obra Conhecendo a Arte Real, Madras, São Paulo, 2007             
[8] Segundo a moderna física, o equilíbrio do universo se dá pela contraposição da energia positiva da aceleração, que promove a expansão do universo num movimento caótico e desorganizado, e a energia negativa da gravidade, que força sua contração, aglutinando as massas em sistemas.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 14/10/2015


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