João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


 Gilles De Rais foi o maior serial killer que se tem notícia na história da humanidade. Conhecido como o Senhor das Trevas, esse estranho cavaleiro francês nasceu em 1404 em Machecoul, uma aldeia próxima à fronteira com a Bretanha. Seus pais se chamavam Guy de Montmorency-Laval e Marie de Craon. Feito cavaleiro aos quatorze anos de idade, aos quinze ele já havia feito sua primeira vítima na pessoa de um amigo de infância, a quem ele convidara para um duelo simulado, onde ele pretendia demonstrar as habilidades que havia adquirido em seus treinamentos de cavaleiro. Era para ser um duelo de brincadeira, mas Gilles o levou a sério, matando o colega com uma estocada certeira de sua espada.
Desde criança, entretanto, ele já mostrara a sua imensa perversidade matando e esquartejando animais. Dizem que ele fazia isso com uma fúria e uma frieza quase ritualística, e já nessa época demonstrava possuir um espírito místico e uma personalidade sinistra e demoníaca, que assustava os seus parentes e amigos.
Agressivo por natureza e perverso por instinto, logo foi atraído pela carreira militar e entrou para o exército do pretendente ao trono francês, o Delfim Charles, mais tarde, Charles VII, rei da França, coroado por obra e graça da heroína francesa, Joana D!arc. Sua posição como general das tropas francesas o levou a conhecer a jovem donzela guerreira, com quem estabeleceu uma sólida e fiel amizade que durou até a prisão e morte dela na fogueira. Gilles foi um dos principais comandantes de tropas a lutar ao lado de Joana, e consta que ele a idolatrava como a uma verdadeira santa. A prisão e morte de Joana provavelmente foi um dos motivos de sua revolta contra a Igreja e a válvula de escape de suas inclinações para o satanismo.
Aliás, Gilles de Rais e Joana tinham personalidades muito parecidas. Ambos eram místicos e fanáticos. Ambos acreditavam que uma orientação de ordem superior informava suas ações. Por isso lutavam com denodo, atacando os inimigos sem medo e sem piedade, fazendo das batalhas em que participavam, mais do que uma ação militar, uma missão verdadeiramente religiosa.
Joana D’Arc acreditava que Deus havia escolhido a ela para libertar a França do domínio inglês. Gilles de Rais acreditava que poderia conquistar um poder ilimitado e transcendental através de práticas ritualísticas que envolviam, principalmente, o derramamento de sangue humano.
Enquanto houve guerra e ele pode derramar o sangue dos seus inimigos no campo de batalha, Gilles de Rais aplicou nas ações militares toda a sua habilidade para matar. Com isso tornou-se um herói para os franceses e um respeitado soldado, temido pelos inimigos. Ganhou prestígio, fama e riqueza após as vitórias que fez de Joana D’Arc a maior heroína de França. Por conta dessas vitórias Gilles de Rais se tornou um dos maiores barões de França.
Após a morte da sua grande inspiradora Joana D’arc e a derrota dos ingleses, a paz entre os dois reinos foi selada durante algum tempo e Gilles se viu sem o seu principal esporte, que era a guerra. Casou-se, mas logo viu que esse tipo de vida não fazia o seu gênero. Informações sobre o seu caráter homossexual logo começaram a ser veiculadas. E também logo começaram a ser comentadas as estranhas práticas às quais ele se entregava, no segredo dos seus soturnos e misteriosos castelos de Tiffauges e Machecoul.
Na região da Bretanha, onde ficavam seus domínios, um grande e terrível mistério começou a preocupar os habitantes daquela localidade. Num período de oito anos, cerca de mil garotos, com idades variáveis entre 7 e 11 anos desapareceram sem deixar rastros. Isso era comum naqueles tempos, em que crianças eram raptadas por ciganos e por bandidos, para serem vendidas como escravos e outros fins não confessáveis, como sacrifícios rituais e orgias sexuais, muito comuns entre os devassos cortesãos daquela época.
 Logo se espalhou pela região a notícia de que eram demônios que surgiam à noite e levavam os meninos. Outra versão dizia que era a própria Igreja que raptava os garotos e os trancafiava em conventos para serem transformarem em padres, já que na época a Igreja passava por um momento de crise e ninguém queria ser padre.
Todavia, em seu castelo, Gilles de Rais havia fundado uma estranha Confraria que cultuava todo tipo de magia e superstição que havia na época. Lá haviam laboratórios de alquimia, onde os adeptos trabalhavam em busca da pedra filosofal, usando sangue humano como matéria prima; haviam salões e locais preparados especialmente para bruxos e feiticeiras praticarem seus rituais, e salas especialmente preparadas para ele e os sádicos membros da sua estranha seita executarem seus satânicos rituais.
Suas reuniões eram verdadeiros banquetes orgíacos nos quais se praticavam a sodomia e os mais aberrantes comportamentos sexuais. Mas os momentos culminantes eram aqueles em que os meninos raptados pelos membros da estranha Confraria eram torturados, estuprados e assassinados no cumprimento de um estranho e satânico ritual, que segundo seus acusadores, tinha por objetivo obter a vida eterna. 
No começo do ano de 1440 uma investigação feita por ordem da Igreja acabou descobrindo as atividades de Gilles de Rais e sua estranha seita. E logo ficou patente que o desaparecimento dos meninos da Bretanha tinha a ver com os macabros rituais que eram praticados em seus castelos. E assim teve início um dos mais emblemáticos processos da História da luta do homem contra os males que assolam sua mente, nas épocas em que a escuridão e a ignorância se tornam dominantes.
 
Giles de Rais, o principal acusado, era um homem que se dizia temente a Deus. Ostentava os títulos de primeiro barão da Bretanha, marechal de França, grande senhor feudal, companheiro de armas de Joana d’Arc, a maior heroína do povo francês, com quem compartilhou da sua fé e das vozes que a inspirava.
Cometer crimes contra a fé foi exatamente a acusação que lhe foi feita. O libelo de acusação, redigido pelo Bispo de Nantes, fala em pactos demoníacos, prática de sodomia com caráter sacrílego, violação de privilégios eclesiásticos, assassinatos rituais, no curso dos quais se contabilizavam mais de 600 vítimas, todas elas, crianças entre 7 e 11 anos.
Gilles de Rais tinha na época 34 anos. Nas atas do processo que o condenou, o que mais impressiona são suas próprias confissões dos crimes que cometeu e os motivos pelos quais os cometia. Não os negou, nem às circunstâncias em que foram cometidos. “Eram lindas crianças,” disse ele. “Eu as estrangulava. Quando elas desfaleciam, praticava nelas o vício da sodomia. Quando estavam mortas, beijava nos lábios alguns dos rostos mais bonitos” confessou ele em delírio, como se estivesse em pleno transe.
Inquirido dos motivos pelos quais fazia coisas tão horrendas, respondeu calmamente: “Não procurava senão o mais puro e completo deleite carnal. O único sentimento capaz de levar um espírito ao que chamais de paraíso.”
“Por que razão”, prossegue ele em seu depoimento, “nesta hora em que já estou desligado de tudo quanto é terrestre, vos ocultaria que ao praticar sodomia, ao matar e reduzir a pó tantas belas crianças, não fiz mais do que procurar a alegria que me davam os seus corpos quentes primeiro, depois gelados entre meus braços? Por que razão vos ocultaria eu que essa alegria se prolongava ainda quando, com as minhas mãos esquartejava, como animais no matadouro, aqueles que acabava de amar? Como negar que sentir o odor de sua carne queimada me lançava numa forma de desmaio, de prazer indizível, que se assemelhava ao ingresso no paraíso?”
Gilles de Rais foi condenado e excomungado no tribunal da Inquisição, mas sendo um barão da corte francesa, escapou da fogueira, sentença ritual que era praxe para todo condenado por heresia, bruxaria, satanismo e práticas afins. A única coisa que parecia incomodá-lo era a excomunhão. Não obstante o caráter perverso que tinha, e a monstruosidade de seus crimes, a idéia de que os fazia com espírito religioso o levava a justificar tudo.
Não temia a morte, mas tinha receio de perder o beneplácito das potências luciferinas que cultivou, por que, segundo confessou aos seus inquisidores, essa era também uma forma de cumprir os desígnios de Deus e honrar a sua amada Santa Madre Igreja. Assim como sua santa e dileta amiga Joana D!arc, ele também ouvia suas vozes. As vozes de Joana a mandava matar ingleses para libertar a França. As de Gilles o incitava a sacrificar e sodomizar crianças para libertar suas almas. Dessa forma tudo se justificava.
Diferentemente de Joana, cuja condenação foi orquestrada por motivos puramente políticos, já que ela foi julgada justamente pelos ingleses, os inimigos a quem combateu, o sádico satanista e serial killer Gilles de Rais foi indultado pela Igreja após pedir perdão e confessar todos os seus crimes. O bispo de Nantes, presidente do Tribunal, fez então a clássica pergunta que o tribunal da Inquisição fazia a todos os criminosos desse tipo: “Queres agora, abominando teus erros, tuas evocações e teus outros crimes, que te fizeram sair da fé católica, ser reincorporado á Igreja, tua Mãe, entregando-te de novo a ela?”
Essas mesmas perguntas foram feitas a Jacques de Molay e seus companheiros templários cerca de um século e meio antes; fora feita também a Joana D!arc, momentos antes de ser levada à fogueira  A que se saiba, nem os líderes templários nem Joana responderam afirmativamente, mas Gilles de Rais sim.
E assim, caído de joelhos, o maior serial killler da História mal conseguia acreditar no que ouvia. Estava absolvido pela Igreja. Seu espírito não iria sofrer as penas do inferno. Ele chora e suspira. E ante tais demonstrações de arrependimento, o tribunal eclesiástico decide readmiti-lo nas hostes católicas, retirando a acusação de heresia. Com toda a contrição e fervor com que praticara seus crimes Gilles pede humildemente a anulação de sua excomunhão. Jean de Malestroit, o bispo de Nantes, presidente do tribunal, o absolve e o reintegra na congregação dos fiéis católicos, admitindo a sua participação dos sacramentos. Dessa forma o trabalho do tribunal eclesiástico está encerrado e o espírito do Senhor das Trevas, como era chamado o perverso barão da Bretanha, estava em paz. “Vai em paz, monsenhor de Rais”, diz o bispo. “Daqui pela frente, a Igreja nada mais pode fazer por ti nem contra ti. A decisão agora cabe ao braço secular”.
Mas isso, para Gilles, é o de menos. Morrer ele já sabe que irá. Deus, através da Igreja, perdoa, mas a sociedade não. A sociedade exige o seu sangue por conta do sangue inocente das centenas de crianças que ele matou no curso das suas práticas satânicas. A Igreja pode fazer acordo com o Diabo para enganar Deus, mas a sociedade precisa ser implacável na defesa dos seus valores porque se trata da sua própria sobrevivência.
Do tribunal civil ele sabe que não escapará. Mas para ele isso pouco importa. Já conquistou o seu objetivo, que era tomar o céu de assalto. Daí que venha a tortura e a forca. O seu espírito ganhara a prerrogativa de viver eternamente. Assim, se Joana D'arc era a emissária de Deus. Gilles, para contrabalançar, se fez o emissário do Diabo.
 
Ele foi enforcado no final do ano de 1440. Não foram poucos os que defenderam as práticas de Gilles de Rais. Houve quem dissesse que as crianças que ele assassinou se tornaram anjos graças ao caráter sacrificial de suas mortes. Também não faltou quem cultuasse sua memória fazendo dele um verdadeiro santo.
Em 1793 sua tumba foi profanada e seus ossos foram roubados. Diz-se que nunca mais foram encontrados e se tornaram relíquia de uma determinada seita secreta. No lugar do seu túmulo, os admiradores do terrível mago das trevas ergueram um santuário, onde durante muito tempo mulheres grávidas costumavam peregrinar para orar pedindo uma gravidez tranquila e leite abundante. Esse santuário foi demolido por ordem da Igreja no século XVI, mas consta que até os primeiros anos do século XX, no lugar onde ele se erguia ainda se cultuava a Virgem do Bom Parto e do Cria-Leite. 
Isso mostra que a loucura humana não tem limites. Só nos resta mesmo contar com a benevolência de Deus e com o seu justo julgamento para que o equilíbrio da nossa razão, muitas vezes perdido em virtude da nossa própria ignorância e perfídia, seja mantido para herança e salvaguarda dos nossos descendentes.
          Mostra também que, se for preciso, para salvaguarda dos interesses da hierarquia dominante, até o Diabo será julgado e absolvido pelo tribunal da consciência humana.

 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 19/10/2015
Alterado em 19/10/2015


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