João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


“ Na verdade, duvido que haja para o ser pensante
momento  mais  decisivo  do  que   aquele em que,
caindo-lhe  a  venda  dos olhos,   ele descobre que
não é um elemento perdido nas solitudes cósmicas,
mas que  é  uma  vontade  de  viver  universal  que
nele converge e se hominiza.”
                                  Pierre Teilhard de Chardin

 
      
Houve um tempo na existência do universo em que as estruturas da terra e do céu estavam ligadas entre si de forma tal que não se podia distinguir umas das outras. Nesses tempos gloriosos homens e deuses partilhavam dos mesmos atributos e eram reconhecíveis apenas pelo papel que cada um exercia na construção do edifício universal. Todos tinham plena consciência de suas funções e responsabilidades para com a manutenção da ordem e do equilíbrio no cosmo. Naquele tempo, tudo estava em tudo, não havia distinções de espécie alguma, o que existia no céu era igual ao havia na terra, o que estava em cima era igual ao que estava em baixo, o dentro e o fora eram indistinguíveis, o sagrado e o profano, o bem e o mal, a luz e as trevas, todos os contrários eram apenas verso e reverso de uma moeda única.
 
  1. Essa configuração estrutural do pensamento humano aparece claramente em todas as literaturas de cunho religioso ou filosófico dos povos antigos. Seja no Egito dos faraós, ou entre os povos da Mesopotâmea, ou na Índia dos brâmanes, onde o rei era considerado um deus, cuja missão era proporcionar uma ligação entre os seres humanos e as divindades protetoras do país, a ideia de que a terra e o céu faziam parte de um todo parece ter sido uma espécie de arquétipo compartilhado por todos os povos daqueles tempos. Essa forma de pensar aparece também na Bíblia, onde Deus faz o céu e a terra como partes de uma mesma estrutura, diferenciáveis apenas pelos seus habitantes, já que na terra Ele colocou as espécies vivas e no céu a população angélica. Todavia, os melhores exemplos dessa configuração vêm da antiga filosofia chinesa do Taoísmo, onde céu e terra são reflexos um do outro, e só existem por oposição, um dando sustentação á existência do outro. Esse pensamento, expresso admiravelmente na metáfora yin/yang (positivo-negativo), inspirou também os filósofos helenistas que universalizaram esses conceitos através das correntes místicas do neoplatonismo, mais conhecidas pelo rótulo de hermetistas.[1]
 
      Num universo assim composto, a dialética universal aparecia apenas como uma forma pela qual a Energia dos Princípios podia agir para a construção do real existente, unificando pela ação dos contrários a força interativa que dá vida ao cosmo. A idéia inscrita no vocábulo universo queria dizer exatamente o que o termo indica, ou seja, o único, o indivisível, a versão singular e original do pensamento divino, manifestado como realidade em multifacetadas formas, infinitas identidades, mas todas ligadas, indistintamente, ao seu Principio Criador.     
      Os livros sagrados das diversas religiões e as tradições de todos os povos da terra evocam essa época mágica em que os deuses falavam com os homens face a face. Do Extremo Oriente nos vêm a lenda dos Senhores de Dzyan, iniciadores da civilização humana, e dos gigantes de cabeça redonda, detentores de outro saber, que viveram na terra antes do dilúvio. Restos dessa civilização ainda podem ser encontrados nas crônicas bíblicas e nas lendas e tradições dos hindus, dos tibetanos, dos incas e dos astecas, e em muitas outras memórias, nas mais diferentes culturas que existem e já existiram sobre a face da terra.
     A Bíblia também nos fala desse tempo em que os homens viviam centenas de anos, tinham estaturas imensas e suas filhas se juntavam aos anjos para gerar os audazes nefilins; evoca também a lembrança do paraíso terrestre, onde a criação celeste e humana convivia sob os olhares de deuses benignos e protetores.

 
  1. Referência aos filhos dos anjos caídos, que foram gerados com as filhas dos homens, aos quais a Bíblia chama de nefilins. Quanto aos Senhores de Dzyan, a referência é sobre um suposto pergaminho chamado Estâncias de Dzyan, ao qual a escritora esotérica Helena Petrovna Blavatsky teria tido acesso quando de sua estada no Tibete. Em um dos volumes da sua extensa obra, A Doutrina Secreta, ela alega ter estudado estes pergaminhos, os quais teriam sido escritos ha mais de seis mil anos, por uma civilização desaparecida. Tais manuscritos, segundo essa autora, foram escritos em folhas de palmeira e submetidos a um processo químico desconhecido, de tal modo que eram resistentes ao fogo e á agua. As Estâncias de Dzyan, diz Blavatsky, contariam a história de como a humanidade evoluiu da sua matriz animal para a sua atual forma humana e construiu a sua civilização. Esses pergaminhos teriam sido redigidos em uma língua hoje extinta, chamada Senzar, que somente alguns iniciados nos Mistérios da religião do Tibete sabem ler. Historicamente acredita-se que as tais Estâncias de Dzian sejam apenas uma imaginosa invenção da criadora da Teosofia, que se inspirou nos Preceitos de Ouro e os livros de Kiu-Te, tratados que veiculam preceitos do budismo esotérico praticado por algumas seitas tibetanas.       
    Do Egito á Mesopotâmia, da Índia á China, dos indígenas da Polinésia e da América pré-colombiana aos esquimós, todas as tradições recordam, de certa maneira, a memória de um mundo que vivia em paz, unificado por dentro e por fora, indistinto entre suas estruturas, perfeito em todos os sentidos, obedecendo apenas ás leis da constituição universal, posta na natureza por obra e graça do Grande Arquiteto do Universo.
          A Atlântida e a Lemúria, a Tule sagrada das lendas, o Jardim das Hespérides, o Éden bíblico e o mítico país de Xangrilá, todos esses mitos grandiosos serão apenas desejos inconscientes, resultantes da ansiedade humana de encontrar, em algum lugar algures, ou até dentro de si mesmo, um refúgio onde se possa descansar da árdua tarefa de viver, ou terá mesmo existido em algum tempo, como realidade física, esse reino de tranquilidade e paz? Jamais o saberemos, mas, para que tal experiência tenha sido registrada na memória coletiva da humanidade, e de tempos em tempos reapareça como sonho, é preciso que tal lugar tenha, de alguma forma, existido.


    A Bíblia também hospeda essa crença no mito do Jardim do Éden, onde Deus teria colocado o primeiro casal, para que eles dessem início á humanidade. Esse mito, que provavelmente foi inspirado em lendas sumerianas, já que os antigos povos da Mesopotâmia também cultivavam a lenda de um lugar utópico, existente na aurora dos tempos, onde a criação humana vivia em perfeita felicidade e paz, aparece igualmente nas tradições religiosas de vários outros povos. Parece ser um arquétipo de compar- tilhamento coletivo pela memória da humanidade, oriunda talvez dos primeiros grupamentos humanos, quando a luta pela sobrevivência ainda não havia evoluído para uma forma de competição entre as próprias tribos habitantes de um mesmo território. O paraíso, se um dia existiu, deve ter sido uma região que fornecia alimento suficiente para todos os seres humanos que nela habitavam, de forma que a sobrevivência deles não dependia da supremacia do mais forte sobre o mais fraco.
          Os homens, em todos os tempos, sempre sonharam com utopias. Do Egito dos faraós, governado pelo Principio da Maat, á República de Platão, governada pelos sábios, ao império de Açoca, com sua política orientada pelos Nove Desconhecidos, ás utopias de Thomas Mórus e Tommaso Campanella, governada pelos Notáveis, a mente humana sempre convergiu para a idéia de um estado perfeito de ordem, harmonia e felicidade, onde o divino não conflita com o humano e o sagrado e profano se harmonizam.
          As utopias sempre frequentaram os sonhos da humanidade como esperança de implantação, na terra mesmo, daquele paraíso que as religiões prometem para o outro mundo. Para realizá-las os homens geralmente se reúnem em grupos, cujos elementos são cooptados pela convergência de interesses comuns ou de atributos pessoais. Dessas uniões acabam por surgir castas, guildas, associações, clubes, confrarias, partidos e outros grupos de interesses, que se unem com um propósito comum. No antigo Egito, os principais santuários abrigavam diferentes castas de sacerdotes, reconhecíveis por seus graus de iniciação nos mistérios da religião. Eram esses Mestres que detinham, praticamente, o poder, pois no estado egípcio não havia uma separação entre o político e o religioso. Da mesma forma, vamos encontrar uma organização semelhante no estado teocrático que Moisés organizou para os israelitas. Muito mais que os preceitos do Decálogo, era o espirito da confraria que ligava o povo de Israel, fazendo com que um vasto contingente de pessoas desfrutasse do conceito da Irmandade, para mantê-los unidos numa moldura cultural que subsiste até hoje e tem sido a principal responsável pela sobrevivência desse povo ao longo dos séculos, apesar de todas as vicissitudes por ele sofridas no decorrer da Históri

    É impossível entender a antiga sociedade egípcia sem levar em conta a idéia que eles faziam do símbolo religioso representado pela palavra Maat. Essa palavra é encontrada em sua literatura como designativa de diversas coisas. Em primeiro lugar Maat, era uma deusa, protetora da justiça e das boas causas. No panteão egípcio ela era conhecida como sendo a esposa do deus Thot (conhecido pelos gregos como Hermes). Como deusa governadora da Justiça, ela presidia uma espécie de tribunal divino (Os Senhores de Maat) que julgava o homem após sua morte). Em termos sociológicos Maat era uma manifestação do poder divino na terra, para manter os homens em um estado permanente de harmonia e ordem.
Maat, portanto, além de ser uma das deusas mais importantes do panteão egípcio, podia ser entendida como uma espécie de energia que proporcionava unidade ao universo e prodigalizava condições para um pensar e um agir destinado á manutenção desse estado, através de um clima de ordem, harmonia e equilíbrio entre todas as forças da sociedade.
Maat, portanto, era, ao mesmo tempo, uma deusa e um conceito filosófico dos mais importantes na vida dos egípcios. Nas esferas celestes, ou na terra, ou na estrutura psicológica dos seres humanos, Maat devia ser praticada como principio de vida e cultuada como atributo divino na terra para realizar essa harmonia. Maat devia orientar os passos dos homens e dos deuses. Quando ela era desprezada no céu implantava-se a desarmonia naquelas esferas e o desequilíbrio que lá se verificava instalava-se também na terra. Da mesma forma, quando ela era esquecida na terra a desordem se refletia no céu. “Viver segundo a Maat”, para o antigo egípcio, era o comportamento análogo ao que se exige do maçom, que deve “ levantar templos á virtude e masmorras ao vício.”

      Na Índia conta-se a história do Imperador Açoca, famoso monarca que no século III a. C. reinou sob um vasto território que ia desde as atuais cidades de Calcutá a Madrasta. Esse rei, após ter sido convertido ao Budismo, desejou fazer de seu reino um lugar onde todas as pessoas pudessem desfrutar de segurança, paz e felicidade perfeitas. Sua crença era a de que a mente humana, orientada sempre para a aquisição de bens materiais, constitua o principal obstáculo para a construção desse estado ideal. Destarte, imaginou um meio de fazer com que os homens fossem impedidos de usar suas inteligências para o mal. As ciências e todo conhecimento técnico existente na época passaram a ser controlados pelo Estado, através de uma sociedade secreta conhecida como os Nove Desconhecidos. Essa sociedade, cuja existência atravessou os séculos e existiria ainda hoje, seria responsável pela orientação da pesquisa científica em todo o mundo. Liberando parte do conhecimento e ocultando outros, agindo sempre de forma a impedir que determinadas descobertas, prejudiciais á humanidade, sejam divulgadas, essa Comunidade de Sábios exerceria uma espécie de controle sobre o saber humano, evitando que o equilíbrio mundial se rompa pela sua má utilização.[2]
     
Na Grécia clássica os filósofos sempre arrogaram para si o monopólio da sabedoria, e nessa condição se tornavam preceptores de príncipes, reis e outros potentados. Com isso se colocavam sempre próximos ao poder político, e mesmo sem exercê-lo diretamente, acabavam por fazê-los nos bastidores. Com raras exceções, todos esses sábios eram iniciados nos Mistérios de Elêusis, da mesma forma que no Egito a elite se formava nas disciplinas dos Mistérios de Ìsis e Osíris.
Os chamados Mistérios, eram, na sua origem, festivais religiosos que tinham por objetivo obter o beneplácito dos deuses para que estes proporcionassem boas colheitas. Com o tempo esses eventos adquiriram conformações políticas e religiosas que permitiram o surgimento de uma elite política e intelectual que identificava a classe dominante nas sociedades antigas. Ser iniciado nos Mistérios passou a ser uma distinção só concedida a determinadas personalidades, que por seu destaque na vida politica, social, militar ou intelectual, eram considerados “eleitos dos deuses”.

                                               
       No inicio do cristianismo se desenvolveram as Escolas Gnósticas. Ora formando seitas religiosas, ora desenvolvendo grupos de pensamento semelhantes ás antigas escolas gregas, esses filósofos heréticos legaram á história do pensamento universal algumas das concepções mais originais acerca da tradição iniciática que sempre acompanha a idéia da utopia. Desses cultores do cristianismo esotérico, certas Ordens de Cavalaria, especialmente os Templários, os Hospitálários e os Cavaleiros Teutônicos herdaram a aura de misticismo e mistério que sempre acompanhou as sagas desses “Cavaleiros de Cristo”. Se pesquisarmos a história oculta dessas instituições, encontraremos sempre uma idéia, conectada de um lado á uma tentativa de realização política, e de outro á uma esperança de ascensão espiritual; e que uma e outra podiam ser alcançadas através da segregação do saber em pequenos grupos e da prática iniciática para a sua divulgação.
      O reino ideal do espírito nunca pode ser separado da ordem social perfeita, e a idéia da utopia integra essas duas estruturas organizacionais, sendo impossível a realização de uma sem que a outra também seja buscada.
 
  1. É nesse sentido que vemos o cristianismo primitivo (o reino de Deus pregado por Jesus) como uma utopia, pois só assim podemos entender a assertiva de Jesus de que “seu reino não era desse mundo”, pois se circunscrevia a um grupo de eleitos que praticaria uma filosofia ascética de desapego aos bens do mundo, vivendo apenas e tão somente para as coisas do espírito. “Buscai apenas o reino de Deus e sua justiça e todas as coisas vos serão acrescentadas” disse Jesus. Essa é a mais perfeita definição de uma utopia que jamais foram feitas. Fundamentadas nesse conceito muitas seitas religiosas desenvolveram seus estatutos. Uma delas, inspiradoras das Ordens de Cavalaria fundadas pelos cruzados na Terra Santa foi a Ordem dos Monges de Cister, lideradas pelo famoso monge Bernardo de Clairvaux, redator da regra dos Cavaleiros Templários.

          Na Renascença, filósofos como Giordano Bruno, Thomas Mórus e Tommaso Campanella, entre outros, compartilharam dos mesmos sonhos que alimentaram o espírito do Imperador Açoca, dos sacerdotes egípcios e dos filósofos hermetistas gregos. O primeiro criou um grupo de pensadores dedicado ao estudo das ciências ocultas, chamado os Novos Atlantes, que segundo ele, deveria manter, desenvolver e transmitir, de uma forma segura, a verdadeira sabedoria; o segundo imaginou uma sociedade ideal, confinada numa ilha imaginária, livre de dogmas religiosos e preconceitos de classe, onde seus cidadãos viveriam virtuosamente, cultivando a justiça, a moderação, a sabedoria e a tolerância. Campanella imaginou a Cidade Mágica do Sol, onde ele exerceria o cargo de sumo sacerdote e profeta, e o governo seria exercido por uma plêiade de sacerdotes detentores da totalidade do conhecimento universal. Campanella chegou mesmo a lutar por seu sonho, organizando uma revolução na Calábria, em 1598, com a intenção de implantar ali a sua utopia.[3]
           Em 1622 uma Paris comovida tomou conhecimento da existência de uma Fraternidade de Magos, que se diziam detentores dos grandes segredos do universo. Essa fraternidade se intitulava Os Irmãos da Rosa-Cruz. Diziam ser membros de uma sociedade internacional e secreta, que reunia os homens de saber em todo o mundo, cooptados para trabalhar pela “libertação do homem de seus erros e vícios mortais”. Depois se descobriu que tudo não passara de uma farsa genial, perpetrada por um grupo de filósofos e alquimistas alemães, talvez para atrair a atenção para seus trabalhos, ou então para ocultar, sob uma capa de mistério, uma prática condenada e reprimida pelo pensamento religioso oficial. De qualquer modo, farsa ou não, a pretensa sociedade dos Irmãos da Rosa-Cruz inseriu-se na história do pensamento ocidental e nele exerceu enorme influência, dando origem á uma extensa atividade cultural com esse nome e servindo, inclusive, como núcleo arquetípico para o desenvolvimento de outra sociedade que marcou e ainda marca profundamente a História dos povos do mundo, que é a Maçonaria.[4]
     
    (continua)        
     
     
[1]Referência ao deus grego Hermes, protetor das artes. Os hermetistas ficaram conhecidos principalmente por serem adeptos da prática da alquimia, arte essa que, segundo se crê, também teve origem na China, de onde os árabes a trouxeram para o Ocidente.
[2] Citado por Pawels e Bergier em seu livro O Despertar dos Mágicos.
[3] A Cidade Mágica do Sol- Tommaso Campannela, Ed. Martin Claret, São Paulo, 2005
[4] Ver, nesse sentido as obras essenciais da historiadora Frances Yates. Giordano Bruno e a Tradição Hermética e O Iluminismo Rosa-Cruz, ambas publicadas pela Ed.Cultrix, São Paulo.
 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 01/12/2015
Alterado em 01/12/2015


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