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Dizem que coisa ruim não morre nunca e talvez seja verdade. Eu sei o porquê disso. É que se o mal sumisse do mundo, o bem também iria com ele, já que bem e mal são faces de uma mesma moeda. E a vida é um jogo de cara e coroa. A gente joga a moeda para cima e espera ela cair. Se cai de um lado é bem. Se cai de outro é mal. Numa cidade do interior de Minas havia um fazendeiro muito abastado, que segundo dizem, tinha tanta riqueza quanta ruindade de alma. Seus empregados que o digam. Viviam como escravos, trabalhando como mouros, de sol a sol, em suas fazendas de café e criação de gado leiteiro, para fazer dele o rei do café com leite, produtos que faziam a riqueza daqueles tempos na terra de Juscelino e Tancredo Neves. E no fim do mês, quando iam buscar os seus salários, esses pobres coitados, no lugar de receber seus caraminguás, descobriam que estavam devendo para o patrão ao invés de ter algo para levar para casa. Pois o coisa ruim do fazendeiro vendia para eles os mantimentos, naquele velho sistema da caderneta, onde o comprador fica sabendo quanto custa o produto só quando vai acertar a conta no fim do mês. E assim ele criou uma nova forma de escravidão, que diga-se a bem da verdade, ainda existe até hoje em muitas fazendas do Brasil. A fama desse fazendeiro era terrível. Suas fazendas eram guardadas por dezenas de jagunços armados que atiravam sem dó nem piedade em qualquer intruso ou incauto que se arvorasse em falar em direitos humanos por lá. Diga-se de passagem, que nesse tempo não existia ainda o MST, mas já havia um insipiente movimento de trabalhadores rurais, que começavam a formar as chamadas Ligas Camponesas. Quem já passou dos setenta deve se lembrar do Chico Julião, advogado que lá pelos idos de 1964 andou liderando os trabalhadores rurais em uma revolta pelos campos, revolta essa que ajudou a precipitar a implantação da ditadura militar no Brasil.
O fato é que esse fazendeiro de quem vos falo era uma dessas pragas que só o sistema político-econômico de um país cheio de leis que ninguém cumpre consegue produzir e sustentar. E ele era tão ruim quanto avarento. Nem o Scrooge, antes de ver o fantasma do seu igualmente avaro sócio falecido preso em correntes no inferno, era tão avarento quanto ele.[1]Sua avareza era tal que nem quis formar família para não ter que gastar dinheiro com a criação e a educação de filhos. E quando sentiu que a morte estava vindo buscá-lo, pegou toda a sua fortuna e transformou-a em ouro, jóias e dinheiro vivo, que colocou em várias sacolas, as quais, segundo dispôs em testamento registrado em cartório, deviam ser enterradas com ele. Testamento esse que foi entregue ao pároco da igreja local, a quem o fazendeiro havia nomeado como seu inventariante.
Até as fazendas e outras propriedades que possuia ele vendeu antes de morrer e transformou em espécie, que foram enterradas com ele. Não queria deixar um tostão para ninguém. Nem para parentes, nem para o governo. De sorte que, quando foram abrir o inventário dele não se encontrou um único alfinete que se pudesse legar a alguém.
Também, o único parente vivo que esse miserável fazendeiro tinha era um irmão, que forçoso é reconhecer, não era muito melhor que ele. Esse era um estroina vagabundo que vivia de trambicagens e estelionatos. Aproveitando o poder econômico do irmão, elegera-se deputado várias vezes e essa, na verdade, era a única ligação que os dois mantinham. O fazendeiro o apoiava na política, patrocinando a vigarice dele e ele, na política, protegia a safadeza do irmão, na condução da sua atividade econômica avarenta e predatória.
Afeto e consideração nunca houve entre os dois. Na verdade, o irmão político, que sabia da imensa fortuna que o irmão fazendeiro acumulava, rezava toda noite para este morresse logo para que ele, único herdeiro, pudesse abocanhar tudo. E há quem diga que foi o irmão deputado que precipitou a morte do irmão fazendeiro, envenenando-o aos poucos, colocando pequenas doses de arsênico na pinguinha que ele tomava todos os dias. Tanto que o fazendeiro morreu relativamente jovem, dizem, de uma úlcera que o fez vomitar todas as tripas antes de morrer.
Pode-se imaginar a decepção e a raiva do deputado quando descobriu que o irmão fazendeiro não tinha deixado um único vintém para ele. Depois de muito pesquisar e indagar, ele descobriu que o irmão havia vendido tudo em vida e nomeado o pároco da cidade como seu testamenteiro. Mas descobriu também que nem a igreja, nem o padre, haviam herdado coisa alguma, pois não constava, em lugar nenhum, que eles tivessem recebido alguma herança.
─ Só pode ter sido enterrado com ele ─ disse o padre, ao ser interpelado pelo deputado. ─ Lembro-me que ele fez questão de constar, em seu testamento, que algumas sacolas fossem enterradas com ele. Disse que se tratava de cartas e objetos pessoais, que ele estimava muito. Como sabe, seu irmão era um sujeito muito excêntrico, por isso não desconfiei de nada.
─ Bem que notei que o caixão estava meio pesado, mas pedido de defunto é sagrado ─ completou o padre, com um sorriso meio maroto...
Eram cerca de duas horas da manhã, quando dois indivíduos, em intervalos de cinco minutos, um após o outro, escalaram o muro do cemitério. O primeiro levava uma pá e um pé-de cabra, os quais atirou por cima do muro antes de pular. O segundo indivíduo usava uma batina preta e tinha um longo e coruscante punhal pendurado na corda com a qual amarrava a batina na cintura. Ele esperou que o primeiro desaparecesse entre os túmulos para depois segui-lo, sorrateiramente. Estava claro que o primeiro não sabia da presença do outro.
O deputado (pois era ele mesmo o sujeito da pá) cavou durante uma hora até dar com o esquife do irmão. Depois de limpar, cuidadosamente, a terra que o cobria, meteu a ponta da alavanca na tampa do caixão, fazendo saltar as tarraxas que o fechavam. Afastou a mortalha que cobria o rosto do irmão e praguejou.
─ Seu miserável desgraçado avarento ─ murmurou ele. ─ Pensou que poderia levar o seu dinheiro para o inferno com você?
E começou a remexer entre as flores, ainda frescas, que cobriam o corpo no caixão.
Logo deu com as sacolas, cheia de ouro, jóias e dinheiro vivo. Rindo como um demônio ao conquistar mais uma alma, ele logo atirou as sacolas para fora do túmulo. Mas antes de sair não pode deixar de zombar, pela última vez, do irmão que o sacaneara. Então pegou a mão fria do defunto e apertou-a, com desprezo e sarcasmo, dizendo: ─ Obrigado, meu avarento irmão. Estou aliviando o peso da sua miserável alma. Quem sabe assim você chega mais rápido ao inferno.
Mas o sorriso desapareceu imediatamente do seu rosto ao sentir que não conseguia se desvencilhar do aperto de mão que dera ao defunto. Por mais força que empregasse, não conseguia soltar a mão. E ao olhar para o rosto do irmão, viu nele o esboço de um sorriso zombeteiro e malvado se formando nas boca lívida e fria do defunto.. Mas o golpe fatal, que rompeu as artérias do seu coração, veio quando ele percebeu os lábios do defunto se abrirem para pronunciar as mudas palavras, que só os seus ouvidos captaram:
─ De nada, meu desprezível irmão. Eu é que agradeço por você vir comigo nesta viagem.
Eram cerca das três horas da manhã quando um vulto vestido com uma batina negra pulou o muro daquela cidade dos mortos, de volta para a rua escura e vazia que dava para os fundos do cemitério. Antes de pular jogara por cima do muro cinco pesadas sacolas, três das quais emitiram um som metálico ao bater no chão. Ao chegar na igreja, carregado com as sacolas cheias de ouro e dinheiro vivo, o padre parou em frente ao altar, ajoelhou-se e rezou, agradecendo a Deus pela dádiva que lhe permitiria agora, fazer pelos pobres daquela cidade tudo que até então não conseguira fazer.
E principalmente, deu graças a Deus não ter precisado usar o punhal que levara na cinta. Pois se precisasse ter usado, ele não teria hesitado.
“ Deus escreve certo por linhas tortas, "murmurou, para si mesmo, o padre."Pois o bem e o mal” concluiu ele, fazendo o sinal da cruz três vezes, “são apenas os dois lados de uma moeda”. Quando se quer obter um, não se pode recuar ante a possiblidade de cometer o outro.
[1] Referência ao personagem Ebenezer Scrooge, de Charles Dickens, em seu famoso “Conto de Natal”, de 1843. Esse conto serviu de inspiração para Walt Disney criar o Tio Patinhas.
O DILEMA DO PADRE
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 07/12/2015
Alterado em 09/12/2015
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