João Anatalino

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A CABALA MODERNA
 
Isaac Lúria e Cabala moderna
            
 A Cabala mística, conquanto tenha sido iniciada pelos filósofos neoplatônicos, com Filon de Alexandria como precursor, e largamente ampliada pelos cabalistas medievais, só alcançou o seu apogeu no início da Idade Moderna, com os chamados pensadores do chamado movimento Rosa–Cruz. Esse apogeu teve em Isaac Lúria o seu grande inspirador. [1]
Com a idéia da transmigação das almas, Luria introduziu na Cabala uma doutrina moral que substituiu o plano messiânico de uma salvação futura, em um mundo alhures, incognoscível e inatingível pela mente humana, como aquele que era pregado pelos cristãos, por uma doutrina de salvação aqui e agora, que seria atingida pela adoção de um comportamento ético e moral, que segundo ele, já estava todo previsto na Torá. Era um sistema que valia não só para a alma do indivíduo, como para toda a humanidade. Com isso ele lançou a tese de que a redenção espiritual estava vinculada á redenção social.
  Essas idéias, como se pode perceber, caíram como uma luva para os pensadores do chamado Século das Luzes, cujos filósofos, não obstante o caráter racionalista das suas pregações, precisavam de um fundo teológico para dar sedimento á sua doutrina, vivendo, como viviam, em uma época em que a questão religiosa dominava a maioria dos espíritos. Assim, se o messianismo místico dos sabataístas forneceu o estofo para os argumentos so ciológicos dos teóricos do Iluminismo, foi o lurianismo que lhes deu a base para a sustentação teológica de suas teses.  Como bem viu Gershom Scholem “o desejo de libertação total, que desempenhou um papel tão trágico no desenvolvimento do niilismo sabataísta, não foi de maneira alguma puramente uma força autodestrutiva; ao contrário, debaixo da superfície da ausência da lei, do antinomismo e da negação catastrófica, poderosas forças construtivas estavam em ação.” [2] 
Não obstante o misticismo que envolvia sua prática, as ideias de Luria e suas projeções no movimento sabataísta, exerceram um papel preponderante na formação do pensamento ocidental, especialmente aquele que emergiu da Reforma protestante. Como diz o autor de Cabala e Contra História, o sabataísmo, no plano teórico, preparou o terreno para o moderno secularismo e o surgimento do Século das Luzes. Isso porque a Lei, expressa na Torá, agora era vista com claros contornos gestálticos, no sentido de que, como Scholem sugere, do ponto de vista cabalístico, ela “não é mais que uma sombra do Divino Nome, do mesmo modo que se pode falar em uma sombra da Lei, cuja projeção é cada vez mais longa ao redor da vida dos judeus. Mas, na Cabala, o pétreo muro da Lei se faz gradualmente transparente. (...) Essa alquimia da Lei é um dos mais profundos paradoxos da Cabala (...).[3]
Quer dizer: a Lei, a Torá, ela não foi dada por Deus como uma rígida displicina que condiciona o comportamento humano a um único padrão de conduta; ao contrário ela serve ao desenvolvimento do universo como um organismo em construção, sempre buscando, em cada conformação, o seu melhor desenho.
A conclusão que se tirava dessa doutrina era a de que o homem, por seu livre arbítrio, sua própria escolha, devia escolher o seu caminho. Não se submetia mais ao poder coercitivo da interpretação literal que dela davam os talmudistas. Na vida espiritual, através da lei do carma e da transmigação das almas, desenvolvidas por Lúria e seus seguidores, podia o próprio homem influir no seu destino. E no terreno da redenção social ele passava a ser o próprio responsável por ela. Era, pois, a libertação total das amarras, que tanto o Judaísmo ortodoxo, quanto a própria doutrina da Igreja Católica, haviam lançado sobre o espírito do homem medieval. Nesse sentido é possível imaginar a tempestade que tais idéias devem ter causado na cabeça das pessoas que estavam, justamente naquele momento, vivendo os episódios que levaram á Reforma protestante e ao movimento que se convencionou chamar de Renascimento.  Nasceram, a partir dessas ideias, as diversas inspirações utópicas que povoaram o pensamento dos intelectuais renascentistas, e o enorme anseio espiritual pelo estabelecimento de uma nova ordem mundial, presente especialmente nas místicas aspirações das rosa-cruzes e de outros movimentos religiosos, políticos e filosóficos, dentre os quais emergiu, no início do século XVIII, a Maçonaria tal qual hoje a conhecemos.[4]
 
A influência da Cabala na Maçonaria
 
Não obstante ter servido de base teológica para um sistema de pensamento tão marcado pelo apelo ao racionalismo, como foi o Iluminismo, pode-se dizer que esse tipo de doutrina (a Cabala mística) estava profundamente impregnado de elementos esotéricos, embora em seus resultados ela almejasse um objetivo bem prático. Sua função era revelar aos seus iniciados os grandes segredos da natureza, mediante os quais se poderia conseguir poder sobre ela. Nesse sentido ela se equiparava, intelectualmente, á alquimia, e em muitos casos as duas tradições conviveram estreitamente, compartilhando os mesmos símbolos. Foi graças á isso que esse ramo mágico da Cabala acabou inspirando vários pensadores místicos cristãos, que viam nela uma forma de conhecimento da natureza. Foram esses filósofos cabalistas os mestres que compartilharam com os pensadores rosacrucianos o desenvolvimento da filosofia oculta e o apostolado do livre pensamento, numa época em que discordar, ou pensar diferente dos doutores da Igreja significava a prisão, a tortura nas masmorras e a morte nas fogueiras. Entre estes pensadores podemos listar os cabalistas Moisés Cordovero (1522- 1570), Jacob Boehme (1575- 1624), os filósofos Pico Dela Mirandola (1463-1494), a quem se atribui a criação da Cabala cristã, Marsilio Ficino (1433-1499), Johann Reuchlin (1455- 1522), pensadores que tiveram grande influência na Reforma, e ainda Cornélius Agrippa (1486- 1535), Giordano Bruno (1548-1600), Guilherme Postel (1510-1581), Cornelius Paracelso (1493-1541) Robert Fludd (1574-1673) e conhecidos ocultistas como Blaise de Vignére, Fabbre d’Olivet, Eliphas Lévi e Estanilau de Guiata, famosos mestres da filosofia oculta e consagrados alquimistas, e ainda Elias Ashmole, Martinez de Pasqually e Luis Claude de Saint Martin, nomes famosos na divulgação da Maçonaria como instituto cultural de abrangência mundial. [5]
Foi através desses intelectuais, chamados “maçons aceitos”, que a tradição cabalística entrou na Maçonaria e forneceu a base espiritualista que encontramos nos temas dos graus filosóficos, na maioria dos rituais maçônicos.
 
A Cabala hoje
 
Com os conceitos desenvolvidos acerca do processo cármico e a teoria da reencarnação, elementos fundamentais para o entendimento da doutrina cabalística moderna, essa tradição acabou derivando, em sua parte filosófica, uma vigorosa disciplina de auto-ajuda, erigindo, ao mesmo tempo em que pugnava por uma liberdade de pensamento estranha aos costumes da época, um edifício cosmológico e ético que viria contribuir em muito para a construção das correntes de pensamento que influenciaram a Reforma religiosa e o sistema filosófico que se seguiu, o Iluminismo. Isso porque a Cabala recuperava a espiritualidade da experiência bíblica, conspurcada, de certo modo, pela doutrina católica, cuja contaminação pela filosofia grega (especialmente a de Aristóteles) era visível. Através dos mitos e dos símbolos cabalísticos, uma nova Gnose estava sendo desenvolvida pelos intelectuais que trilhavam o caminho da Reforma. Grandes escritores, artistas e filósofos, como Dante, Milton, Francis Bacon, Shakespeare, o pintor Rembrandt, Spinoza, Leibnitz, Hegel, Schelling, e principalmente Victor Hugo, Goethe, o poeta William Blake e outros, já nos séculos XVIII e XIX, devem á Cabala algumas das suas mais profundas inspirações. Alguns dos movimentos filosóficos e literários mais importantes da história do pensamento ocidental também sofreram grande influência das doutrinas cabalistas, especialmente da corrente desenvolvida por Isaac Lúria. Citam-se, apenas á guisa de exemplo, os movimentos conhecidos como idealismo e nihilismo, que congregaram vários intelectuais de renome, principalmente na Alemanha e países da Europa central, entre os quais se pode elencar Hegel, Schelling, Nietszche, e o grande Franz Kafka, tido por muitos críticos literários um verdadeiro autor cabalista.[6]
Esse ramo da Cabala é hoje o mais difundido entre os povos de cultura cristã, pois encampa um vasto domínio nas doutrinas de conteúdo moral, sendo utilizado inclusive por profissionais da psicologia e da psicanálise para subsidiar estudos sobre o conteúdo mais profundo da mente humana. O exemplo mais conhecido da aplicação dessa doutrina na psicologia se encontra nos trabalhos do grande psicanalista e pesquisador Carl Gustav Jung.
Jung faz muitas referências à Cabala em seus escritos, especialmente quanto ás relações que ele encontrou entre os sonhos de seus clientes e os símbolos cabalísticos. Em uma de suas obras, ele fala da necessidade de se estudar essa tradição do ponto de vista científico, pois os símbolos e as visões presentes nessa doutrina estão intimamente conectados com o conteúdo psíquico que se hospeda no chamado inconsciente coletivo da humanidade. E a partir das suas descobertas a Cabala passou a ser utilizada largamente por psicoterapeutas de orientação holística e hoje constitui uma poderosa ferramenta de auto-ajuda na resolução dos problemas psicológicos que incomodam a sociedade moderna. 
 
 
[1] A Cabala e Seu Simbolismo, citado, pg. 102
[2] Cabala e Contra História, citado, pg. 101. O sabataísmo é uma corrente cabalística fundada por Shabatai Tizvi (1626 –1676) famoso rabino judeu-turco que se auto nomeou Messias e deu origem á doutrina que leva o seu nome. Essa doutrina também é conhecida como messianismo. Na imagem Isaac Lúria.
[3] Idem, pg. 96.
[4] Ver, nesse sentido, as obras de Frances Yates, Giordano Bruno e a Tradição Hermética e o Iluminismo Rosacruz, ambas publicadas no Brasil pela Editora Cultrix.
[5] História da Filosofia Oculta, op. citado. 
[6] Ver, nesse sentido, a obra de Frances Yates, citada, que mostra, com muita propriedade, a influência desse tipo de pensamento sobre os filósofos da Renascença, especialmente o grande Giordano Bruno. Seus dois estudos, Giordano Bruno e a Tradição Hermética e O Iluminismo Rosacruz, são obras fundamentais para o entendimento do pensamento que inspirou a Reforma religiosa e as correntes filosóficas que a seguiram, como o Iluminismo e própria Maçonaria. Sobre a influência do sabataísmo (corrente cabalista liderada por Sabatai Tzvi) no movimento idealista alemão e sobre as idéias iluministas, ver a obra, já citada de David Biale, Cabala e Contra História. 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 04/10/2016


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