Os quinze anos de Jacyra deviam ser comemorados com uma bela festa. Afinal, a garota mais bonita da turma merecia. Ia ser a festa de debutantes mais badalada da cidade. Os pais dela já tinham tudo preparado. Guardaram a grana durante dois anos para bancar o aluguel do clube, o buffet, as flores, a improvisada orquestra do maestro da cidade para tocar a valsa e tudo mais.
Tudo preparado, tudo arranjado, tudo na maior ansiedade, e agora aquilo. A Jacyra, aos prantos, vinha dizer que não queria mais a festa. Que tudo era uma grande bobagem, só dinheiro gasto á toa, só aparência. Meu Deus! Suspirou a mãe, que estava curtindo tudo aquilo. Ela, que sequer se lembrava de ter feito quinze anos, e muito menos tivera uma festa para celebrá-los, já estava sentindo toda aquela atmosfera como se fosse ela própria a debutante.
Tinha mandado fazer um belo vestido longo, tão branco e tão bonito quanto o da própria filha. Não via a hora de entrar naquele salão com aquela roupa. Gozava antecipadamente os minutos de admiração e os olhares de inveja que iria despertar.
E o pai então... O Professor Valter antegozava a experiência. Via a imagem da filha bonita, naquele lindo vestido branco, rodopiando com ele pelo salão, ante os sorrisos de inveja dos amigos e os olhares gulosos dos rapazinhos, que dariam a vida para estar no seu lugar.
Mas não. Já desde alguns dias a Jacyra dera de esconder no quarto e não fora uma única vez que ela fora surpreendida numa crise de choro. Parecia ter adoecido. Os olhos perderam aquele brilho de menina travessa e encantada com a maturidade do corpo, que as garotas assumem quando chegam á essa idade. A pele também ficara mais pálida, não de uma coloração doentia, mas de alguém que parece estar vivendo um estado interno de medo e desequilíbrio.
Talvez fosse justamente a proximidade da festa. Os quinze anos. Desarranjo hormonal. A insegurança que bate em todo adolescente quando se confronta com a perspectiva de ser o alvo de todos os olhares.
O professor Valter já tinha lido alguma coisa a respeito. Adolescentes crescem tão depressa que ás vezes não tem nem consciência de espaço. Ficam desajeitados, quebrando coisas em sua volta, muitas vezes escondendo as mãos, porque não sabem o que fazer com elas. O hábito de fumar, dizia o psicólogo que escreveu o artigo, muitas vezes tem muito a ver com esse problema das mãos. Reminiscência da mamadeira, algo para se levar á boca, algo nas mãos para não ter que escondê-las.
Talvez fosse isso, ou talvez Jacyra estivesse mesmo doente. Sua mãe já notara que ela, ultimamente, andava com falta de apetite e a pegara duas ou três vezes a correr para o banheiro com ânsia de vômitos. Insistira com ela para ir ao médico.
Aliás, a última vez que fora ao médico, tinha sido o pediatra que cuidara dela desde a infância. O médico dela, um senhor já entrado em anos e muito simpático, sorriu e disse que já estava na hora de ela procurar um clínico geral, ou um ginecologista, o que seria mais correto.
– Clínico geral ou ginecologista? perguntou a mãe, com um olhar desconfiado.
Jacyra caiu num choro convulso e sua mãe não precisou perguntar mais nada.
– Meu Deus! E essa agora...
A mãe de Jacyra tinha muito muita razão para se preocupar e sentir o aperto no coração que sentiu naquela hora. Começou a suar frio. O que fazer em face de uma situação como aquela? Sabia que o marido jamais iria aceitar um negócio daqueles.
E não aceitou mesmo. O professor Valter era um homem austero. Íntegro, á sua moda, religioso, de nunca faltar nos cultos, de ler Bíblia todos os dias de manhã e á noite, e nunca comer sem as devidas graças.
Mas agora, sua filha, sua linda, querida e única filha, a princesa da sua vida, estava grávida. Mas como? Como uma menina de quinze anos pode ficar grávida? Não, podia ter acontecido isso com ele, ele que a criara com todo o desvelo, com todo o cuidado, com todo o amor que um pai pode ter. Nos preceitos da religião, na rigidez dos valores da família, na respeito aos mandamentos de Deus. Mas acontecera. Um namoradinho na escola. Ele nem conhecia direito o menino. Vira a filha conversando com o rapazinho na porta da escola e depois quando ele fora, com mais algumas amigas, buscá-la para uma festinha. Nada mais que isso. Ah! Essa juventude...
E o que fazer agora? Não. A solução proposta pela mãe e que parecia ser a vontade da própria Jacyra ele não ia aceitar. Não. Não ia permitir que sua filha, uma menina de quinze anos, para quem ela sonhava um futuro brilhante, um casamento pomposo, uma vida de rainha, acabasse terminando como aquelas meninas da periferia para quem ela dava aulas.
Além de tudo ele era professor. Viu a gravidez precoce da filha, a barriga dela crescendo, o abandono escolar, e ele criando o neto... Era um quadro que conhecia muito bem e deplorava. Sempre odiara os pais que deixavam que seus filhos praticassem sexo sem responsabilidade, gerando crianças que geralmente cresciam sem pais e acabavam na rua, sem futuro e sem esperança, e muitas vezes, vítima de traficantes e outros bandidos. Considerava-os responsáveis por todas as mazelas sociais que levavam as pessoas à pobreza, á ignorância, á marginalização, ao crime. Famílias sem estrutura. Crianças sendo geradas por outras crianças. Irresponsabilidade.
Não, ela não podia ter esse filho. Tinha que fazer um aborto. Maldisse a sorte, maldisse Deus, maldisse o mundo. De que adiantava agora toda aquela patacoada evangélica que ele ouvia na Igreja? Se Deus existisse, ele não era tão justo assim, pois lhe tinha dado um castigo que não merecera. Sempre fora um pai extremoso, um marido correto, um homem honesto, um cidadão sem mácula. E o que recebera em troca? A sua única filha, o amor da sua vida, o seu orgulho, toda a justificativa de uma luta árdua e quase ascética para dar a ela um futuro brilhante agora estava comprometido.
Não ele não aceitaria isso. Aquele feto, que segundo o ginecologista que examinou Jacyra não fizera ainda dois meses, podia ser tirado sem muita complicação para a menina. Se esperassem mais tempo, se deixassem o bebê amadurecer mais, ai sim, a coisa ficaria complicada.
O pastor da sua Igreja ficou possesso quando ele anunciou a disposição de submeter a menina a um aborto.
– Além do perigo que ela vai correr – disse o pastor, – essa é uma afronta a Deus. Se ele lhe deu um neto você devia aceitar e agradecer em vez de pensar numa barbaridade dessas.
– Não é ele que vai criar– respondeu o pai de Jacyra. E se ele fosse bom e justo como o senhor diz, teria me poupado dessa calamidade. E o senhor sabe o que eu penso da gravidez precoce, de crianças que são geradas dessa forma irresponsável. Deus não tem nada a ver com isso, e se tiver, então ele não é tão bom e justo como o senhor diz.
– Não diga blasfêmias. E não renegue o Senhor. Lembre-se que onde ele é renegado, o Diabo toma conta.
Jacyra e a mãe também eram contra. A menina queria ter o filho. Pensava nele como nas últimas bonecas que tivera. Deixara de brincar com elas há algum tempo, mas o despertar do sentimento materno a fazia pensar naquele pequeno bonequinho, ou bonequinha viva, que ela ganhar.
Sua mãe era mulher e sabia o que significa, para a mulher, um filho. Tirar o bebê? Não. Era uma parte do seu próprio corpo. Um homem pode não ter muita consciência do que isso significa, pois ele não gera, ele não nutre, ele não carrega durante nove meses, o bichinho na barriga. Não pode sentir a força da ligação que existe entre uma mulher e o seu filho. O homem fornece só a semente. Ele é como o agricultor que planta, mas que não tem nenhum problema de consciência se precisar arrancar a planta quando ela não lhe dá os frutos esperados. Mas a mulher não. A mulher era a terra que gestava. Para ela, tanto fazia se gestava uma frondosa macieira, capaz de dar muitos frutos, ou uma mera graminha, inominada e inútil, que nunca geraria frutos ou mesmo flores. Quem sabe das dores da terra quando se lhe arrancam uma erva?
Mas para o professor Valter isso tudo era poesia. Mera especulação filosófica que não tinha valor algum quando contrastada com o futuro comprometido da filha, o trabalho e as despesas que eles teriam para criar um neto, a vergonha de ter uma mãe solteira em casa, e todo o constrangimento da situação.
O professor Valter não era homem que pudesse ser contrariado. Nem Jacyra, nem a esposa, nem o pastor da igreja, que ele deixou de frequentar (e também proibiu a família de o fazer), o demoveu da idéia. Desistiu da festa, pegou o dinheiro que havia economizado e pagou ao ginecologista sem escrúpulo a quem ele levou Jacyra para que o aborto fosse feito. Pouco se importava com a tristeza da filha, que queria a criança, e com o desgosto da mãe, que temia principalmente o castigo de Deus. As palavras do pastor não saiam da sua cabeça. “De onde Deus é renegado, o Diabo toma posse.”
Jacyra tirou o bebê, mas estranhamente a sua barriga continuou a crescer. Dois meses depois da operação, parecia que ela estava grávida há uns seis meses. Valter a levou no ginecologista que fizera o aborto. Fizeram ultra som e radiografias. Estranho. Jacyra ainda estava grávida. Então não era apenas um bebê? Mas todos os exames haviam mostrado se tratar apenas de um feto. E quando ele fez a operação também não havia dúvidas. Era apenas um feto. Todos os exames haviam mostrado isso. Mas ali, na barriga de Jacyra estava crescendo outro bebê, que agora já estaria com seis meses ou mais. Esse, agora, não dava para tirar. Estava maduro demais.
O professor Valter, em princípio, tomou aquilo como um castigo por ter obrigado sua filha a fazer o aborto. Por isso, e por que foi convencido ser muito tarde para um novo aborto, não insistiu mais no assunto.
Jacyra e a mãe se sentiram compensadas e consideraram aquilo uma graça de Deus pelo sofrimento pelo qual passaram. O pastor da igreja, quando soube do caso, estufou o peito e se sentiu o máximo ao receber as desculpas do professor.
–Eu não disse? Deus escreve certo por linhas tortas. O que ele faz não para homem nenhum desfazer.
O professor Valter acostumou-se com a idéia de ter um neto e até começou a sentir prazer em pensar em ter uma criança de novo em casa. Deliciava-se com a idéia de embalá-la, cantar canções para ela dormir, levá-la para passear quando ela começasse a andar, ensiná-la a andar de bicicleta. Recuperara a alegria da paternidade. Serenou a mente, mitigou seus escrúpulos de consciência, sentiu-se até feliz. Um sentimento de estranha confiança no futuro e uma mudança radical nos seus valores começava a acontecer na sua mente.
Com tudo isso, nem ele, nem Jacyra, nem sua esposa se importaram muito com a aparência do bebê quando ele nasceu. A terra ama a sua criação, não importa o que ela seja, pensou. A criatura era, sem dúvida, tão feia, tão estranha, que o obstetra que a aparou e as enfermeiras que o ajudaram no parto não puderam deixar de sentir um arrepio na espinha e um esgar de horror quando ela chorou pela primeira vez. Eles jurariam que aquilo não era um choro. Era um uivar de cão, um rosnar de lobo, um som de animal feroz na presença de um inimigo. Menos choro de uma criança. O bebê, um menino, era peludo como um macaco e tinha as pupilas vermelhas como manchas de sangue. Na testa dois calombos, como se fossem chifres, começavam a despontar, dando ao rosto do menino uma estranha e assustadora compleição. E quando respirava exalava um cheiro fétido de enxofre e carne pútrida.
Mas o pior de tudo estava nos olhos. Porque toda a maldade do mundo parecia estar concentrada naqueles pequeninos globos perversos que buscavam penetrar, como afiados e pontiagudos punhais, até o fundo da alma das pessoas.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 05/12/2016
Alterado em 06/12/2016