Era um cão enorme, negro como uma noite sem lua nem estrelas, com dentes pontiagudos e cortantes como as lâminas de um punhal sarraceno, dois grandes coágulo de sangue no lugar dos olhos. E queria me pegar. Não sei por que ele queria me pegar. Por mais que eu fugisse, ele sempre me encontrava. Escondi-me dentro de uma caverna, que parecia uma cova de defunto. Pois ele cavou a terra e desenterrou-me como se eu fosse um osso. Fugi, peguei um barco e fui para o mar. Pois ele veio nadando atrás de mim como se fosse um tubarão voraz. Abocanhou meu barco com uma dentada só e ele afundou. Não sei como conseguir escapar. Só me lembro de ter nadado como um peixe, sempre com aquela dentadura mortal a fechar-se atrás de mim. De repente, subi como um balão de gás. Subi, subi, atravessei as nuvens, quase atingi o limite da atmosfera terrestre. Julguei-me a salvo do maldito cão. Mas tão de repente como subi comecei a cair e ele estava lá, á minha espera, calmo, confiante, como se soubesse que eu ia cair fatalmente. E ei-lo novamente á minha caça, fechando as suas portentosas mandíbulas a poucos centímetros do meu corpo, como se fosse um crocodilo atrás de uma presa fugidia. Nem no hospital o monstrengo me deixava em paz. Eu estava na cama, médicos e enfermeiras á minha volta, e ele, o maldito, lá num canto, esperando, rosnando, com seus terríveis dentes pontudos, e seu hálito pestilento, como se fosse um guarda de presídio, me vigiando para que eu não fugisse.
Foi então que decidi enfrentá-lo. Cansara-me daquele jogo de rato e gato. “Venha, maldito” eu disse. “Você tem me perseguido a vida inteira, mas eu sempre escapei das tuas garras. Você estava lá quando eu tive sarampo, varíola e escarlatina; você estava lá quando eu tive aquele acidente de carro. Você tentou me morder quando aqueles ladrões armados entraram em minha casa. Você me perseguiu quando tive o meu primeiro enfarto. E você nunca me pegou. Mas eu estou cansado de fugir desses seus malditos dentes. Agora eu quero enfrentá-lo. Venha. Quero ver quem é mais forte.”
E ele, o maldito, saiu do seu canto e aproximou-se da minha cama. Tinha um hálito pestilento de cova aberta, de carne decomposta e esgotos a céu aberto. E o maldito falava. Ele disse: “Você é meu”. Por mais que você fuja de mim, não escapará. Não tenho pressa. Eu viverei enquanto houver vida no universo. Vocês são o meu alimento. Eu posso esperar mais um pouco”. E então ele passou pelo meu rosto uma língua saburrosa e infecta, que concentrava todos os vermes do planeta e parecia uma lâmina quente, saída diretamente da forja do inferno.”
Foi então que eu acordei. Graças a Deus tudo não passara de um sonho. Mas eu estava suando como uma garrafa de cerveja saída de um congelador, tremendo como a mão de um indivíduo que sofre do Mal de Parkinson e com o coração batendo como um surdo de escola de samba. Senti no quarto um cheiro de cachorro. E uma língua quente lambendo as minhas faces. Olhei para todos os cantos do quarto para ver se o maldito não tinha saído do meu sonho para a minha realidade. Mas logo me dei conta de que aquele cheiro e aquela língua eram do meu pequenino cão basset que subira na minha cama e estava lambendo as minhas faces.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 04/01/2017
Alterado em 05/01/2017