João Anatalino

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O Círculo Interno Superior
                                                   
 
     Um Conselho formado por vinte e quatro cavaleiros, vestidos com mantos e pontudos capuzes negros, se reuniu em Chipre em meados de maio de 1307 para uma seção em que novos irmãos seriam admitidos no Circulo Interno Superior da Irmandade do Templo.
     A sala onde se reuniam tinha formato retangular, sem janelas, com um piso feito em pedras de granito e mármore, formando um mosaico branco e preto que dava a ideia de um tabuleiro de xadrez. Duas fileiras de bancos de pedra, em forma de arquibancada, semelhantes aos que se viam em uma sinagoga judia, ficavam encostados ás paredes. Neles, silentes, com as mãos nos joelhos, sentavam-se os vinte e quatro irmãos do Conselho Supremo. No meio da sala, em cadeiras dispostas em fila de três, sentavam-se os novos irmãos que iriam ser admitidos no Círculo Interno. No fundo da sala, no    
quadriláterio chamado de Oriente, separado do resto do aposento por uma balaustrada de madeira, havia uma mesa comum com um candelabro de nove braços, onde nove velas acesas projetavam uma pálida e bruxuleante luz amarela sobre aquela estranha e fantasmagórica reunião. Em cima da mesa um pano vermelho cobrindo um objeto de formato oval, do tamanho de um crânio humano. Na parede ao fundo, uma pintura mostrando uma lua crescente, com um sol abaixo dela, e abaixo desse sol uma inscrição em grego:
Αβρασα. Ao lado da mesa, pendurado em um cavalete, um estandarte de cores semelhantes ao mosaico do piso da sala ─ quadrados pretos e brancos ─ com os dizeres: “Deus o quer”. Dois monges-cavaleiros, portando suas espadas, guardavam a porta do recinto, pelo lado de fora, e outro irmão, armado com um pique, guardava a porta pelo lado de dentro.
     Jacques de Molay, Hugues de Peyráuld e Geoffroy de Charney, os três grandes dignatários da Ordem do Templo, sentados em três cadeiras de alto espaldar, decorados como se fossem tronos reais ou cardinalícios, dirigiam a reunião. Era tal o silêncio que reinava no recinto, que podiam ser ouvidas as respirações dos trinta homens encapuçados que estavam ali reunidos.
    Então Jacques de Molay desembainhou sua espada e bateu com o punho dela três vezes sobre a mesa. Dos lados direito e esquerdo, Geoffrey de Charney e Hugues de Peyráuld também desembainharam as suas e bateram, cada um por sua vez, três vezes sobre a mesa. Os demais irmãos presentes na sala repicaram, com as palmas das mãos, as três batidas, por três vezes.
    ─ Está reunido o Capítulo LVIII para a elevação de seis novos membros ao nosso Círculo Interno Superior. Desde agora é vedado aos Irmãos se levantar de seus lugares ou tomar a palavra sem ser a isso concitado ─ disse Jacques de Molay.
   ─ Irmão Cobridor, o Capítulo está bem guardado e a salvo de olhos e ouvidos profanos? ─ perguntou de Molay, ao monge que guardava a porta, pelo lado de dentro.
   ─ Sim, Irmão Grão-Mestre. O Capítulo está bem guardado e a salvo de olhos profanos ─ respondeu o Cobridor.
   ─ Irmão Mestre da Justiça ─ todos os presentes nesta sala são dignos de participar destes trabalhos? ─ perguntou o Grão-Mestre.
   ─ Sim, Irmão Grão─Mestre ─ respondeu Peyráuld ─ Todos foram examinados e são dignos de estarem aqui.
   ─ Irmão Sacrificador, a que horas começam os nossos trabalhos? ─ perguntou o Grão-Mestre.
   ─ Ao anoitecer, Irmão Grão-Mestre, quando o Pai das Luzes se oculta no Ocidente e a Mãe Divina começa o seu trabalho de parto ─ respondeu Geoffrey de Charney.
   ─ Honremo-los então ─ disse o Grão-Mestre. E todos os presentes na sala se puseram de joelhos e curvaram, encostando a testa no chão. Em seguida, todos se levantaram e exclamaram três vezes Huzah! Huzah! Huzah!
   ─ Irmão Mestre da Justiça, lede os nomes dos irmãos que passarão a compartilhar dos nossos mais sublimes segredos ─ pediu o Grão-Mestre.
    Hugues de Peyráuld tomou um pergaminho e leu os nomes de Reginald de Provins, Geoffrey de Gonneville, Ponzard de Guizi, Bertrand de Chartres, William de Chambonett e Gaucerant de Montepezat, suas respectivas origens e cargos dentro da Ordem.
   ─ Lembrai-vos irmãos ─ disse ele, após ter terminado a leitura dos nomes ─ que ao ingressardes em nossa Ordem vós fizestes o juramento solene de guardar vossos corpos em perfeita castidade, renunciar a todo e qualquer bem pessoal, defender os pobres e os aflitos e permanecer fiéis e prontos a dar vossa vida em prol da nossa fé. Tudo isso vós cumpristes. Professastes a fé da nossa Ordem e vivestes na perfeita obediência aos nossos estatutos. Passastes também por todas as provas previstas pelo nosso ritual. Em todas fostes levantados limpos e puros. Agora vos é dado conhecer os nossos mais sublimes mistérios e segredos, pelo que jurais, solenemente, nunca os revelar a ninguém, nem os comentar com qualquer outro irmão que não os que aqui estão presentes. Lembrai-vos que o perjúrio acarretará a vossa morte. Fazeis, de coração e alma, esse juramento?
    ─ Eu o juro! responderam todos.
    ─ Ouvi então, o que tem a dizer o nosso Grão─Mestre. Peço-vos que não o interrompais, a não ser que a isso sejais concitados.
    Jacques de Molay levantou-se. Sua figura parecia mais imponente, ali, naquele ambiente fantasmagórico. Sua imensa barba de tufos brancos, que descia em dois fartos cachos até a altura do peito, lhe dava um aspecto terrificante de profeta bíblico.
.     ─ Meus Irmãos. Aprendestes que a Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo do Rei Salomão foi fundada por nove nobres cavaleiros, no ano de 1118, sob a chefia do conde Hugues de Payns, com o objetivo de proteger o caminho do Santo Sepulcro, para que os peregrinos cristãos pudessem visitar, em segurança, o túmulo de Nosso Senhor ─ disse Jacques de Molay.   
     ─Assim está escrito em nossas crônicas e tem sido informado ao mundo. E de fato, foi o que fizeram nossos primeiros irmãos durante algum tempo, para justificar a fundação da Ordem e não atrair a atenção dos inimigos para os verdadeiros objetivos que motivaram aqueles nobres cavaleiros a criar a nossa Irmandade.
     ─A verdade, porém ─ continuou de Molay ─ é que a nossa Irmandade não nasceu em Jerusalém no ano de 1118, como as crônicas dizem, mas bem antes, em 1104, em Troyes, sob a tutela do nobre Hugues, conde de Champagne. Entre seus cavaleiros vassalos estavam dois dos irmãos fundadores, o nosso primeiro Grão-Mestre Hugues de Payns e aquele que foi o segundo na linha sucessória, o irmão André de Montbard. Entre os idealizadores da Irmandade, também estava o nosso santo abade Bernard de Clairvaux, redator das nossas Regras.
     ─ Desde o início nossa Ordem tinha uma missão específica ─ continuou de Molay. ─ Essa missão era trabalhar pela realização da obra pela qual Nosso Senhor Jesus Cristo veio ao mundo, qual seja, a reconstituição do reino de Israel nos mesmos fundamentos em que ele existira nos tempos de Davi e Salomão. Como sabeis, Jesus era descendente do rei Davi por parte de sua mãe, Maria. Mas ele não era filho do carpinteiro José, como dizem as Escrituras, mas sim, filho de um príncipe, também da linhagem de Davi, chamado Jesus Pandira, com uma jovem chamada Maria, donzela a serviço de Deus no Templo do Senhor.
      Esse príncipe fazia parte da seita dos fariseus e era membro do Sinédrio. Ele enamorou-se da jovem Maria, mas as leis judaicas não permitiam o casamento de uma donzela consagrada ao serviço do Senhor, pois tais jovens deviam ser conservadas para sempre virgens.   
     Assim, quando Jesus nasceu, o príncipe Pandira não pode assumi-lo como filho legítimo. Para que a jovem Maria não sofresse as penas da lei, previstas para o caso, ela foi dispensada do serviço no Templo e casou-se então com o carpinteiro José graças a um arranjo feito pela família de Pandira. E José, o carpinteiro, tornou-se seu pai adotivo. Quando Jesus cresceu, sua condição de príncipe de Israel foi revelada e ele foi levado para uma colônia de mestres essênios para ser por eles educado. Pois os essênios viviam em uma Irmandade semelhante á nossa, preparando o povo de Israel para a vinda do Messias e o advento de um novo reino Kadosh. E esse líder e restaurador da grandeza de Israel, eles o reconheceram na pessoa do Nosso Senhor Jesus, por que ele era descendente de Davi e tinha qualidades de guerreiro e de profeta, justamente o perfil do Messias que eles acreditavam que um dia viria para libertar Israel e reconduzi-o para o culto ao verdadeiro Deus.  E para tanto ele foi educado e orientado por outro sábio essênio, que conheceis como João, o Batista.
      A palavra passou para Hugues de Peyráuld.
      ─ Quando Jesus completou o seu período de ensinamento ─ continuou Peyráuld ─ ele começou a organizar o seu próprio plano para libertar o povo judeu do jugo romano e dar a ele uma nova forma de organização, semelhante á que Salomão havia feito para o antigo povo de Israel. Foi por isso que ele convocou exatamente doze discípulos para fazer parte do seu Circulo Superior.
      Os cavaleiros ali sentados ouviam serenos e contritos. Ninguém fazia sequer um movimento de olhos. Peyráuld continuou.
       ─ Isso ele fez porque doze eram as tribos de Israel nos tempos de Salomão e Jesus queria reconstituir o reino de Israel exatamente nos mesmos moldes em que ele existira naqueles áureos tempos. Cada um dos seus discípulos seria o príncipe de uma tribo. E além disso ─ continuou Peyráuld ─ ele instruiu outros setenta para correr as cidades e as aldeias da Judéia e da Samaria, onde houvesse colônias do povo israelita, para que os instruísse e preparasse para a chegada do Messias e a consequente  restauração do reino de Israel.
 
       Os vinte e quatro cavaleiros sentados nos bancos de pedra já conheciam a história que de Molay e Peyráuld estavam contando. Eram membros do Circulo Interno Superior e haviam galgado os mais altos postos na hierarquia do Templo. Todos eram Grãos-Mestres de reinos onde o Templo estava instalado ou preceptores das províncias mais importantes da Europa. Porém, para aqueles que estavam sendo iniciados nos mistérios do Capítulo LVIII, essa versão heterodoxa da vida de Jesus era completamente nova. Por isso, na luz amarelada e bruxuleante que iluminava aquele ambiente totalmente insalubre, não era possível ver em suas testas o vinco de estranheza e preocupação que aquela bizarra lição de história estava provocando.
      Os seis irmãos que ali estavam para serem iniciados eram, em sua maioria, cavaleiros oriundos da pequena nobreza europeia, que foram educados na ortodoxia católica, e seu espanto com aquela versão completamente diferente da que haviam aprendido desde a infância, de algum modo, os assustava.
      Geoffrey de Charney havia assumido a narração.
      ─ Quando Jesus achou que estava na hora de proclamar a restauração do reino de Deus, ele subiu, com seus seguidores, à Jerusalém. Por que ele sabia que a grande maioria do povo judeu se reunia nessa cidade nessa época e essa proclamação deveria ser feita no Templo, o mais sagrado dos seus locais. E como era a semana da Páscoa, Jesus esperava que o povo ali reunido o apoiasse, pois ele seria revelado como o Messias, descendente de Davi, lídimo herdeiro do trono de Israel.
      Ninguém ousava romper o silêncio na sala. Os veteranos porque já conheciam aquela história, os iniciandos porque estavam chocados ou curiosos demais para perguntar. Então, Charney continuou.
      ─ Eis porque o chamavam de Filho de Davi e Filho do Homem. Filho de Davi porque ele descendia do famoso rei e os essênios reconheceram nele o Messias guerreiro, que as escrituras prometiam. O guerreiro que libertaria Israel do jugo romano. E Filho do Homem porque ele era também o Messias sacerdote, o profeta que restabeleceria a antiga religião de Israel, tal qual Moisés a instituira. E esse reino, assim renovado em sua estrutura política e social, seria um novo modelo para toda a humanidade. Por isso o apelido "Filho do Homem", na verdade, quer dizer Filho da Humanidade. Assim o profeta Daniel chamara áquele que levaria Israel á sua antiga posição de glória entre os reinos da terra e a resgataria como a nação eleita de Deus.
     ─ Dessa forma─ continuou Charney ─ Jesus seria proclamado rei dos judeus e daria início á sua revolução política e religiosa. Por isso ele disse que destruiria o Templo e o restabeleceria em três dias. Essa revelação foi feita na terça-feira. Pois ele esperava que até o fim da semana da Páscoa, tudo estivesse consumado, e então ele começaria a erguer o novo Templo ─ que seria um novo reino e uma religião renovada, a antiga religião de Moisés, restabelecida em sua pureza primitiva.
      ─ Mas antes que a rebelião fosse desencadeada, o seu plano foi descoberto pelos membros do Sinédrio. Judas Iscariotes, um dos seus discípulos, o traiu, denunciando para eles o que Jesus pretendia fazer. Os membros do Sinédrio não acreditavam em Jesus, pois sabiam quem ele era. Não admitiam que o filho ilegítimo de um de seus antigos membros (pois Jesus Pandira fora, a seu tempo, membro daquela casa), reivindicasse para si o trono de Israel. E os anciãos tinham também muito medo de uma rebelião, pois sabiam que os romanos eram sanguinários e passariam a fio de espada toda a população de Jerusalém.
 
     O silêncio era geral na sala. Todos os cavaleiros, contritos, seguiam á risca a regra da Ordem. Quando o Mestre fala, todos devem ouvir sem interromper. Atenção, respeito, comedimento, silêncio e humildade eram virtudes cultivadas por aqueles cavaleiros. A regra da Ordem, escrita por São Bernardo, seguia á risca os preceitos do Sermão da Montanha. “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus”. Eles sabiam que ser pobre de espírito não era ser tolo ou mesmo ignorante. Era sim, ser humilde e mesmo tendo muita sabedoria, comportar-se como se nada soubesse. Mais ouvir do que falar, mais aprender do que ensinar, mais dar do que receber, servir antes de ser servido. A verdadeira sabedoria não vinha das letras, do conhecimento enciclopédico, mas da verdadeira fé e da disposição de lutar pela razão certa.
     
      A narrativa voltara, agora, para o Grão-Mestre.

      Jacques de Molay limpou a garganta e continuou ─Jesus foi preso pelos guardas do Sinédrio, julgado pelos anciãos e sentenciado como herege e agitador. Sua pena deveria ser a morte por apedrejamento, como dispunha a lei judaica.  Mas como, pela lei judaica, ninguém podia ser executado na semana da Páscoa, ele foi entregue á Pôncio Pilatos, com a acusação de sedição. Os romanos não seguiam essa lei e não respeitavam essa tradição. O resto vós sabeis. Ele foi executado como criminoso, um sedutor do povo, um conspirador e usurpador. Por isso Pilatos mandou escrever na sua cruz as iniciais “INRI”.
     ─ Essa é a verdadeira história do Nosso Senhor Jesus Cristo ─ disse de Molay, sentando-se. Estava suado e ofegante.
     Hugues de Peyráld havia reassumido a narrativa.
    ─ Como sabeis, Jesus foi arriado da cruz tão logo expirou, pois era o cair da tarde da sexta-feira que precede a Páscoa. O dia seguinte seria o Sabbat, e nesse dia os judeus não praticam nenhuma atividade. Assim, para que o Sabbat não fosse desrespeitado, o corpo de Jesus foi envolvido em lençóis e depositado em um túmulo pertencente a um membro do Sinédrio, chamado José, príncipe de Arimatéia. Esse José era irmão de Jesus Pandira, de forma que Jesus era seu sobrinho. Por isso ele disponibilizou o túmulo de sua família para que o corpo de Jesus fosse ali depositado até que o Sabbat passasse e ele pudesse ser lavado e preparado para o funeral.
      ─ Mas como sabeis─ continuou Peyráld - quando chegou o domingo e as mulheres foram ao túmulo de Jesus para preparar o corpo com os óleos da unção, elas o encontraram vazio. E então se propagou a história de que ele havia ressuscitado.
     ─ Essa é história que os Evangelhos ensinam ─ continuou Peyrald, ─ porém, Jesus nunca ressuscitou. Como lestes nas Escrituras, foi Maria Madalena quem anunciou aos discípulos que o corpo de Jesus havia desaparecido, e foi ela também, que disse tê-lo visto, ressurecto, a caminho da Galiléia. A verdade é que Maria Madalena, que era mulher de Jesus, e José de Arimatéia, tio dele, tiraram o corpo durante a noite e o encerraram em lugar secreto. E combinaram dizer aos discípulos que ele havia ressuscitado. Assim propagou-se a lenda da ressurreição, que como sabeis, é o verdadeiro sustentáculo da fé cristã.
      Jacques de Molay levantou-se para continuar a narrativa.
     ─ Dissemos que os irmãos que fundaram nossa Ordem não eram apenas os nove cavaleiros que se reuniram em Jerusalém para criar um grupo de monges-guerreiros para proteger os Lugares Santos. Na verdade ─ continuou de Molay ─ a nossa Irmandade foi fundada quatorze anos antes, em Troyes, a pedido do comandante do exército cruzado, o nobre Duque da Lorena, Geoffroy de Boillon, para servir de braço armado do novo reino que os cristãos iriam fundar na Terra Santa. Mas antes disso o nobre príncipe de Boillon encarregou nossos irmãos de outra tarefa igualmente importante para os objetivos daquela cruzada. Essa tarefa era reunir provas de que a família do Duque de Lorena é a verdadeira herdeira do sangue de Jesus, pois sua linhagem provém de Sara, a filha que Nosso Senhor teve com Maria Madalena. Por isso é que durante nove anos não se recrutou nenhum cavaleiro, além dos nove iniciais, para reforçar os quadros da Ordem. Isso só começou a ser feito depois que os irmãos fundadores cumpriram essa primeira tarefa.
    ─ Assim ─, continuou de Molay,  a grande cruzada de 1099 tinha por objetivo a conquista de Jerusalém pelas tropas comandadas pelo príncipe de Boillon, por que ele era um lídimo descendente de Jesus. E sua intenção era a fundação do reino sonhado por ele. E isso, como sabeis, foi realizado com o estabelecimento do reino cristão na Terra Santa, do qual fomos defensores durante dois séculos. Esse reino foi perdido quando Jerusalém caiu, mas nós continuamos comprometidos com essa missão, e essa é a razão de existir da nossa Irmandade.
 
     ─ A palavra será agora aberta aos irmãos iniciandos ─ disse Geoffroy de Charney, assumindo novamente a condução dos trabalhos. ─ Podeis fazer as perguntas que vos apetecer.
     ─ Sendo verdade tudo isso que o irmão Grão-Mestre disse, então o que as Escrituras ensinam sobre a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo é mentira? ─ perguntou Reginald de Provins.
     ─ O Irmão Mestre da Justiça irá responder á vossa pergunta ─ disse Geoffrey de Charney.
    ─ Não, irmão Reginald ─ disse Hugues de Peyráuld, levantando-se. Depois, com ar professoral, como era sua postura normal, continuou:
    ─ Tudo que a Igreja e as Escrituras ensinam é verdade, só que não devemos tomar os escritos ao pé da letra ─ disse Peyráuld. Na verdade ─ continuou ─ Jesus era um monge-guerreiro como nós. Ele conhecia a verdade das Escrituras antigas e o poder da palavra. Assim, ele pregava uma doutrina e uma ideia de liberdade, que era tanto política quanto religiosa, mas muito perigosa para a época, pois Roma dominava a região com mão de ferro.
    ─ Mas o que era, na verdade, o Reino dos Céus, que ele pregava? ─ perguntou Geoffroy de Gonneville, recém-empossado como preceptor de Aquitânia e Poitou.
    ─ Era o reino prometido a Moisés, irmão Geoffrey. Um reino de justiça e paz, onde todos viveriam como irmãos, como se a humanidade toda fosse uma grande Irmandade, unida pelos laços da religião, fortalecida pela crença em um único Deus.
    ─ Mas porque ele disse que seu reino não era desse mundo? ─ perguntou Ponzard de Guizi. As perguntas agora começavam a pipocar.
    ─ Porque não era, irmão Ponzard ─ respondeu Peyráuld. ─ Não daquele mundo em que eles estavam vivendo. Eram de um mundo que já havia sido destruído ha vários séculos, desde que o primeiro Templo, o de Salomão, havia sido derrubado e os filhos de Israel dispersos pelo mundo. Israel nunca mais se reconstituiu como nação livre depois disso e a ideia de um reino perfeito sobre a terra se perdeu. Jesus queria reconstruir esse modelo de nação, para que ele servisse de exemplo para todas as nações da terra, Seria um reino de paz, justiça e liberdade, nunca conhecido antes pelos povos do mundo.
    ─ Então ele era, na verdade, um homem comum, embora de sangue real? ─ perguntou Bertrand de Chartres.
    ─ Sim, irmão Bertrand. Ele era um rei e um profeta, mas tão mortal quanto nós todos aqui ─ respondeu Peyráuld.
    ─ Então não ressuscitou de verdade, como dizem as Escrituras? ─ inquiriu, perplexo, o cavaleiro identificado pelo nome de William de Chambonett.
    ─ É verdade, irmão William─ respondeu Peyráuld, como se tivesse chegado ao âmago da questão e mostrasse muita satisfação por ter conduzido sua aula á conclusão desejada ─ ele está tão morto quanto Hugues de Payns, o fundador da nossa Ordem.
 
     O que os altos dignatários do Templo estavam dizendo era por demais chocante e difícil de acreditar para aqueles cavaleiros que estavam ouvindo aquela história pela primeira vez. Não para os veteranos que já a conheciam. Por isso, alguns dos noviços iniciandos ainda não tinham saído do seu estupor e olhavam, desconfiados e aturdidos, para o rosto dos seus confrades mais antigos, procurando neles algum sinal de que tudo aquilo era uma pilhéria, uma brincadeira, como achavam que eram aqueles rituais de iniciação, onde eles foram obrigados a negar Cristo, cuspir na cruz e beijar as nádegas do preceptor que lhe dava iniciação. Seria outra provação de fé, como aquela? A negação de Cristo, isso é o que lhes fora dito na ocasião, era uma prova de coragem. Quem fosse capaz de negar o próprio Senhor sem constrangimento seria capaz também de dar sua vida pela Irmandade. Somente quem tivesse essa coragem subiria na hierarquia da Ordem. Mas agora, nesta iniciação ao Círculo Interno Superior, se procurava descontruir toda a história de Jesus, contada pelos Evangelhos. Qual seria a razão? As dúvidas martelavam a alma e o coração daqueles homens.
     ─ Mas que provas podeis nos dar de que tudo isso é verdade? ─ perguntou, por fim, o cavaleiro Reginald de Provins. E imediatamente se arrependeu, porque não era comum entre os monges da Ordem e muito menos daquele seleto Círculo Interno Superior mostrar o mínimo sinal de dúvida ou contradição em relação a qualquer coisa que lhes fosse ensinada, ordenada ou informada por seus Mestres. A regra templária exigia obediência e confiança irrestrita.
    ─ Esperávamos que algum de vós, irmãos que se iniciam neste grau do nosso capítulo ─, disse de Molay, levantando-se ─ fizésseis todas essas perguntas. ─ Como sabeis, a dúvida, em nosso meio, é punida com penitência e estudo, e a desobediência com a prisão e até com a morte. Mas neste grau do capítulo vos é dado saber que todas essas nossas crenças estão apoiadas em verdadeiras provas e não apenas em tradições compiladas ao longo dos séculos, como faz a Igreja com a sua doutrina. 
     ─ Jesus então teve filhos? ─ perguntou, perplexo, o cavaleiro Gaucerant de Montpezat, preceptor da província do mesmo nome. ─ E porque não se diz nada sobre isso nos Evangelhos e a Igreja sempre fez questão de defender o celibato, se o próprio Jesus era casado? ─ emendou na mesma pergunta, pois ainda parecia não estar nada convencido daquelas histórias. Elas eram tão extraordinárias, que ele mal conseguia pensar direito.
     ─ Primeiro porque Jesus e Madalena não eram casados de fato ─ respondeu de Molay. Quando Jesus conheceu Madalena ela era uma mulher possuída por vários demônios. Ele a curou. Ela então entrou a seu serviço e passou a segui-lo por todos os lugares. Logo nasceu entre eles o amor de homem e mulher. Mas os discípulos de Jesus não gostavam dela. Tinham ciúme e inveja do amor que Jesus lhe dedicava. Mas foi ela a quem Jesus amou mais. Depois que Jesus foi crucificado, seus discípulos começaram a persegui-la e difamá-la entre os seus seguidores, porque foi a ela que Jesus confiou os segredos da sua doutrina e o encargo de continuar a sua missão. Porque ela era mãe da sua filha, a única pessoa na terra que ainda tinha o sangue de Davi nas veias.
     ─ E o que aconteceu com ela? ─ perguntou Gaucerant de Montpezat.
     ─ Após a crucificação de Jesus, Maria Madalena e José de Arimatéia fugiram para a França, que então se chamava Aquitânia, onde divulgaram a nova fé aos franceses. Fizeram muitos discípulos no nosso país, que ficaram conhecidos como os “Filhos da Viúva”.
    ─ Mas os “Filhos da Viúva” não são os maçons─ perguntou Gaucerand.
    ─ Sim irmão ─ respondeu de Molay. Porque também os mestres maçons conhecem essa história e comungam conosco desse segredo.
    ─ Como receberam esse apelido? ─ insistiu Gaucerand.
    ─ Os maçons franceses receberam esse apelido porque Jesus era carpinteiro, filho de uma viúva, Maria. E porque seus discípulos franceses foram catequisados por sua viúva, Maria Madalena. Os discípulos de Madalena na França foram feitos primeiramente entre os operários, os trabalhadores, as pessoas de condição servil, especialmente os pedreiros. Somente alguns séculos depois é que os nobres começaram a aderir á nova religião, e o culto cristão dos “Filhos da Viúva” passou a ser um culto voltado principalmente á Notre Dame.
     ─ É por isso que o povo francês é tão devoto á Notre Dame? ─ perguntou Bertrand de Chartres.
    ─ Exatamente, irmão Bertrand, e nós também, pois como sabeis, nossa Ordem é consagrada á Virgem ─ disse de Molay, apontando para o desenho da lua crescente, que ali simbolizava o Sagrado Feminino.
     ─ Se Jesus não ressuscitou, o que foi feito do corpo dele? ─ indagou Geoffrey de Gonneville, que desde que fizera a sua primeira pergunta se mantivera calado, tentando digerir aquela história. Tudo aquilo lhe parecia uma rematada loucura, mas fora educado para nunca duvidar dos seus mestres.
    ─ Maria Madalena e José de Arimateia haviam enterrado o corpo em outra tumba da sua família, em um jardim nos arredores de Jerusalém. Nossos irmãos fundadores encontraram os restos mortais dele e trouxeram-nos para a França. Eles estão agora guardados em uma das nossas preceptorias ─ disse de Molay.
      Essa foi a mais chocante de todas as revelações que aqueles cavaleiros que estavam sendo iniciados no Circulo Interno Superior ouviram naquela noite. Eles sabiam que o Templo era o guardião de muitas relíquias sagradas, obtidas durante o tempo em que estiveram na Terra Santa e principalmente durante o saque de Constantinopla. Mas jamais atinariam com uma revelação dessas. Mudos de espanto, eles olhavam para seus irmãos veteranos, sentados nos bancos de pedra em volta deles, mas estes não mostravam nenhum sinal de espanto. Já haviam ouvido aquilo antes.
       Ponzard de Guizi parecia o mais atônito.
      ─ Irmão Grão-Mestre ─ disse ele, levantando-se da sua cadeira. ─ Sei que é costume da nossa Ordem crer e obedecer nossos Mestres sem reservas, aceitando no coração e na alma todos os preceitos que nos forem transmitidos. Mas tudo que se disse aqui é tão extraordinário que me será muito difícil acreditar nisso se não forem apresentadas provas dessa verdade. E creio que isso é o que pensam todos os nossos irmãos, que aqui estão pela primeira vez.
      ─ Que essas provas vos sejam dadas ─ disse o Grão-Mestre.
      Então Jacques de Molay levantou o pano vermelho que cobria o objeto que estava sobre a mesa. Uma cabeça humana, extremamente bem conservada, que parecia ser de um homem jovem, com cabelos longos, barba negra e cerrada, juntamente com dois ossos de tíbias, cruzados em baixo dela, foi mostrada aos atônitos novos cavaleiros do Círculo Interno Superior. Seus olhos pareciam estar vivos. Sua boca parecia emitir uma muda mensagem. Na atmosfera lúgubre e fantasmagórica daquela câmara, a estranha aparição provocou um arrepio nas suas espinhas. Eles eram cavaleiros templários. Homens de espírito treinado para nunca experimentar o medo no campo de batalha. Mas eles também eram pessoas criadas no temor da religião e viviam em uma época e em um ambiente propício ao mistério e á superstição. Por isso temiam o desconhecido, e assim ficaram imóveis, boquiabertos, atônitos, não sabendo o que dizer nem pensar. Imediatamente os cavaleiros veteranos se abaixaram e prostraram suas cabeças no chão, em atitude de adoração.
      ─ Abhulaphia! Abhulaphia! Abhulaphia!─ gritaram três vezes.
      ─ Irmãos, esta é a cabeça do nosso Salvador ─ disse de Molay, erguendo á frente da contrita plateia, a mais sagrada relíquia da cristandade. ─ Eis a prova do que dizíamos! Esta é a sagrada cabeça de Nosso Senhor Jesus Cristo!
     Na plateia nenhum murmúrio se ouvia. Ninguém ousava também erguer o rosto para olhar aquele objeto sagrado, que de Molay levantava em suas mãos, movimentando-o para a direita e para a esquerda, como se com ela estivesse abençoando todos os presentes.
     ─ Levantemo-nos e saudemos nosso Mestre, por quem todas as coisas nos são dadas. Por quem as chuvas caem, as flores nascem, as moléstias são curadas e todos os milagres são feitos!
     ─ Béauseant! ─ gritaram todos, com o braço esticado e a mão formando um esquadro com o polegar e os demais dedos.
     ─ Nós somos os verdadeiros herdeiros de Jesus, o rei dos reis ─ gritou de Molay, erguendo o mais alto que podia o Crânio Sagrado, enquanto, ao seu lado, Geoffrey de Charney levantava o estandarte preto e branco da Ordem.
     ─ Béauseant! Gritaram todos, novamente. Desta vez, os novos cavaleiros também repetiram o coro. E foi então que uma luminosidade intensa e envolvente, que parecia sair de um minúsculo ponto no espaço e nele se expandia como a luz de uma estrela, explodida, invadiu o aposento e envolveu todos os atônitos cavaleiros ali presentes. Ninguém ousava levantar a cabeça do chão. E assim permaneceram todos até que a luz se extinguisse e a mais espessa treva ocupasse por completo todo o espaço da sala.  


(excerto do capítulo VII do romance Os Monges Malditos"
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 06/05/2017
Alterado em 06/05/2017


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