ROMANCE AMALDIÇOADO
Olívia era prima da minha mãe, e quem me contou essa história foi ela. Minha mãe gostava de contar histórias do sertão onde ela nasceu e passou a infância, a adolescência, a juventude e as primeiras experiências de uma mulher madura, embora todas essas experiências tenham acontecido antes dos seus vinte anos. É que com essa idade ela já era uma mulher casada e já tinha três filhos.
Minha mãe dizia que a Olívia foi a cabocla mais bonita que já nasceu lá pelas bandas dos Campos Novos, aldeia perdida na Serra da Bocaina, perto de Cunha. Deve ter sido mesmo, por que para uma mulher confessar que a outra era mais bonita que ela, só mesmo quando não dá para esconder nem contestar. E minha mãe não era de botar azeitona na empada de ninguém.
Nos dias de festa na Igreja de Campos Novos, minha mãe contou, a Olívia vendia doces numa das barracas da quermesse. Os “cavaquinhos” uma espécie de doce de feito com rapadura e groselha, os doces de leite, as paçocas e os curaus que ela fazia eram divinos, diziam os freqüentadores da quermesse. Tão gostosos como os lábios carnudos que ela tinha, feitos, segundo confessavam os caboclos mais ousados, para um longo e suculento beijo, daqueles que a gente fica pendurado neles até a morte chegar com prazer.
A Olívia tinha uns dezesseis anos quando se casou com o Genésio. Esse era um caboclo parrudo, aí pelos seus vinte e dois anos, que trabalhava para uma leiteria em Cunha. Sua família tinha uma tropa de burros, na época o único meio de transporte de mercadorias daquelas paragens. Ele passava pelos sítios de Campos Novos, Bocaina e adjacências recolhendo o leite que as vacas da região produziam, e o levava para uma fábrica, na vila de Campos Novos, onde se produzia queijo e manteiga, um dos produtos que fazia a fama da aldeia, juntamente com os pinhões, cuja produção era farta ali.
O casamento da Olívia com o Genésio, diziam os moradores de Campos Novos, foi o mais bonito que já se viu lá. O Genésio tinha dinheiro e convidou todo mundo para a festa. Minha mãe achava que foi a primeira vez que se bebeu vinho por aquelas bandas. Pelo menos foi a primeira vez que ela e meu pai provaram essa bebida. A igreja estava lotada e uns três bois foram mortos para satisfazer a fome dos convidados.
Agora, o bonito mesmo foram os fogos. Nunca se vira, nos Campos Novos, um espetáculo daqueles. Havia um rapaz chamado Gregório, muito talentoso, que além de saber ler e escrever – funcionava como escrivão do cartório local - também era especialista nesses espetáculos de pirotecnia. Era ele que organizava a queima de fogos em todas as festas da igreja e nas festas juninas das redondezas, quando Santo Antonio, São João e São Pedro eram homenageados por todos os portadores desses nomes com festas, bailes e concorridas congadas que só terminavam quando da fogueira acesa no quintal, ou em frente à casa, se extinguia a última brasa.
Linda Olívia. Feliz Genésio. Não havia moça nas redondezas que não invejasse a cabocla pelo bom partido que ela arrumou. E não havia caboclo solteiro no pedaço que não invejasse o Genésio pela mulher bonita que ele levou para casa.
A única coisa que ninguém entendeu foi porque ela chorou tanto na hora dos fogos. Era um espetáculo bonito, mas afinal era banal. Não era para causar tanta emoção em ninguém. Ela e os habitantes de Campos Novos já tinham visto isso um monte de vezes. Talvez fosse a luz dos fogos, ou alguma poeirinha que a pólvora levantou. Mas não era caso para se chorar tanto.
O estranho foi o que ocorreu depois. Minha mãe disse que eles levaram três dias para consumar o casamento. Isso foi a Olívia mesmo que contou para ela. Disse que ela não conseguia parar de chorar toda vez que o Genésio começava “a bulir com ela.” Ela resistiu até que ele ameaçou levá-la de volta para os pais. Aí então ela teve que ceder. Mas deu sem prazer nem alegria. Isso foi ela mesma quem disse.
O prazer da relação sexual ela só foi experimentar uns oito dias depois. E não foi com o marido Genésio. Foi com o Gregório. O que aconteceu foi o seguinte. A Olívia na verdade, era apaixonada pelo Gregório. Desde os treze anos. Mas a família do Gregório era inimiga figadal da família dela. No sertão tem dessas coisas. É outro arquétipo comum que todo sertão cultiva. É preciso que existam famílias inimigas, senão não é sertão.
Já ocorrera inclusive algumas mortes nesse conflito. Uns três anos antes do casamento da Olívia com o Genésio, um tio dela, o Benedito Fagundes, havia sido morto numa emboscada e todo mundo sabia que quem matara ele fora o pai do Gregório. Disputa de terras. Mas ninguém pode provar nada. Em represália, o Geraldo, irmão do Benedito, também matou a facadas um irmão do Gregório numa briga de bar. Lembro-me bem dessa história que minha mãe contava. Ela já havia se mudado de Campos Novos. Recebeu a notícia da morte do tio através de uma carta da Olívia que terminava assim: “ O tio Dito foi assassinado. Os Lopes mataram ele. Mas não fique triste por isso não. O tio Geraldo já vingou ele. Matou o Maneco, irmão do Gregório. Tá tudo elas por elas.”
A história de Olívia com o Gregório não tinha nada de Romeu e Julieta. Eles se gostavam, mas nunca tiveram coragem de desafiar a família para ficarem juntos. Se olhavam de longe, arriscavam, de vez em quando um sorriso, uma piscadinha um para o outro, mas nunca passara disso. Até o dia que em que o Gregório foi na casa de Olívia para levar a certidão de casamento dela com o Genésio. Naqueles dias isso não era feito na hora.
Não vou ficar historiando aqui como os dois acabaram na cama. Isso daria matéria para um romance psicológico. Só vou dizer que aconteceu porque talvez tivesse que acontecer. Quem acredita em destino pode dizer que ninguém escapa dele. Quem não acredita pode botar na conta da coincidência ou das derrapadas a que toda criatura humana está sujeita a ter na vida. Não importa, pois o resultado é sempre o mesmo.
Nesse dia Genésio estava em viagem com sua tropa. Olívia estava sozinha em casa. Gregório, dizem, tinha uns olhos de águia quando olhava para uma cobra. E Olívia tinha olhos de cobra olhando para um sapo. Os dois se olharam e se atraíram. Não conseguiram desgrudar o olhar um do outro. O olhar atraiu os lábios. Os lábios colaram os corpos. Os corpos se juntaram pela volúpia de um desejo incubado por tantos anos. E eles se tornaram amantes. Havia se passado pouci mais de uma semana que a Olívia havia se casado com o Gregório.
Como tropeiro Gregório passava a maior parte do tempo fora de casa. Por isso levou quase um ano para ele descobrir o par de chifres que andava levando em suas viagens. Campos Novos não teria, naqueles tempos, mais que uns quinhentos habitantes. Todo mundo sabia do lance, menos o Gregório. Nos sábados á noite, quando não havia festa, os homens da aldeia costumavam se reunir no armazém do Zeca Mariano para tomar umas e outras e fofocar. Homem fofoca mais que mulher. Durante a pingaiada havia sempre alguém jogando uma indireta. Mas o Gregório não era tão sensível a essas coisas. Sabia que pinguço fala muita bobagem. Aquelas indiretas sobre cornos e maridos que passam muito tempo fora de casa deixando a mulher para deleite de outros não tinha nada a ver com ele. Ele não era homem de ficar vendo assombração, como aqueles caboclos da aldeia. Todos eles já haviam visto a Miota. Ele não.
A Miota era uma lenda naqueles sertões. Era uma assombração. Todo caboclo que morava naquelas serras e costumava andar por aquelas trilhas dizia que já havia visto, pelo menos uma vez na vida, uma Miota. Não sei explicar a etimologia do nome.Minha mãe também não soube. Ela só dizia que a tal assombração tinha a forma de uma mulher, que aparecia vestida com uma longa bata preta e uma tocha na mão. Não atacava ninguém fisicamente, mas nem precisava. Quem via a tal assombração dificilmente escapava com vida. Ora caia do cavalo e quebrava o pescoço, ora saia correndo que nem um condenado e acabava se arrebentando num daqueles precipícios da serra.
Minha mãe disse que na noite em que aconteceu a tragédia que transformou a Olívia na cabocla Teresa de Campos Novos, ela estava dormindo quando ouviu um barulhão atrás do paiol. Foi um baque surdo, como se alguém tivesse arriado no chão um feixe de lenha dos mais pesados. Ela e o pai se levantaram para ver o que era. A noite estava escura como breu. Só deu para ver o vulto que sumia no meio do milharal. Um enorme vulto preto de mais de três metros de altura, segurando uma tocha na mão. Pelo arrepio que subiu pela espinha dorsal dos dois e pelos cabelos que arrepiaram como se um vento de baixo para cima os tivesse levantado, eles sabiam que acabavam de ver a Miota.
A Miota sempre aparecia para alguém quando alguma tragédia de morte estava para acontecer na serra. Tinha aparecido para o Tio João no dia em que uma cobra urutú picou a mulher dele. Ela morrera naquela mesma noite. Aparecera também no quintal do Zeca Mariano quando o primeiro filho deles, o Toninho, morrera de varíola. Na família de Olívia todo mundo já tinha visto a Miota. Na família do Gregório também. Cada vez que um membro da família de um matava um membro da família do outro, alguém da família desfalcada via a Miota rondando a casa do defunto.
Minha mãe já não morava em Campos Novos quando soube que a Olívia tinha morrido. A carta do primo Nenê dizia que ela foi encontrada morta em casa. Tinha levado três tiros. E na estrada que ia para Cunha, um tropeiro tinha encontrado também o Gregório estirado no chão. Fora morto a tiros. Era um sábado e ele estava voltando de uma festa de São João na casa do Chico Neves onde ele soltara fogos e balões.
Daí muita gente andou dizendo que aquela música do Braguinha, o Zé Fogueteiro, tinha sido inspirada nele, da mesma forma que a Cabocla Teresa era a Olívia. Bobagem. Foi tudo baita coincidência, pois caboclas Teresas e Zé Fogueteiros são tipos arquetípicos que existem aos montes pelos sertões do Brasil.
Ninguém precisou pensar muito para adivinhar o que acontecera. O Genésio descobrira o caso dela com o Gregório. Matara primeiro a esposa e depois saíra à procura do amante dela. Sabia que ele estava na festa do Chico Neves. Emboscou-o no caminho e sapecou-lhe dois tiros no peito.
Genésio não passou mais de dois anos na cadeia. Muitas circunstâncias atenuantes foram levantadas. A traição da Olívia, a lavagem da honra, o estado de intensa emoção, tudo concorreu para aliviar a pena. Eram tempos e lugares diferentes aquele.
Mas esse não foi o resultado mais interessante que ficou dessa tragédia cabocla. Foram os desdobramentos dela. O Genésio foi morto em emboscada uns dois meses depois de sair da cadeia. Todo mundo sabia quem foi o assassino, mas não se pode provar nada. Ninguém foi preso por isso. Depois disso mais umas dez pessoas, contando as duas famílias, foram mortas, num espaço de dois anos. Quatro da família da Olívia, seis do Gregório. E a Miota se tornou uma aparição constante naquelas serras. Todo mundo viu Miotas piscando por todo o sertão. Eram tantas as aparições que o Padre Bernardo, pároco de Campos Novos, foi convidado a dar seu parecer. Escrevendo para o jornalzinho de Cunha, o bom pároco afirmou perentoriamente que a Miota não existia. Era tudo crendice daquele povo supersticioso que só conseguia resolver seus conflitos na base da violência. A Miota, na verdade, era um reflexo da consciência dos caboclos, e que o povo da serra só deixaria de vê-la depois que a educação e a luz elétrica fossem implantadas naqueles sertões. Disse também, com a ironia que lhe era própria, que uma escola, e os postes da Light, eram os melhores exorcistas que ele conhecia.
Minha mãe não achava não. Mesmo morando na cidade já há mais de vinte anos, quando ela recebia a notícia de que alguém das suas relações de família ou amizade estava para passar desta para a melhor, ela não botava a cara fora de casa. Tinha um medo danado de ver a Miota. Antes de a levarmos para o hospital, onde morreu três dias depois, ela disse que havia visto a tal assombração no quintal dela olhando para as galinhas que ela criava, como se as estivesse contando. Coincidência ou não, depois que ela morreu todas as galinhas que ela criava no nosso quintalzinho também morreram num prazo de três dias. O veterinário disse que foi uma doença que deu nelas.
Eu, que não sou supersticioso e sempre acreditei nos homens de ciência, achei que o veterinário estava certo. Mas por vias da dúvida não costumo sair de casa quando alguma tragédia anunciada está para acontecer.
____________________________________________
Observação. A palavra Miota é, provavelmente uma corruptela de Moita, que segundo várias lendas sertanejas é uma assombração que aparece nas noites do sertão para assustar os caboclos. Existem várias versões dessa lenda. Ora trata-se de uma aparição semelhante às imagens da morte, vestida com um longo traje negro, com dois olhos vermelhos como tochas, ora trata-se de um espectro sem forma definida que surge em moitas à beira do caminho, sempre ornado com luzes fantasmagóricas. Os caboclos da Serra da Bocaina a chamam de Miota.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 23/06/2017
Alterado em 24/06/2017