Em seu famoso romance “Cem Anos de Solidão” Gabriel Garcia Marques desenvolve uma interessante metáfora sobre a cultura política e social latino-americana. A nossa distância das principais correntes ideológicas que movimentam a vida em outros lugares lhe sugere a visão realista-fantástica de uma vila e uma família que sobrevivem a centenas de revoluções, passam por várias gerações e mudanças políticas, sociais e econômicas, e no entanto, terminam do mesmo jeito que começaram, isto, é, submetidas a um destino inexorável, que é o cumprimento de uma velha e terrível maldição.
A verdade é que aqui as coisas sempre chegam com pelo menos meio século de atraso. O comunismo já morreu na maior parte do mundo (salvo na Coréia do Norte), mas ainda há muita gente por aqui insistindo em manter insepulto esse cadáver mal cheiroso que tanta gente enganou com suas propostas messiânicas de um futuro garantido sem competição e sem conflitos distributivos. Ainda estão entre nós os bolivarianos, defensores das ideias de Marx e Lenin e os órfãos de Fidel Castro, que ainda teimam em defender um regime que fabricou milhares de órfãos, perpetuou a pobreza e contribuiu, em larga margem, para manter a América Latina nesta centenária solidão que Garcia Marques denunciou em sua bizarra metáfora.
Este é, propriamente, o grande dilema da esquerda brasileira neste momento em que o maior de seus representantes, o PT, se encontra nas cordas, a beira de um nocaute do qual dificilmente se recuperará, pelo menos nos próximos anos. Mais que a perda do poder, as esquerdas brasileiras perderam as suas principais armas, que eram o discurso ético, a luta por uma causa e a defesa de valores que o povo identificava como bandeiras das esquerdas. Essas bandeiras estão agora tão rotas e desacreditadas que não resta á essa gente senão fazer uma reflexão profunda sobre suas próprias razões de existir e suas ultrapassadas crenças, que ainda remontam ao século XIX. A verdade é que as esquerdas latino-americanas ainda não se recuperam do colapso da União Soviética, e na falta de uma opção viável dentro do seu próprio sistema de pensamento, preferiram operar dentro do sistema capitalista, adotando e imitando o que o que de pior existe dentro dele, que é a cartelização da economia e a concentração do poder em grupos específicos, cooptados por corrupção. O pacto petista pela concentração de poder entre sindicatos, grandes empresas, empreiteiros de obras públicas, executivos das empresas públicas e ONGs comprometidas com movimentos sociais acabou sendo corroído pelas redes de comunicação social, que desafiam o monopólio da comunicação das mídias oficiais e escapam da verticalização dos partidos. Com isso o discurso político, seja das direitas ou das esquerdas, estes sempre mais demagógicos do que os primeiros, porque se referem á demandas sociais, ficaram sem sentido. Principalmente o da esquerda, que ainda fala em lutas de classes e grita chavões de “abaixo a burguesia”, tentando operar com duas realidades que não mais existem em um mundo de ideias horizontalizadas pela Internet e pelas redes sociais.
No romance de Garcia Marques a família Buendia- retrato metafórico da América Latina- não terá outra chance de fugir da sua centenária solidão. Mas a crise que estamos vivendo hoje é uma grande oportunidade para rompermos de vez esse nosso grande distanciamento com o resto do mundo. Quem sabe desta vez, os Buendias, que somos todos nós, possamos vencer, finalmente, a maldição que pesa sobre a nossa pobre América Latina, enterrando de vez um esquerdismo ultrapassado e uma direita predatória que ainda crê na infalibilidade dos mercados como fórmula de desenvolvimento econômico e estabilidade social. Os nossos descendentes não precisam nascer com rabo de porco, mas continuarão nascendo se continuarmos persistindo no culto ao materialismo dialético que só consegue ver os dois extremos de uma realidade que já está morta e enterrada há muito tempo.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 27/06/2017