João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


O MANUSCRITO DO DIABO

 
Dizem que os psicopatas são charmosos, simpáticos, mentirosos e manipuladores. Que não se importam de passar por cima de tudo e de todos para alcançar seus objetivos. Que são egocêntricos e narcisistas, e não sentem remorso ou qualquer tipo de culpa quando fazem alguma coisa que a lei define como crime ou que a moral social condena. 
Ah! E tem também a patacoada que as religiões ensinam, com esse negócio de pecado. Psicopata também não sabe o que é pecado. Tem mais. Se algo ou alguém ameaça seus planos, eles ficam agressivos e batem sem dó. Se alguém os acusa, eles procuram inverter o jogo, colocando-se no papel de vítimas. Fazem carinha de inocentes, choram, parecem bezerrinhos de sacrifício, com aqueles olhinhos que dão dó.
Li em algum lugar que a psicopatia atinge cerca de 4% da população mundial, sendo que 3% é de homens e 1% fica com as mulheres).  Se essa estatística estiver certa, em um país como o nosso, com cerca de 200 milhões de habitantes, teríamos pelo menos 8 milhões de psicopatas andando por aí. Quem sabe esse cara que está aí do seu lado, nessa mesa de bar, ou essa mulher que está sentada com você, esperando o médico, ou o cabeleireiro para atendê-la, não seja um, ou uma psicopata? Quem garante também que você não casou com um deles, ou então que não divide uma mesa de trabalho, ou até se senta ao lado de um na escola? E os caras que você mandou para as câmaras de vereadores, deputados e senado, esses não tem dúvida que são. Ah! Ah! Ah!.
Não, não precisa ficar com medo. Nem todo psicopata é violento e de repente vai sacar uma arma e sair atirando nas pessoas. Nem é comum que eles andem com afiados facões, como o Jason da Sexta-Feira Treze, ou saiam por aí retalhando pessoas com um machado. Isso é coisa de filmes de terror. A realidade é um pouco mais sutil. A natureza é sábia e sabe esconder os horrores que ela fabrica. Você não identificará um psicopata até ser vítima de um deles. 
Isso é o que dizem os estudiosos. Eu adoro esses estudos. Um desses caras, acho que é professor de uma universidade americana, disse que, de fato, há uma tendência de os psicopatas recorrerem à violência física e sexual, mas no comum, a maioria deles não é violenta. Dizem até que há muitos psicopatas bem-sucedidos profissionalmente, ocupando posições de destaque na sociedade, principalmente nos negócios, nas artes e principalmente, na política. Nisso eu acredito. A nossa realidade o confirma.
Sim. Claro que não adianta ficar olhando nos olhos de um psicopata para ver se ele apresenta sinais do seu  desequilíbrio. Aliás, a palavra desequilíbrio talvez nem caiba para ele. Psicopatas não são desequilibrados. Ao contrário, se são assim tão centrados em suas obsessões, isso denota que eles são mais firmes em suas crenças do que a maioria das pessoas, que muitas vezes, deixam de realizar seus propósitos com medo de serem descobertas pela polícia, ou de sofrer constrangimentos morais, ou ainda, o que é pior, ser castigadas depois de mortas. 
Isso é o que vejo quando me olho no espelho. Se um psicopata é mesmo tudo isso que os estudiosos dizem que é, então eles não estão descrevendo um ser monstruoso– um golém social – criado pelas pressões da sociedade moderna. Na verdade, eles estão descrevendo o indivíduo perfeito, o protótipo que Nietszche procurou durante a vida inteira para encarnar o seu super-homem. 
Senão vejamos: o psicopata, segundo outro renomado estudioso, desenvolve um acentuado egocentrismo, que lhe dá condição para nunca sentir culpa e remorso por qualquer sofrimento que ele venha a infringir a alguém. O excesso de razão e a inexistência de qualquer emoção são suas principais características. Sabem mentir e fingir como ninguém, e são mestres em forjar afeto. Em razão disso, são capazes de enganar a maioria das pessoas, que vêem neles indivíduos simpáticos, afáveis, positivos, prafrentex em todos os sentidos.  Não é o tipo de pessoa que a maioria gostaria de ser? Não é o tipo de pessoa que todos os modernos coachs dizem que você deveria ser?
Eu olho para mim mesmo no espelho e sinto um prazer incomensurável em ser o que sou.  Sou um jovem bonito, alto, com cabelos e olhos castanhos, maçãs do rosto bem redondinhas, uns olhos entre castanhos e azuis que lembram o Brad Pitt. Nada em mim denuncia qualquer distúrbio mental. Estou mais para o Talentoso Ripley do que para o Norman Bates.
Sinto-me feliz e prendado. Há tanta gente no mundo lutando para adquirir uma personalidade de psicopata e eu já nasci com ela. Tem gente até que faz cursos para aprender a ser psicopata. Gente que lê um monte de livros de auto-ajuda para aprender a ser psicopata. Gente que gasta um dinheirão com analistas para descobrir que na verdade, o que eles querem mesmo é ser psicopatas, isto é, se livrar de suas culpas, seus remorsos, seus medos, suas neuras. 
Psicopata já nasce imune a tudo isso. Se tem prazer em enganar pessoas, e tomar alguma coisa delas, pouco importa que lhe chamem de 171. Ele sente prazer em ver o quanto é esperto e os outros são tolos. É uma indiscutível prova de superioridade da sua inteligência sobre a deles. E se ele tem um perfil de assassino, a sua maior glória é poder tirar de uma pessoa tudo que ela tem: a vida. Sim. Pois quem tira a vida de uma pessoa tira, concomitantemente, tudo que ela tem e poderia ter. Não é uma coisa bestial, essa?    

É engraçado. É usual pintar os psicopatas como assassinos e bandidos. Mas a mídia costuma transformar em heróis muitos deles. Eles têm muito mercado no ideário popular.  Batman não é um psicopata? O Homem-Aranha também não? O John MacClane (aquele cara duro de matar), e todos os personagens do Stalone, do Schwarzenegger. O 007 e o Jason Bourne, também não são? E na História geral, quem escreve seu nome nela, geralmente não são os psicopatas? Alexandre, o Grande, não era? Quase todos os imperadores romanos? Os mais famosos, Nero, Augusto, César, Calígula, Constantino, quem o pode negar? E Hitler, Mussolini, Lenin, Che Guevara, Abraão Linconl, aquele outro Abraão mais antigo, que inventou o Deus único, Napoleão, um bom número de Papas, Martinho Lutero e tantos outros nomes que você já leu nos seus livros? Todos eles mataram pessoas ou mandaram matar, e alguém terá, por acaso, ouvido falar que se consumiam de culpa por isso? Todos tinham uma causa. Todo psicopata tem uma causa. Alguns deles são muitos úteis para a História Geral da humanidade. Keóps, Kefren e Miquerinos, os construtores das pirâmides eram psicopatas, mas o Egito vive até hoje da sua loucura. E os profetas bíblicos, quem garante que não eram?  O próprio Jesus, que se imolou em uma cruz para salvar, dizem, uma humanidade que nem sabia quem era ele, também não era? Afinal, a fé cega e louca, assim como o fanatismo religioso, também não é uma forma de psicopatia?
 
Já ouvi muita bobagem a respeito. Uma delas é que os psicopatas geralmente tiveram uma infância repleta de violência e muitos cresceram em uma família desestruturada. Isso não aconteceu comigo. Meus pais sempre me trataram com muito carinho. Acho até que foram super-protetores, não deixando que a violência das ruas chegasse até mim. Conservaram-me em uma redoma, me puseram em bons colégios, fizeram de tudo para que eu crescesse num ambiente o mais seguro e saudável possível.
Meu pai é advogado e minha mãe psicóloga. Estranho, não é? Estranho que eles nunca tivessem percebido que o filho era psicopata. Meu pai trabalha com criminosos, é advogado criminalista. Minha mãe convive em sua clínica com todo tipo de aberrações comportamentais. E nunca perceberam que eu era uma pessoa sem remorsos, sem escrúpulos, dissimulada, manipuladora e extremamente egoísta, a ponto de matar minha própria irmãzinha recém-nascida...
Sim. Eu a matei. Fui eu que a virei de bruços no berço. Ela tinha cerca de quinze dias. Acabara de tomar mamadeira. Eu a virei de bruços e ela se afogou com o próprio vomito. Meus pais nunca se recuperaram da culpa por não terem percebido isso. Pensaram que ela tinha se virado sozinha. Eu só senti nojo. E eu tinha apenas cinco anos.
Depois disso eles não quiseram mais filhos. Dedicaram-se totalmente a mim. Sempre me deram tudo que eu quis. Brinquedos, viagens, roupas de grife, aparelhos eletrônicos, tudo. Nunca fiscalizaram o que eu via na televisão e os meus jogos de computador. Sou vidrado no Assassins Creed. Altair é o meu herói. Adoro ver como ele elimina os inimigos templários. Gostaria de ser como ele, um assassino estrategista. Sei tudo sobre as seitas dos Assassinos e dos Templários. Sei que eram inimigos durante as cruzadas e viviam se matando uns aos outros. Sei também que a seita dos Assassinos tem origem nos antigos sicários dos tempos de Jesus, homens que se misturavam á multidão e assassinavam suas vítimas com uma faca de lâmina curva chamada sica, por isso o nome, sicários. Eles tinham objetivos políticos. Matavam os inimigos do povo de Israel. Coisa bíblica. Nada como o prazer de matar por uma crença. Os Templários matavam em nome de Cristo. Os Assassinos matavam em nome de Alá. Ainda matam. Esses caras do Estado Islâmico são todos psicopatas. Os cristãos matam os muçulmanos e os muçulmanos se vingam jogando bombas e aviões nos prédios públicos dos cristãos. E agora estão jogando ônibus e outras coisas em cima das pessoas nas calçadas. O mundo está cheio de psicopatas. Acho que não é só quatro por cento, é muito mais.

                                                    
Talvez seja por isso que eu não estou me importando muito com o que vai acontecer comigo. Acabo de matar toda a minha família. Atirei no meu pai com a própria pistola dele, enquanto ele estava dormindo. O idiota estava deitado de bruços e não me viu chegar com a arma na mão. Minha mãe, outra idiota, tinha a mania de rezar para dormir. Toda noite ela se ajoelhava na beira da cama para rezar. Sei que ela pedia muito por mim. Talvez estivesse fazendo algum pedido no momento em que atirei na nuca dela. A cabeça dela caiu que nem uma jaca podre em cima da cama. Eram cerca de onze horas da noite quando matei os dois. Depois fui á casa dos fundos, onde moravam minha avó e uma irmã da minha mãe e atirei nelas também. Se tem que fazer o serviço, faça-o completo. Não deixe ninguém para contar a história. Essa é a marca de um assassino profissional. 
Olho para os corpos deles e não sinto absolutamente nada. Nem a vista daquela sangueira toda me comove ou assusta. O sangue derramado tem uma cor fascinante. Não é vermelho nem púrpura, nem carmesim. Tem uma cor ocre, quase ferruginosa. Não se encontra uma cor dessas no catálogo das fábricas de tinta. Sei disso porque uma vez pedi aos meus pais que pintassem uma parede do meu quarto com cor de sangue derramado. Eles acharam esquisito, mas não negaram. Só não conseguiram achar essa cor no catálogo e pegaram uma tinta de cor rubra, meio tipo ferrugem. Não ficou bom. Se eu não fosse psicopata, teria odiado meus pais por isso. Mas psicopata não tem sentimentos. Se não ama, também não odeia. 
Assim não foi por ódio que matei a minha família e depois fui ao cinema. Se alguém quiser encontrar uma justificativa, ao menos para botar num relatório, e dar uma satisfação para a sociedade, podem dizer que matei por prazer. Não foi por dinheiro, como aquela Suzane Ritchhofen, que mandou o namorado matar os pais para ficar com o dinheiro deles. Meus pais não são ricos, embora tenham algum. Mas não é isso que me move. Até porque eu não vou mesmo tirar nenhum proveito disso. Meus motivos são mais nobres. 
Ah! Sim. Porque não vou tirar proveito disso? Porque eu também vou me matar. Quando os policiais chegarem aqui eles verão os cinco corpos e irão pensar um monte de coisas. Primeiro que foi assalto. Depois, quando verificarem que nada foi roubado, abandonarão a hipótese. Então pensarão que foi uma chacina encomendada por alguma razão de vingança. Afinal meu pai já mandou para a cadeia algumas pessoas, da mesma forma que já tirou delas um monte de psicopatas assassinos como eu. Vão demorar para descobrir que o assassino fui eu. E vão ficar terrivelmente frustrados porque não terão ninguém para prender, os promotores não terão ninguém para acusar, os jurados não terão ninguém para condenar e o juiz ninguém para sentenciar.
Ah! Ah! Ah! Psicopata é assim. Adora causar dor nas pessoas. Adora causar frustração nos outros. Adora tirar coisas dela. Por que não tirar dele mesmo? Talvez isso explique a razão dos suicidas, que até hoje ninguém conseguiu explicar. 
Uma última confissão. Eu sou um psicopata consciente. Sei que o que acabei de fazer é ruim, segundo todos os códigos de humanidade que a sociedade desenvolveu. Daí, posso dizer que fiz isso que vocês chamam de maldade pela última vez e agora vou me matar. Não precisam se preocupar mais comigo. Isso pode ser um paradoxo, um psicopata ficar se preocupando com o mal que faz. Mas não imaginem que se trata de sentimento de culpa, remorso ou qualquer outra emoção desse tipo. Psicopata não tem emoções. É que não consigo ver a mim mesmo na cadeia. Eu, que fui educado num ambiente tão saudável, não agüentaria conviver num lugar daqueles. Nem num manicômio judiciário. Tenho nojo dessa gente. Nojo é talvez o único sentimento que os psicopatas têm.
Os psicopatas que são mandados para o hospício são muitos declarados. Na verdade, não são psicopatas, são doentes mentais. Eu não. Eu sou muito lúcido. Sei o que fiz, como fiz, as razões por que fiz e não tenho arrependimento algum por ter feito. Tanto que estou escrevendo este texto. Podem chamá-lo de Confissões De Um Psicopata, ou de Manuscrito do Diabo. Aliás, este último título talvez seja mais apropriado, porque se há algo ou alguém, inspirando as minhas ações, é ele, o Tinhoso, inspirador de todas as grandes ações da vida.
Eu devia ter me tornado político para arranjar uma cadeira em qualquer das nossas casas legislativas. Esses psicopatas sim, são legais, porque são dissimulados. A maioria passa até por intelectual ou benfeitor da comunidade. Aliás, um deles, psicopata como eu, disse certa vez que eram quinhentos picaretas com anel de doutor. Acabou virando presidente da República e mesmo depois de toda merda que fez, ainda se julga um Messias, salvador da pátria. E quer voltar a ser presidente. Isso prova que psicopata não tem mesmo qualquer tipo de consciência reflexiva.
Na política eu poderia viver a minha psicopatia sem sofrer constrangimentos e ainda receber gordos proventos por isso. Por isso, ao me despedir, essa é a minha recomendação para vocês, meus caros leitores. Comigo vocês não precisam mais se preocupar, porque dentro de cinco minutos estarei morto. Serei um psicopata a menos. Mas não esqueçam aqueles lá. Eles continuam vivos. E são muito mais letais.
Adeus para vocês todos. A polícia está chegando. Escuto, ao longe, o som das sirenes. Devo apressar o desenlace. Nos veremos no inferno,se houver um tal lugar...

 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 29/08/2017


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