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APAE- UM POUCO DE HISTÓRIA
- O problema da linguagem
A relação da sociedade com as pessoas que apresentam algum tipo de deficiência física ou intelectual sempre foi motivo de controvérsias e perplexidades. Em nenhum momento da história da espécie humana houve uma concordância sobre os modos de lidar com esse problema. Ao longo do tempo é possivel perceber que há uma variação, às vezes até radical, de tratamento do tema, envolvendo mesmo uma política de Estado, que nele intervém, provocando as mais diversas reações na sensibilidade geral das pessoas. Os tratos dado a esse tema variam de cultura para cultura, conforme o sistema de crenças, valores e ideologias assumidas pelos diferentes povos que adotaram práticas sociais, religiosas e políticas com relação á pessoas consideradas deficientes.
Começa pelo problema de linguagem que o tema coloca em questão. Não há consenso no uso de um termo comum para definir o indivíduo com deficiência, e muito menos para informar, com um mínino de adequação semântica, o que, de fato, é uma deficiência física ou mental.
O termo mais comum utilizado para definir uma pessoa nessas condições é o de indivíduo portador de deficiência. Esse termo, porém nunca teve uma aceitação tranquila entre os estudiosos da questão. pois no sentido lógico do termo, o verbo portar não seria apropriado para definir o problema, pois as pessoas não portam uma deficiência como se porta um sapato, uma bolsa ou outro artefato qualquer. Por volta da metade da década de 90, foi proposta a expressão “pessoas com deficiência”, que tem sido considerada mais própria para definir o cidadão com algum tipo de deficiência. Esse termo é o mais utilizado nos dias atuais, embora também encontre alguns críticos, pois a palavra deficiência já carrega uma carga de ambiguidade bastante pesada, já que ela encerra um significado indefinido e impróprio, pois a deficîência, em si mesma, significa uma falta de atributo considerado indispensável em um sistema construído para a obtenção de um determinado resultado. E quem pode classificar um ser humano como algo que pode ser inserido nesse contexto?
A questão filosófica
Ao longo da História é possível perceber que esse tema vem sido tratado mais como uma questão filosófica-política, do que uma questão de saúde pública e um fato social mesmo. Veremos como ele evoluiu ao longo das sociedades que se sucederam no concerto geral das nações que nos legaram a civilização que hoje ostentamos, mas, como uma fórmula geral de prática social, com raríssimas exceções, é possível perceber que o tema “pessoa com deficiência” têm sido encarado, em todos os tempos, como um problema de relativa importância, e não raras vezes, objeto de políticas sociais restritivas e até mesmo cruéís.
Em um estudo publicado no início do século (1901) o antropólogo francês Francis Galton desenvolveu a hoje odiosa tese de que a sociedade humana deveria praticar uma “seleção natural” em seus membros, para melhoria gradativa da qualidade da espécie humana. Era uma forma de esterilização dos indivíduos com algum tipo de deficiência, para impedir que a filogênese natural da humanidade acabasse sendo contaminada por imperfeições genéticas, que poderia levar a um enfraquecimento geral da espécie.
Esse era um conceito derivado da teoria da seleção natural, desenvolvida por Charles Darwin, e levada ao seu termo mais radical nos anos de domínio nazista na Alemanha, quando se iniciou um programa de eutanásia aplicado, em princípio, em crianças deficientes. Esse programa, chamado T4, deveria depois se expandir para adultos com outras deficiências, físicas e intelectuais, impedindo-os de reproduzir. A lógica nazista se fundamentava em uma tese amplamente divulgada nessa época, e que integrava os conceitos desenvolvidos pelos teóricos da raça pura, para os quais “Deus não quer que o doente se reproduza”. Como esse esdrúxulo e odioso pensamento evoluiu para a política e acabou provocando o genocídio em massa de pessoas de diferentes raças é uma história que têm sido bastante explorada e não precisa ser invocada aqui.
O que fica dessas experiências é o fato de que a prática da eugenia, em relação á pessoas com deficiência é muito anterior ao período nazista e tem raízes históricas que serpem no tempo. É sabido, por exemplo, que entre os gregos antigos, a perfeição estética corporal e intelectual eram as qualidades mais amadas por aquela civilização. Daí o desenvolvimento das práticas esportivas por um lado, com o objetivo de alcançar a perfeição da forma física, e de outro o da filosofia, cuja função era o aprimoramento das faculdades intelectuais.
Num ambiente desses, é possível imaginar a dificuldade que uma pessoa deficiente, física ou intelectualmente, tinha para viver. A eugenia tornou-se uma política de estado. Na legislação de Esparta, por exemplo, as crianças nascidas com algum tipo de deficiência eram jogadas do alto de uma montanha.[1] Já em outras cidades da Grécia essas crianças, ou mesmo os adultos que sobreviviam com alguma deficiência eram estigmatizadas e referidas como monstruosidades, muitas vezes simbolizadas em mitos, como o do deus Hefestos.[2]
Entre os romanos registra-se também a pratica da eugenia em crianças nascidas com deficiência, como se pode perceber nesse discurso de Sêneca, um dos mais famosos filósofos romanos: ..."Não se sente ira contra um membro gangrenado que se manda amputar; não o cortamos por ressentimento, pois, trata-se de um rigor salutar. Matam-se cães quando estão com raiva; exterminam-se touros bravios; cortam-se as cabeças das ovelhas enfermas para que as demais não sejam contaminadas; matamos os fetos e os recém-nascidos monstruosos; se nascerem defeituosos e monstruosos afogamo-los; não devido ao ódio, mas à razão, para distinguirmos as coisas inúteis das saudáveis”. [3].
Houve épocas em que indivíduos portadores de deficiência eram mutilados através de operações cirúrgicas para serem apresentados em espetáculos públicos como palhaços, monstros e outras aberrações, como nos mostra Victor Hugo em seu romance “O Homem que Ri (1869). Ainda na Grécia antiga, há registros que mostram pessoas com deficiência sendo descritos como indivíduos “fracos”, “incompletos” ou “imperfeitos”, mostrando a forte carga de preconceito e rejeição que lhes eram imputadas. Esses registros mostram ainda que os gregos antigos conseguiam distinguir alguns tipos de deficiência de outras e algumas eles até conseguiam aproveitar para certas atividades sociais e profissionais. Era o caso dos portadores de nanismo, que devido a uma semelhança com os demônios sátiros, eram muito aproveitados nos espetáculos públicos, especialmente nos festivais dedicados ao deus Dionísio, que em Roma era conhecido pelo nome de Baco.[4].
(continua)
nota: Este texto é uma introdução preparatória ao livro dos cinquenta anos da APAE em Mogi das Cruzes. Quem tiver alguma informação sobre a história da APAE em Mogi das Cruzes, sobre seus fundadores, alunos que foram orientados nessa organização e conseguiram sucesso em sua inclusao social, ou qualquer outra experiência envolvendo a APAE Mogi das Cruzes, e quiserem prestar algum depoimento a respeito, entrar em contato conosco por este site. A APAE agradece.
[2] Hefesto era filho da deusa Hera e de Zeus. Nascido com defeitos em suas pernas, ele foi lançado do alto do Olimpo pelo próprio pai, justamente pelo fato de ter nascido com deficiência. Recolhido no interior da terra pelas nereidas Tétis e Eurínome ele tornou-se o patrono da metalurgia. Em Roma ele era conhecido como Vulcano, ou seja, o controlador dos vulcões e patrono de todos os trabalhadores que usam o fogo para a realização de suas obras.
[3] Sêneca, Discursos, pg. 46
[4] Dioniso (em grego: Διόνυσος) era o deus dos ciclos vitais, das festas, do vinho, da loucura, do teatro e dos ritos religiosos. Em Roma era chamado de Baco e presidia as famosas Bacanais, festas orgíacas a que os romanos se entregavam no equinócio da primavera. Dioniso era considerado protetor dos fracos e dos desvalidos, dos marginais e de tudo que era imperfeito na sociedade. Por isso seu séquito era sempre formado pelos sátiros, espécie de demônios nanicos, metade homem, metade animal, e que simbolizam a natureza ambígua e burlesca do ser humano.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 05/10/2017
Alterado em 05/10/2017
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