João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


A VIDA DOS DEFICIENTES, NA IDADE MÉDIA



 Nota.

Este texto é uma introdução preparatória ao livro dos cinquenta anos da APAE em Mogi das Cruzes. Quem tiver alguma informação sobre a história da APAE em Mogi das Cruzes, sobre seus fundadores, alunos que foram orientados nessa organização e conseguiram sucesso em sua inclusão social, ou qualquer outra experiência envolvendo a APAE Mogi das Cruzes, e quiserem prestar algum depoimento a respeito, entrar em contato conosco por este site. A APAE agradece.


O Novo Testamento

A disseminação da doutrina cristã por todo o império romano trouxe uma relativa mudança na forma da sociedade tratar o tema da pessoa com deficiência. A razão dessa mudança pode ser inferida claramente nos ensinamentos de Jesus, como se pode notar em Marcos 2:1,17 onde ele se refere expressamente às pessoas menos favorecidas como sendo o objeto direto da sua missão de resgate:
“Alguns dias depois entrou outra vez em Cafarnaum, e soube-se que estava em casa. E logo se ajuntaram tantos, que nem ainda nos lugares junto à porta cabiam; e anunciava-lhes a palavra. E vieram ter com ele conduzindo um paralítico, trazido por quatro. E, não podendo aproximar-se dele, por causa da multidão, descobriram o telhado onde estava, e, fazendo um buraco, baixaram o leito em que jazia o paralítico.
E Jesus, vendo a fé deles, disse ao paralítico: Filho, perdoados estão os teus pecados. E estavam ali assentados alguns dos escribas, que arrazoavam em seus corações, dizendo: Por que diz este assim blasfêmias? Quem pode perdoar pecados, senão Deus?
E Jesus, conhecendo logo em seu espírito que assim arrazoavam entre si, lhes disse: Por que arrazoais sobre estas coisas em vossos corações?
Que é mais fácil? dizer ao paralítico: Estão perdoados os teus pecados; ou dizer-lhe: Levanta-te, e toma o teu leito, e anda? Ora, para que saibais que o Filho do homem tem na terra poder para perdoar pecados (disse ao paralítico),
A ti te digo: Levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casa.
E levantou-se e, tomando logo o leito, saiu em presença de todos, de sorte que todos se admiraram e glorificaram a Deus, dizendo: Nunca tal vimos.
E tornou a sair para o mar, e toda a multidão ia ter com ele, e ele os ensinava.
E, passando, viu Levi, filho de Alfeu, sentado na alfândega, e disse-lhe: Segue-me. E, levantando-se, o seguiu.
E aconteceu que, estando sentado à mesa em casa deste, também estavam sentados à mesa com Jesus e seus discípulos muitos publicanos e pecadores; porque eram muitos, e o tinham seguido. E os escribas e fariseus, vendo-o comer com os publicanos e pecadores, disseram aos seus discípulos: Por que come e bebe ele com os publicanos e pecadores?
“E Jesus, tendo ouvido isto, disse-lhes: Os sãos não necessitam de médico, mas, sim, os que estão doentes; eu não vim chamar os justos, mas, sim, os pecadores ao arrependimento.”
 
A missão de Jesus, portanto, era trazer esperança para os menos favorecidos da fortuna, que constituía a maior parte da população do Império romano. Por isso os Evangelhos estão cheios de passagens nas quais Jesus cura pessoas com as mais variadas deficiências físicas e mentais, dando a entender à uma sociedade que tendia em isolar tais pessoas, que elas eram seres humanos que também mereciam o favor de Deus, e por conta disso deveriam ser resgatadas para o convívio social.
Por conta disso, nota-se, a partir do século IV principalmente, quando o Cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano, uma certa melhoria na condição das pessoas com deficiência. Mosteiros e outras unidades da Igreja começaram a fundar hospitais e outros tipos de abrigo para atender a população marginalizada, e nessa esteira, também as vitimas de doenças físicas e mentais acabaram recebendo uma melhor atenção.
Foi nesse sentido que o Concílio da Calcedônia, realizado em 451, aprovou diretrizes com a finalidade de determinar a bispos e titulares de paróquias que organizassem instituições de assistência aos pobres e enfermos em suas comunidades. Otto Marques da Silva, informa, por exemplo, que em Lyon, já no ano de 542, era criado o primeiro hospital para tratamento dos pobres e incapazes, a mando do rei dos francos, Childebert. [1]
 
A ótica medieval
 
Como já referido no capítulo anterior, não obstante a doutrina de Jesus recomendar um tratamento humanitário ás pessoas com deficiência, foi o próprio Vaticano que descumpriu essas determinações proibindo que pessoas com deficiência fossem ordenadas padres ou exercessem funções importantes na hierarquia da Igreja. Os primeiros Cânones Apostólorum (cânones apostólicos) elaborados após o Concílio de Nicéia (325 e. C) continham disposições restritivas à ordenação de sacerdotes com certas deficiências físicas ou intelectuais. Segundo uma bula emitida pelo papa Gelásio I, que foi Sumo Pontífice entre 492 e 496, os postulantes ao sacerdócio não poderiam ser analfabetos nem ter “em alguma parte do corpo certas mutilações ou deformidades.”[2]
Esse, como vimos, era um resquício do Velho Testamento, no qual se proibia que pessoas com deficiência fossem admitidas nos ofícios divinos. 
 
      A Idade Média, como nos mostram os historiadores, foi um período em que imperou a filosofia imposta pela Igreja de Roma, herdeira dos restos culturais que a civilização dos gregos e romanos nos legaram. Se de um lado a piedosa fórmula de amor ao próximo, ensinada por Jesus, foi tomada por alguns núcleos da Igreja como uma cláusula pétrea a gerir o comportamento prático dos cristãos, de outro lado, o caráter místico e supersticioso que a Igreja disseminou nas sociedades medievais acabou conspurcando, de certo modo, as ações meritórias que vários de seus membros desenvolveram para minorar o sofrimento e as dificuldades das pessoas com deficiência tinham para sobreviver nessas sociedades.
Se, por um lado, organizações piedosas como a Ordem dos Franciscanos, a Ordem dos Beneditinos, os Carmelitas, por exemplo, desenvolviam trabalhos meritórios nesse sentido, havia, por parte de um grande segmento da Igreja uma tendência de atribuir às pessoas deficientes alguma influência maligna, que os levava, mais do que à uma vida de reclusão e repulsa por parte da sociedade, não raras vezes, a serem até banidas ou mesmo mortas para satisfazer as crendices que se criavam em torno de pessoas com essas características. 
É evidente que a ignorância em que viviam as populações medievais, bem como os baixos patamares de higiene e saúde mantidos pelas comunidades dessa época contribuíam em muito para esse tipo de comportamento. As incapacidades físicas, as malformações congênitas, as deficiências mentais e outros problemas dessa ordem, que surgiam nas comunidades, eram tratados como castigos impostos por Deus á família do deficiente, ou mesmo à populações inteiras de uma vila ou cidade, por algum pecado por eles cometido e não devidamente expiado, na forma prevista pelas autoridades religiosas locais. Exemplos de perseguição e comportamentos discriminatórios contra pessoas com deficiência são comuns em toda a Idade Média e entre praticamente todos os povos onde a Igreja de Roma fixou domínio, espiritual ou laico. Pessoas que apresentavam um “padrão” considerado anormal pelas autoridades religiosas locais, seja por apresentarem alguma deformidade física, ou algum problema mental, ou ainda por professarem crenças diferentes daquelas adotadas pela Igreja, eram logo colocadas no rol dos excluídos da graça divina e carimbadas das como “anormais”.
Doenças comuns nessa época, geradas e disseminadas pelas péssimas condições de higiene e saneamento básico existente nas cidades medievais, como a hanseníase (lepra), a peste bubônica, difteria, varíola, poliomielite e outras moléstias deformantes, bem como as crianças que nasciam com malformações genéticas, quando não eram sacrificadas em nome de alguma crendice popular, passavam a vida em situação de extrema privação e absoluta marginalidade.[3]
Há inúmeros registros que mostram essa tendência da sociedade medieval em estigmatizar as pessoas com deficiência, empurrando-as para o quadro desolador da pobreza e da marginalidade que caracterizou a grande massa das populações pobres e socialmente desprotegidas dessa época.
Exemplo claro dessas tendências era a existência, nas cidades mais importantes da Europa e Oriente Médio, dos chamados guetos, onde essas populações marginalizadas se concentravam. Eram locais onde se reunia a chamada “escória” da sociedade. Ali eram encontrados os marginais, as prostitutas, os doentes, os mendigos e as pessoas com deficiência, que eram contadas dentro do rol da marginalidade, pura e simples, pelo mero fato de terem sido atingidos por essa fatalidade.
 
A visão renascentista
 
     Como se sabe, o chamado renascimento cultural do Ocidente teve sua fonte de inspiração na redescoberta dos ideais humanistas greco-romanos, que haviam sido eclipsados por um ideal de ascetismo e submissão psicológica do homem a um poder maior, que os teólogos da Igreja Romana haviam transformado na filosofia base do Cristianismo medieval. Nessa nova tendência trazida pela Renascença, que fez os povos europeus entrarem em uma nova fase histórica, o homem se redescobria, agora não mais como um joguete de misteriosas concepções urdidas por uma divindade austera e vingativa, à qual somente os representantes da Igreja tinham acesso, mas sim como um protagonista da própria História, que ele estava ajudando a escrever.
     Nesse contexto, a questão da pessoa deficiente, dentro do amplo espectro que se formava com as discussões acerca dos direitos naturais da pessoa humana, ganhou também uma nova orientação, embora, no caso específico das pessoas com deficiência, as modificações tivessem sido lentas e muitas vezes, imperceptíveis.
Mas entre os séculos XV e XVII a Europa cristã assistiu à uma inquestionável mudança sócio-cultural, representada pelo avanço da ciência, a melhoria das condições de higiene e saneamento básico das cidades, e principalmente a libertação espiritual do homem dos dogmas e crendices medievais, que o impediam de reconhecer o valor do ser humano, independente da sua conformação física e das crenças que ele adotava.
Nesse espaço abriu-se também a possibilidade para que as pessoas menos aquinhoadas pela natureza, ou mesmo aquelas com deficiências físicas pudessem, pelo menos, encontrar um lugar ao sol, sem ser consideradas como aberrações geradas pela ira divina no seu afã de castigar os homens pelos seus pecados. E entre estes, como bem assinala Marques da Silva, estavam as pessoas com deficiência.[4]
 
A política dos “Déspotas Esclarecidos”
 
Já no século XVI, segundo o autor acima citado, nota-se uma melhoria nos padrões de atendimento por parte das organizações que cuidavam desse problema, e uma maior tolerância e aceitação da própria sociedade, em relação à essas pessoas. A tendência de marginalização foi sendo gradualmente substituída por um comportamento de tolerância e uma atitude piedosa, que não mais via a pessoa com deficiência como fruto de uma vontade sobrenatural, mas sim como uma doença da própria sociedade, produzida pelas mazelas que ela hospedava em seu bojo.
Fortaleceu-se, principalmente no seio das organizações filantrópicas que prestavam assistência aos mais necessitados, o conceito de que pessoas com deficiências congênitas, que não tivessem, por suas próprias condições, meios de subsistir, deveriam ter uma atenção maior do estado e da sociedade em geral. Essa tônica viria a ser fortalecida por políticas adotadas em vários estados europeus, onde os chamados “déspotas esclarecidos”, ou seja, monarcas inspirados pelo pensamento iluminista, implantaram governos autocráticos, com fortes tendências nacionalistas e orientados para uma unificação social e territorial de seus reinos.
Nesse aspecto, os governantes desses países voltaram os olhos para o bem estar do povo em geral, de uma forma desconhecida na Europa até aquele momento, pois até então, o sistema feudal que imperava nos reinos europeus se fundamentava no conceito do trabalho servil, praticado por servos da gleba ou por artesãos e profissionais ligados à um suserano por uma relação de clientelismo, que no seu bojo incluía uma profunda rejeição por aquelas pessoas que não podiam produzir rendas para seus land lords, e por consequência acabavam sendo excluídas da sociedade.
Foi assim que se construíram, nos países governados pelos “Déspotas Esclarecidos” vários hospitais e entidades de atendimento específico para abrigar e tratar pessoas com deficiência, que antes só encontravam abrigo nos asilos para pobres e idosos. Ocorreu, dessa forma, ainda que timidamente, uma valorização dessas pessoas, e um reconhecimento de que eles eram, enfim, seres humanos que poderiam ter seu valor, se adequadamente tratados e aproveitados.
 
O pensamento iluminista
    
 
   Não obstante, a situação das pessoas com deficiência ainda estava longe de alcançar uma situação confortável. O preconceito e a discriminação, que já era uma tendência entranhada no seio de uma sociedade, que só muito lentamente e a grande custo começava a abandonar uma postura cultural alimentada por muitos séculos de superstições e crendices, vinha agora sendo alimentada por algumas teses filosóficas modernas, emprestadas da antiga filosofia grega, especialmente as ideias de Platão.
Essa filosofia ensinava que o conhecimento humano tinha uma origem inata, ou seja, eu ele provinha de uma fonte “a priori”, o que quer dizer que para uma pessoa ser “alguém” na vida era preciso que ele tivesse um equipamento físico e intelectual em condições de “receber” e executar esses conhecimentos. Essa era uma concepção que, de certa maneira, fragilizava ainda mais as pessoas com deficiência, já que o desempenho do homem, nesse caso, dependia fundamentalmente das boas condições do corpo e da mente. Isso, evidentemente  colocava em plano inferior tanto as pessoas com dificuldades sensoriais, como às que apresentassem quaisquer problemas intelectuais, as quais eram elencadas em um padrão de anormalidade.
 
Essa tendência só começou a ser amenizada quando concepções mais modernas, como a exposta por Locke, por exemplo, que colocou em dúvida as esses pressupostos esposados pelos cultores do inatismo. Locke, como se sabe, refutou essa tese lançando a ideia de todos os seres humanos nascem “tabula rasa”, ou seja, que não há “conhecimento a priori”, mas sim que todo conhecimento ou habilidade é adquirida durante a nossa existência. Assim, não havia nenhuma predestinação e qualquer pessoa, fosse qual fosse sua condição de nascimento, poderia construir seu próprio destino.[5]
Nesse sentido, eram as condições ambientais, a educação, as políticas públicas de acesso ao conhecimento e à tecnologia que criariam condições para o sucesso dos indivíduos e das nações e não uma pré-determinação divina ou étnica, como pregavam os cultores do inatismo.
Nessa nova fórmula de enfoque, ganharam destaque as ideias de que mesmo as pessoas com deficiências físicas ou intelectuais, poderiam, se adequadamente tratadas, encontrar lugar na sociedade.
O corpo já não era mais visto como uma dádiva divina, nem as faculdades conferidas ao ser humano uma herança racial ou biológica, mas sim como uma unidade que se compõe a partir de uma série de atributos que dependem, mais que dos seus antecedentes biológicos e culturais, aos equipamentos que a sociedade põe à sua disposição para que ele possa se desenvolver.
O corpo, portanto, não era mais aquela coisa sagrada, cuja composição e estrutura é conferida, única e exclusivamente, pela graça divina. Ele passa a ser uma unidade que se compõe na medida em que o próprio corpo social se organiza. E isso se comprova, cada vez mais, pelo desenvolvimento da medicina e das técnicas de educação. E é dessa forma que, a partir da derrubada do mito da sacralização do corpo que encontramos, já na Idade Moderna, uma nova forma de tratar a questão da pessoa com deficiência.
 
[1] Otto Marques da Silva, citado, pg 153.
[2] Idem, pg 166
[3] Victor Hugo nos dá um exemplo dessa situação em seu romance “O Corcunda de Notre Dame”, fazendo do disforme Quasímodo, o sineiro da Catedral de Notre Dame, o personagem central de sua história.
[4] Idem, Otto Marques da Silva, citado, pg. 226
[5] John Locke(1632-1704), filósofo inglês conhecido como o "pai do liberalismo". considerado um dos principais teóricos do contrato social,foi um dos principais representantes do iluminismo na Inglaterra. Sua principal contribuição ao pensamento filosófico é  a teoria da ‘tábula rasa”, ou seja, que a mente humana é uma “folha em branco” que se preenche apenas com a experiência  e conhecimento adquirido. É uma crítica à doutrina de Platão, segundo a qual certos princípios e noções, como bondade, justiça, amor, são inerentes ao conhecimento humano e existem independentemente da experiência adquirida pelo homem. O principal trabalho de Locke e. Ensaio acerca do Entendimento Humano, no qual desenvolve sua teoria sobre a origem e a natureza do conhecimento.
 

 
 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 15/10/2017
Alterado em 16/10/2017


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