Rosana era meio sonâmbula. Digo meio porque ela não era do tipo que levantava de noite e ficava andando pela casa feito zumbi, como são os sonâmbulos de fato. Às vezes levantava em pleno sono achando que já era de levantar e ir trabalhar. Mas eu corria atrás dela e a levava de novo para a cama, dizendo que ainda era cedo e ela podia dormir mais um pouco. Ela nunca resistiu. Sempre voltava para a cama docilmente e se agarrava a mim, como se tivesse medo de ser arrastada por alguma tormenta ou lufada de vento.
No mais das vezes ela só falava dormindo. E eu, mais por brincadeira do que por outro motivo qualquer (mentira, hoje eu sei que era por insegurança) ficava ouvindo o que ela falava e às vezes até fazia perguntas, que ela respondia, como se estivesse conversando com alguém da confiança dela. Perguntas do tipo “Você engana seu marido?” “Você gosta dele de verdade?”, “Seu marido é um cara legal?” eu fazia só para ver se ela não estava escondendo nada de mim, em termos de comportamento ou mesmo de sentimento. Se quiserem achar que isso era uma canalhice, podem achar, porque era mesmo. Eu tinha a maior confiança nela, mas no fundo sentia aquela insegurança que às vezes me batia, de não estar sendo o homem com quem ela sonhou. Uma bobagem, mas no começo do nosso casamento esses sentimentos costumavam me tomar de assalto toda vez que eu a via conversando com um cara mais bonito do que eu.
Esses sentimentos desapareceram com o tempo, e hoje eu posso confessar que os tive, e no lugar deles verifico que sobreviveu um vago sentimento de culpa por ter um dia pensado que ela poderia sequer ter sido infiel. Hoje tenho certeza que ela nunca foi e se um dia essa ideia passou pela cabeça dela, foi algo tão fortuito que nem o seu inconsciente a registrou. Pois se tivesse, com certeza esse nosso guardião de experiências e sabedorias processadas o teria revelado, pois no estado de inconsciência não há censuras éticas, morais, políticas, religiosas, ou de qualquer outro tipo para salvaguardar os nossos segredos.
Minha mãe dizia que essas crises de sonambulismo que a Rosana tinha desapareceria quando ela “criasse”. Minha mãe era uma pessoa muito simples e tão pouco letrada que tinha um parco vocabulário de palavras para designar as coisas. Então, um repertório de coisas comuns, que tivessem a mesma aparência, ou finalidade, podiam ser representadas por uma única palavra, como girau, por exemplo, para designar todos os tipos de armário, desde os usados nas cozinhas, como aqueles destinados a armazenar outras coisas, em depósitos, armazéns, oficinas, etc.
Assim, para ela, o verbo criar, designava, não só o processo de
odministrar o crescimento e a educação de um filho até sua emancipação, mas também, principalmente o próprio ato de gerar um filho.Quando Rosana engravidou da nossa primeira filha, ela disse “agora que ela pegou cria, tudo isso vai sarar”.
Ela dizia isso em relação a todos os incômodos físicos que a Rosana tinha. Enxaquecas, cólicas menstruais, crises de melancolia, tudo isso desapareceria depois que ela criasse. Rosana parecia acreditar nisso, pois engravidar passou a ser a sua Hégira, ou o sua E.C., isto é, tudo passaria a ser contado como antes e depois da sua gravidez. Assim ela costumava iniciar frases com um temporizador tipo “Isso aconteceu depois que em fiquei grávida”, ou “ antes de engravidar...”, “ isso foi antes de eu ficar grávida” etc.
Contudo, parece que minha mãe tinha razão. Rosana nunca mais falou dormindo nem se levantou de madrugada pensando que já era hora de levantar para ir trabalhar. E desapareceram também as enxaquecas e as cólicas mentruais, bem como as crises de melancolia depois que a Jimena, nossa filha mais velha, nasceu.
A propósito, o nome Jimena foi escolhido entre os três que sugeri a ela. Todos começavam com J. Dos três, Jinema lhe pareceu “mais original”. Eu não disse a ela que ele me veio da leitura dos “Os Cantares de Cid Campeador”, velho poema medieval que louvava as proezas do grande herói espanhol, Cid Campeador. Cá entre nós esse herói era mais conhecido como El Cid, graças à um filme estrelado por Charlston Heston e Sofia Loren, que fez muito sucesso nos anos sessenta. Jimena era a mocinha do filme, interpretada pela bela atriz italiana dos grandes peitos e lábios carnudos, e eu me lembro que esse foi um dos filmes que nós assistimos juntos, apesar de, na época, ele já estar um pouquinho defasado.
Quando a Rosana morreu, a nossa Jimena já tinha feito vinte e um anos, estava casada e nos tinha dado uma neta, a Luisinha. Ela morreu quando a Luisinha estava exatamente com um ano.
̶̶ Nossa, como a Luisinha está grande, ̶ disse Rosana, ao olhar para a menina, brincando no chão da nossa sala, rabiscando com um lápis de cor uma folha de papel sulfite que eu dera para ela.
- Ela já fez três anos – disse eu, desviando os olhos do livro que estava lendo e olhando para ela. Nem me assustou o fato de ela aparecer ali, no meio da sala, do nada e de repente. Ela sempre aparecia assim.
Olhei para Luisinha com medo de que ela também estivesse vendo Rosana. Mas a menina estava olhando para mim.
- A vó era bonita, né vô? – perguntou ela, com aquela vozinha de criança, ainda indefinida.
- Como...você ... sabe...?- perguntei, com o coração na boca e o espírito saindo-me pelos olhos. Será que ela estava vendo?
- Como...você...sabe...?
- No retrato. – respondeu ela, apontando para porta que dava para a área de serviços, que ficava no andar de baixo.
Olhei para Rosana. Ela estava sorrindo. Um sorriso terno, de emoção mal contida, de alguém louca para fazer alguma coisa, mas se contendo, por que sabia que não devia, ou não podia.
(continua)
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 18/01/2018