Talvez eu não tenha me assustado nem estranhado tanto a volta da Rosana, porque isso já vinha sendo ensaiado desde algum tempo. Acho que já nos primeiros dias após a morte dela. A verdade é que, nos dias que seguiram ao seu enterro, eu ainda sentia a presença dela em nossa casa. Acordava de manhã e passava a mão no lado direito da cama á procura dela. Eu sempre fazia isso. E, a bem da verdade, nunca consegui me acostumar com aquele vazio na cama, e talvez por isso, entre outras coisas, eu tenha procurado logo a companhia de outra mulher. O universo da nossa neurologia é como o universo físico. Não admite vácuos. Se um vácuo se forma ele trata logo de preenchê-lo, pois todo buraco vazio tende a criar uma força gravitacional em torno, que acaba chupando para dentro dele todo o ambiente á sua volta.
Acho agora que, na verdade, Rosana nunca foi embora. Pelo menos não imediatamente depois da sua morte. Isso aconteceu mais ou menos uns três dias depois do enterro. Eu estava esticado no sofá da sala assistindo um filme. Talvez tivesse cochilado um pouco, porque, a principio pensei que estivesse sonhando. O filme estava tão interessante que eu não tinha sentidos para mais nada a não ser a trama que se desenvolvia na telinha. Estava completamente absorvido por ela.
Foi então que eu viu o vulto que passou rapidamente na minha frente e saiu pela porta do corredor. Foi um fulgor de momento, que nem deu tempo para sequer imaginar o que era. Parecia ser Marisa. Talvez fosse Marisa, pensei. Mas ela havia saído há cerca de meia hora. Ia ao shopping comprar um presente para a sobrinha que estava fazendo aniversário. Eu mesmo a acompanhara até o portão, para fechá-lo, depois que ela saísse com o carro.
“Ué, será que ela voltou e eu não vi?”, perguntei a mim mesmo.
Levantei-me do sofá e fui o nosso quarto, onde achei que ela poderia ter ido. “Marisa deve ter esquecido alguma coisa”, pensei. Mas não havia ninguém no quarto. Nem nos outros quartos. Talvez ela tivesse descido para o andar de baixo, onde tínhamos um escritório, um pequeno salão de festas, a lavanderia e um quartinho de empregada.
Desci a escadinha em caracol que levava ao andar de baixo e esquadrinhei a área de serviço e o salão de festas. Nada. “Que estranho”, disse para mim mesmo.
Mas só poderia ser Marisa, embora disso não tivesse tanta certeza, pois o vulto passara tão rápido que não deu para identificar. Entretanto, havia alguma coisa naquele vulto que não se parecia com Marisa. Os cabelos, talvez. Marisa tem cabelos curtos, castanhos, quase alourados. O vulto parecia ser de uma mulher com cabelos negros e compridos, quase na altura dos quadris. Mas ele havia passado tão rapidamente que não dava para ter certeza de nada.
Concluí que havia sido vítima de uma alucinação, causada pelo estado de semi-transe em que eu estava em face do filme que estava assistindo. Eu sei que essas coisas podem acontecer conosco quando estamos focados profundamente em alguma coisa. A mente praticamente se desliga dos fatores ambientes e as informações que estão guardadas no subconsciente ficam livres para se manifestar. Isso já deve ter acontecido com você. De repente, como se saídas do nada, surgem nomes, sons, melodias, aromas, sensações, imagens, que são enviadas ao nosso sentido visual e projetadas na tela da nossa mente sem a censura da consciência. Então elas nos aparecem como alucinações, visões, premonições, sensações, insights, mas no fundo são apenas conteúdos psíquicos inconscientes que afloram nesses momentos em que a razão não está vigiando o trabalho da mente.
Era isso, ou então eu não estava efetivamente desperto. Embora parte dos meus sentidos estivesse plugado no filme, minha mente estava, na verdade, naquele estado de modorra que antecede a inconsciência do sono. E nesse caso eu estaria praticamente dormindo, e o que tive foi efetivamente um sonho.
O fato é que eu deixei de me preocupar e voltei para o sofá. Apertei o botão do controle do vídeo para dar continuidade ao filme que havia interrompido para procurar o vulto que me chamara a atenção.
Mas não havia transcorrido mais de cinco minutos, ou pelo menos eu assim pensei, quando, de repente, eis que o vulto surgiu de novo. Saiu do mesmo lugar de antes, o quarto de visitas, onde Marisa tinha instalado o seu computador e costumava ficar, horas a fio, fazendo os seus trabalhos. Passou rápido e com passos firmes em frente a mim. Mas tão rápido que mais uma vez, não consegui vislumbrar exatamente quem era, o que era.
“Não é possível”, pensei. Não pode ser Marisa. Voltei os olhos rapidamente para a porta onde o vulto sumiu e num segundo estava junto à escada que levava ao andar inferior. Deu ainda para ver a sombra que descia o ultimo degrau da escada. Desci rapidamente a escada e esquadrinhei novamente todo o andar inferior. Desta vez entrei no escritório e no quartinho vazio da empregada, que havia ido embora depois da morte da Rosana, e que Marisa não quis substituir. .
Olhei até no quartinho onde, antigamente, eu mantinha uma pequena adega. Nada. Fui até o quintal, procurei atrás da velha mangueira e da goiabeira, onde a Rosana costumava amarrar uma rede nos dias quentes de verão.
Comecei a ficar meio preocupado. Não tinha medo de fantasmas, nem acreditava em espíritos. Mas tinha medo da loucura, do descalabro mental que pode acometer qualquer pessoa. Estaria eu ficando louco?
Voltei para a sala. Não tinha mais nenhuma vontade de continuar a ver o filme. Resolvi voltar a ler um livro que havia começado no dia anterior. Era O Retrato de Dorian Grey, de Oscar Wilde, estranha estória de um homem que tem sua vida e seu destino preso a um retrato. Mas logo percebi que não conseguia também se concentrar no livro. Meus sentidos estavam todos alertas, olhando para todos os cantos da casa. Havia, sem dúvida algo acontecendo ali. Senti uma presença indefinível, oculta aos meus olhos, mas bem sensível aos sentidos cinestésicos, que me provocava um arrepio no couro cabeludo e aquela estranha sensação de estar sendo observado.
Foi então que eu o vi novamente. Era um vulto de mulher, agora saindo do antigo quarto das crianças. Atravessou o pequeno corredor e desceu as escadas em direção ao andar inferior. Rápida como o fulgor de um relâmpago.
“Desta vez você não me escapa”, pensei. Saltei rapidamente da poltrona e fui atrás daquilo que parecia um reflexo de mulher projetado em um espelho. Não era Marisa, disso agora eu tinha certeza.
Quando principiei a descer os degraus em perseguição ao vulto que desaparecera no fim da escada, percebi que uma réstia de luz entrava pelo pequeno vitral que havia no saguão onde a escada em caracol começava. Ela batia num quadro de flores pintado por Rosana, que eu, logo após a morte dela, havia pendurado na parede oposta do saguão. Vi que o quadro projetava um reflexo na parede ao pé da escada, onde outro retrato, este mostrando Marisa de corpo inteiro, cobria quase toda a superfície da parede. Mas a luz não batia nele, e então o quadro ficava envolto numa penumbra soturna e sombria.
Percebi logo que alguma coisa havia mudado no quadro. Lembrava-me muito bem quando Rosana mandara fazer aquela pintura. Ela era uma jovem senhora e fora retratada com um largo e cativante sorriso nos lábios e um lindo brilho no olhar. Queria ser mostrada em toda a radiante felicidade que então era a vida deles naqueles dourados dias dos nossos primeiros anos de casamento. Mas agora o rosto mostrava um semblante estranho onde o sorriso dava ao seu rosto um ar ambíguo e misterioso, que parecia querer transmitir alguma mensagem cuja sentido eu não conseguia entender.
E então, sem saber porque, pequei o retrato dela e levei para a sala. Pendurei-o no lugar onde ele estava antes, quando ela estava vida. E foi aí que percebi a mudança. O antigo sorriso cativante voltara. O semblante que antes eu achara estranho desaparecera. No lugar voltara aquela cativante alegria que eu sempre percebera nele.
Uma certeza começou a se formar no meu parco entendimento: Rosana estava ali. De alguma forma ela estava ali
(continua)
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 08/02/2018
Alterado em 08/02/2018