Se alguém quer matar-me de amor\ Que me mate no Estácio.\ Bem no compasso, bem junto ao passo\ Do passista da escola de samba\ Do Largo do Estácio.\ O Estácio acalma o sentido\ Dos erros que faço.\Trago, não traço, faço, não caço,\ O amor da morena maldita\ domingo no espaço.
A letra acima é de Luis Melodia, cantor e compositor que nasceu no Morro de São Carlos, bairro do Estácio. Negro e favelado, como Marielle, Luís também morreu recentemente depois de deixar para o povo brasileiro um repertório riquíssimo de lindas canções. Como Luis Melodia diz em sua canção, ele queria morrer de amor no Largo do Estácio. Mas esse desejo era apenas literário, fruto do sentimento do artista que busca o equilíbrio dentro de si mesmo através da arte. Não é caso da Marielle. Ela era uma mulher articulada que sabia muito bem o que queria e não tinha angústias existenciais de amante não correspondido, como na canção do Melodia, com todos os truques da linguagem do absurdo, que ele sabia usar muito bem. Ao contrário era uma batalhadora pelas causas que acreditava. Com ela nada de entrelinhas. Sua vóz era clara e insofismável. Sabia que as pessoas são diferentes, tem necessidades e desejos diferentes, pensam de maneira diferente, mas a sociedade tende a padronizar tudo. E quando não consegue ela procura excluir o que não combina. Daí nascem os guetos, os campos de concentração, e as formas mais sofisticadas de exclusão, que são as regras sociais, a etiqueta, o elitismo, o xenofobismo, o homofobismo, e o pior de todos, o racismo. Negra, favelada, bissexual, Marielle tinha todos os caracteres de uma pessoa que a sociedade costuma excluir. Mas ela lutou contra isso e se incluiu. E estava lutando também para que outros, como ela, também fossem incluídos. Normalmente a sociedade estabelecida pouco se importa com o grito dos excluídos. As regras e convenções sociais funcionam como vitrines que mantém uns dentro e outros fora. Quem está dentro não escuta quem está fora. Mas tudo fica diferente quando alguém penetra na vitrine e começa a gritar dentro dela. Então todo mundo se sente incomodado. Assim foi Marielle. Um grito ecoado dentro da vitrine. Um grito que incomodava. Não adianta dizer que nós somos humanistas, que respeitamos os direitos humanos e que não nos incomodamos quando alguém, que é diferente de nós, começa a dividir espaço conosco. A diferença incomoda sim, e a única medida de reação é dada pela nossa educação e pelo quanto somos capazes de tolerar a diferença. Quem ainda não conseguiu superar o estado de barbárie que rege a sua mente tende a tentar eliminar, por qualquer meio, o incômodo. Foi a barbárie da intolerância que matou Marielle. Marielle, que para alguns bárbaros era a morena maldita, que denunciava os crimes dos fortes contra os fracos, viveu pelo amor e morreu pelo ódio. Exatamente no Largo do Estácio, como diz a canção profética do Luís Melodia.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 19/03/2018
Alterado em 20/03/2018