O Tonhão era um péssimo caráter. Desde cedo sua vida era dedicada a contabilizar maldades. Em criança, na escola, gostava de debochar dos colegas roubando a merenda deles, machucando-os nas brincadeiras, zombando deles com pegadinhas maldosas como o “pau de bosta”, “cachimbinho de cinza”, “martelo de borracha” e outras sacanagens do tipo.
Como adolescente judiava dos garotos mais fracos, tomando coisas deles, batendo neles, maltratando-os de toda forma. O que hoje chamamos de bullyiing era carinho perto das coisas ruins que o Tonhão fazia para os coitadinhos.
Não perdoava nem a família. Vivia roubando o minguado dinheiro do pai, humilde servente de pedreiro que mal conseguia ganhar para o suficiente para o sustento da família, para comprar maconha.
Cometeu o primeiro roubo aos dezesseis anos e o primeiro assassinato aos dezoito. Depois de dois anos na FEBEM, onde aperfeiçoou suas habilidades criminosas, ele saiu e foi logo assaltando um posto de gasolina.
Deu azar. Por que naquele justo momento havia um policial abastecendo seu carro no posto. No tiroteio que se seguiu, Tonhão levou um tiro na cabeça.
Caído no chão, esvaindo-se em sangue, a última coisa que ouviu foi a sirene de uma ambulância parando ao lado dele. E a última coisa que viu foi dois paramédicos que saíram dela com uma maca. E a última coisa que sentiu foi o solavanco do movimento que eles fizeram para colocá-lo na maca e depois na ambulância.
Depois um silêncio sepulcral e um vazio sem fim.
Acordou em um lugar que parecia hospital. Era tudo branco e as pessoas que andavam por lá também todas se vestiam de branco. Um senhor, com uma longa barba grisalha, vestido com uma batina imaculadamente branca, como se fosse um padre, estava ao seu lado.
─ Onde estou? ─ perguntou Tonhão.
─ Você está no purgatório, meu filho ─ respondeu o senhor de algodoadas barbas.
─ Então eu morri ─ lamentou-se o Tonhão.
─ Sim, meu filho. Aquele tiro que você levou na cabeça lhe foi fatal.
─ O que vai acontecer comigo agora? ─ perguntou, temeroso.
─ Depende de você, meu filho, ─ respondeu o senhor de barbas branca. ─ O purgatório é apenas um local de passagem, uma sala de espera, por assim dizer. Aqui as pessoas decidem se querem ir para o céu ou para o inferno. Para cima é o céu, para baixo é o inferno.
─ Mas não é pelo que nós fazemos na vida que essas coisas são decididas? Sempre me disseram que quem faz mal vai para o inferno, quem faz bem vai para o céu...
─ Em regra é assim mesmo que acontece─ disse o homem. ─ Mas Deus é puro amor e bondade. E até o último minuto ele oferece aos homens a possibilidade de redenção. Nunca ouviu falar do bom ladrão, que na última hora se arrependeu e foi com Jesus para o paraíso? Nunca ouviu falar de extrema-unção, quando as pessoas tem a oportunidade de arrepender-se e fazer as pazes com sua consciência e com Deus?
─ Então basta eu me arrepender dos meus crimes para ir para o céu ao invés de ir para o inferno?
─ Sim, meu filho.
“Que moleza”, pensou Tonhão. “Se é assim, então é fácil”. Afinal, voltar à vida não dava. Estava morto. Nada como ir para o céu, onde se dizia, a vida era uma maravilha. Se para isso era só se arrepender...
─ Eu me arrependo de todos os males que fiz, senhor ─ disse Tonhão. Posso então ir para o céu?
─ Se for sincero esse arrependimento, sim ─ disse o senhor de barbas brancas, com um sorriso amável.
─ Mas antes é preciso que você me conte pelo menos uma única coisa boa que fez na vida. Basta uma. Pois como você sabe, Deus prometeu que pouparia Sodoma e Gomorra se lá encontrasse um único justo. E concede a salvação á toda alma que tenha, pelo menos, realizado uma ação boa na vida. Isso prova para Ele que a pessoa é, pelo menos, humana.
Tonhão puxou pela memória. Estava difícil. Tudo que ele fizera na vida fora maldades. Então lembrou-se de que dia, ele viu uma pequena aranha lutando desesperadamente para sair de uma poça d’agua onde ela havia caído. Pegou um graveto e tirou-a da água, salvando a vida dela.
─ É a única coisa boa de que consigo lembrar de ter feito, ─ disse Tonhão.
─ É o suficiente ─ disse o anjo, que agora Tonhão já sabia que era, pois somente anjos se vestiam daquele jeito e podiam fazer promessas como aquela.
Então o anjo estalou os dedos e um fio prateado e meio pegajoso caiu imediatamente sobre a cama de Tonhão. Parecia um fio de aranha, mas era forte e resistente o suficiente para aguentar o peso de vários homens.
─ Sua boa ação o salvou, meu filho ─ disse o anjo. ─ E a pequena aranha, que você ajudou um dia, vai ajudá-lo agora. É sempre assim. O bem é pago com o bem. Pegue esse fio e suba por ele até o céu.
Tonhão pegou o fio e começou a subir por ele. Então ele olhou para baixo e viu que várias pessoas estavam tentando aproveitar o fio para subir também. Com medo que o fio arrebentasse ele gritou:
─ Hei! vocês aí. Caiam fora. Esse fio é meu. Vão procurar cada o um seu próprio fio!
Mas as pessoas, atrás dele, não queriam perder a oportunidade de ir para o céu também. Então Tonhão começou a dar coices e pontapés naquelas pessoas para derrubá-los.
No esforço da luta o fio se rompeu. Tonhão caiu. Foi a mais longa de todas as quedas das quais ele se lembrava. No seu desespero, enquanto estava caindo, ele ainda pode divisar o anjo, que assistia, impassível, a sua queda.
─ Ajude-me por favor, ─ gritou.
─ Impossível─ disse o anjo. ─ Você teve a sua chance. Mas é tão egoísta que conseguiu anular o mérito da única ação boa que fez. Boa sorte no Inferno! Boa viagem, meu filho!
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 23/04/2018