Ele odiava aquelas galinhas. Mas talvez as pobres aves não fossem mais que a âncora do seu ódio por aquela vida miserável que levava, tendo que suportar a ignorância da mãe, a estultice e a arrogância do irmão, que por ser mais velho, praticava com ele a mais vil das tiranias, obrigando-a a engraxar seus sapatos, a lavar suas roupas e a fazer outras coisas que ele odiava. E havia também a indiferença da irmã, a mediocridade e a pobreza do ambiente em que vivia, e do qual, por mais que lutasse, não conseguia escapar.
O pai morrera quando ele tinha doze anos. A mãe, analfabeta e sem qualquer recurso para sobreviver ─ o pai sequer deixara uma pensão do INSS, pois nunca trabalhara com carteira assinada ─ tinha que lavar e passar montes e montes de roupa para sobreviver. E era ele quem tinha que sair com aquelas enormes trouxas de roupa para entregar. Era o fim dos anos sessenta e ninguém ainda condenava o bullying como forma de degradação das pessoas. Garotos como ele eram naturalmente espezinhados e maltratados pelos moleques mais fortes e mais velhos. Para ele até que foi bom, porque aprendeu a se defender . Depois de cortar dois ou três moleques atrevidos com um canivete, os outros aprenderam que não deviam se meter com ele.
O maior problema dele era em casa. A irmã, logo que se tornou mocinha, deu um jeito de escapar. Envolveu-se com o primeiro namorado fixo que arrumou e ficou grávida. Naquele tempo a gravidez precoce não era tão comum como hoje. Era o caminho mais próximo para o casamento. Assim ela casou e foi embora.
"Já foi tarde," dizia ele. A irmã era uma chata que vivia reclamando de tudo e não ajudava em nada. Embora não fosse analfabeta como a mãe, dela não diferia muito em termos de manias. Brigavam todo dia. Mas pelo menos, depois que a irmã se mudou, ele passou a ter uma cama só para ele, pois durante toda a sua vida anterior tivera que dividir com o irmão mais velho uma imunda enxerga feitas de molas rangentes, com um velho colchão de capim em cima, que parecia mais um criadouro de pulgas do que uma base onde ele podia descansar os jovens ossos já tão cansados.
Sim. Porque ele trabalhava muito. Além de entregar as roupas que a mãe lavava, era ele quem sempre tinha que ajudar nas tarefas domésticas. Porque sempre ele? Essa era a causa maior da sua ira. Porque sua mãe nunca pedia ao irmão mais velho para fazer alguma coisa? O cara era um folgado. Vivia a vida toda lendo gibi. Embora já tivesse mais de dezoito anos, idade suficiente naquele tempo para alguém trabalhar, o cara não queria saber de nada. Só ler gibi e jogar bola. Ele não. Tinha quinze anos e desde que o pai morrera, mal tinha tido tempo para brincar. Quando não precisava sair para entregar a roupa lavada, a mãe o mandava varrer a casa, dar milho para as galinhas, lavar aquelas horríveis panelas de ferro e alumínio, eternamente enegrecidas pela fumaça daquele horrível fogão de carvão que eles ainda usavam, e fazer outras coisas.
Oh! Vida desgraçada. Ele odiava, sim, tudo aquilo, como Cinderela deve ter odiado a sua vida antes de a fada madrinha aparecer e transformá-la em uma princesa. Mas para ele não havia fadas madrinhas. Nem sonhos de príncipes. Havia sim, demônios que viviam sussurrando coisas estranhas aos seus ouvidos. Coisas que ele, mesmo não sendo mais que uma criança, sabia serem ruins. Era sim, ainda inocente e puro, mas já tinha noção de pecado. E aquelas coisas que seus demônios sussurravam eram horríveis!
Mas ah! seria tão bom se acontecessem.
Sua mãe criava galinhas no pequeno quintal do barraco onde viviam. Vendia os ovos e às vezes algumas das aves para os vizinhos. Era das fontes de renda da família. De dia elas ficavam presas num pequeno cercadinho feito de madeira e tela de arame que ela fizera no quintal, mas de noite, para impedir que os ladrões as roubassem, as aves tinham que ser trazidas para dentro do barraco. Isso era feito todo dia. E quem tinha que fazer isso era sempre ele. Todo dia, pela manhã, tirava as galinhas do caixote onde elas eram presas á noite e levava para o improvisado galinheiro; e á noite, tirava do cercado e as acomodava embaixo do caixote, dentro de casa. Vários anos fazendo aquilo como se fosse um insano ritual: de manhã lavar a sujeira que as galinhas deixavam no chão da cozinha; á noite, aquela correria atrás das aves para pegá-las, uma a uma, para levá-las para dentro.
Aquela era a tarefa que ele mais odiava. Por causa dela se tornara a chacota do bairro. Recebera aquele apelido de Zé Galinha, que todos usavam para se referir a ele. Mas apenas na sua ausência, pois a maioria daqueles moleques covardes não tinha coragem de fazê-lo na sua presença, por causa do seu amolado canivete...
Como ele gostaria de se ver livre daquelas malditas galinhas!. E como ele odiava aquelas aves. Não se lembrava de uma única vez que a mãe tivesse pedido ao seu irmão para realizar aquela insana, odiosa e nojenta tarefa. Nem se importava muito com o fato de ela dar sinais de que gostava mais do seu irmão do que dele. Mas nem isso lhe importava mais. Aprendera a conviver com tudo aquilo. Seu problema era as galinhas. Se ao menos aquelas malditas aves morressem, sua vida se tornaria mais tolerável. Seria já um grande consolo não ter que fazer aquela tarefa nojenta todos os dias.
Seu ódio pelas galinhas era tanto que nem conseguia comer as canjas que sua mãe fazia quando matava alguma delas. Nem os ovos, que eram a principal e única mistura que eles tinham para servir com o feijão e o arroz diário.
Um dia, lendo um dos gibis que o irmão inútil colecionava, ele deu com a história de um sujeito que morava numa rua, em frente a uma praça infestada de pombos. Os danados pássaros sujavam tudo em torno. Cagavam em cima dos carros, carimbavam a roupa lavada, faziam ninhos nas cumeeiras das casas, emporcalhavam os bancos das praças e a cabeça das pessoas que sentavam neles. Um dia o sujeito resolveu dar um jeito nos pombos. Comprou uns quilos de milho e misturou-os com veneno de rato. Depois começou a alimentar os pombos com eles. Não demorou muito para centenas deles aparecerem mortos nas redondezas. Ainda não havia ativistas do meio ambiente nem do Green Peace para se preocupar com tais coisas, por isso ninguém se importou com o genocídio pombalístico que o sujeito perpetrou. E se houvesse, era uma estória de gibi de terror. O autor da estória daria um jeito neles.
O fato é que todo mundo gostou de se ver livre dos incômodos pássaros. A estória terminava de uma maneira bem bizarra. Os pombos sobreviventes resolveram se vingar. Reuniram todos os pássaros da região e invadiram a casa do sujeito. Mataram ele e sua família a bicadas. Igual aquele filme do Hitchcock. Depois arrancaram o coração do cara e o levaram direto para o inferno.
Galinhas não voam, diziam os demônios que sussurravam ao ouvido do Zé Galinha. E são tão covardes que jamais pensariam em atacar alguém. E depois, aquilo era só um gibi. Uma estorinha besta. Não foi difícil para ele conseguir o milho e o veneno de rato. Mas ele sabia que não podia exterminar todas as galinhas de uma vez. Teria que ser aos poucos. Dar o milho envenenado para elas em intervalos e para algumas a cada dia, um pouco de cada vez. Em duas semanas havia matado todas elas. Ninguém desconfiou de nada. Sua mãe pensou que as aves tinham pegado uma doença.
Foi assim que ele exterminou as malditas galinhas e acabou, de vez, com todos os motivos de seu ódio. Pois junto com as galinhas, morreram também sua mãe ignorante e seu irmão inútil. Porque os dois, durante aquela semana em que as galinhas comiam o milho envenenado, não deixaram de comer os ovos que elas botavam. E também comeram canja feita com uma das aves assassinadas. Ambos morreram, dolorosa e lentamente. Como nenhum deles procurou um médico para se tratar, a causa de suas mortes nunca foi descoberta. Zé Galinha disse que foi graças á uma infecção provocada por alimentos estragados, e todo mundo acreditou.
Depois do enterro da mãe e do irmão, Zé Galinha morou alguns meses com a irmã casada. Mas um dia o bairro foi surpreendido com a notícia de que ele havia sido morto numa tentativa de roubo. Invadira um sitio nas proximidades para roubar, e o proprietário meteu fogo nele. Dizem que o objeto do seu crime eram algumas galinhas que o sitiante criava no seu quintal.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 27/07/2018