Jacques de Molay tinha muitos motivos para se preocupar naquela manhã de quinta-feira, 12 de outubro de 1307, enquanto caminhava, silente, junto ao esquife de Catarina de Courtenay, segurando um dos cordões da mortalha da esposa do conde de Valois, a finada cunhada do rei Filipe, o Belo.
Não saia da sua cabeça os acontecimentos dos últimos meses. Sentia que alguma coisa estava no ar. Primeiro, a maneira evasiva com que o papa andava respondendo às suas cartas. Depois havia aquele comportamento frio e distante que Filipe, o Belo, havia ado-tado com ele nos últimos tempos. Afinal, ele era o padrinho da filha do rei. Tinha mantido, até então, uma amistosa relação de amizade com ele e uma proveitosa aliança política, militar e econômica, que aproveitava mais a Filipe do que à própria Ordem do Templo. Não era segredo para ninguém que o Templo era o principal credor do reino francês e do monarca, pessoalmente. O próprio tesouro pessoal de Filipe estava, nesse momento, sob a guarda do tesoureiro do Templo de Paris, empenhado por conta de dívidas que ele contraíra com a Irmandade.
Essa era outra questão que preocupava o atormentado comandante templário. A Ordem do Templo se tornara uma organização multina-cional, apátrida e independente, que tinha interesses em todos os reinos cristãos. Na sua condição, tinha que manter-se acima dos con-flitos dinásticos, evitando se envolver diretamente neles. Isso lhe proporcionara, até então, gordos dividendos, pois tendo se tornado o principal parceiro econômico dos reinos cristãos, ela aumentara de tal maneira sua fortuna e influência política, que a muitos soberanos, e também a vários setores da própria Igreja, causava uma ácida inveja.
Geralmente era ao Templo que os nobres, os soberanos, o clero e o próprio papa recorriam para afiançar os acordos e as tréguas resultantes dos conchavos que se faziam nos bastidores políticos. Lugar comum era o Templo figurar como fiador e avalista de res-gates e pagamentos das indenizações firmadas nessas ocasiões. Também concedia vultosos empréstimos a nobres, reis, bispos e po-tentados locais, para financiar projetos de construção civil, sanea-mento básico, construção de aquedutos, igrejas e outras obras de interesse das autoridades seculares e eclesiásticas. E principalmente para custear as intermináveis campanhas militares, nas quais a nobre-za feudal e própria Igreja estavam sempre envolvidas.
Assim, como maior banqueiro da Cristandade, a Ordem praticava uma política de neutralidade, evitando se envolver diretamente nos conflitos dinásticos, embora isso nem sempre fosse possível. Seu objetivo visível era e devia continuar sendo, a manutenção da luta contra os inimigos da fé cristã, os sarracenos. Em função desse obje-tivo ela acumulara a imensa fortuna que possuía, constituída princi-palmente por arrendamentos de terras e bens doados por nobres que haviam ingressado nos quadros da Irmandade no passado, pelos serviços prestados aos soberanos dos reinos cristãos e pelo comércio interno e ultramarino que praticava, através de sua rede de prece-ptorias espalhadas por toda a Cristandade e províncias do Ultramar, com a utilização da sua poderosa frota marítima.
Uma milícia de monges guerreiros, cuja função era defender o reino de Cristo na terra fora a razão de existir da Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo do Rei Salomão. Para isso fora fundada e dotada pela nobreza de toda a Cristandade e referendada pela Igreja. Não obstante, nos últimos cem anos, desde que os reinos cristãos na Terra Santa haviam sido destruídos pelos mamelucos de Saladino, ela se notabilizara por uma atuação mais política e econô-mica do que militar e religiosa. Militarmente, não participava de ne-nhuma campanha importante desde 1302, quando o próprio Jacques de Molay tentara, com o apoio inclusive de Filipe, o Belo, costurar uma aliança com os mongóis para recuperar a cidade de Jerusalém, perdida em 1187 para Saladino. E quanto à religião, muita coisa se dizia a respeito dos templários, e nem sempre eram boas. Ao contrário...
Com sua sede militar na ilha de Chipre e a administrativa em Paris, o Templo havia se tornado uma organização multinacional, que em reinos como Portugal, Aragão e Castela, por vezes, fazia o papel de exército regular; e em países como a Inglaterra e França desempenhavam funções burocráticas de grande relevância para os governos desses reinos. Os templários controlavam uma boa parte do aparelho burocrático dos desarticulados reinos cristãos. Arquivos notariais, registros públicos, policiamento de estradas, arrecadação de impostos, comércio exterior e atividade bancária, serviços de saúde e hotelaria, eram algumas das funções que os reis dessas na-ções delegavam ao Templo e ao Hospital. Afora isso, o Templo tinha seus portos particulares, administrava feiras e mercados de sua propriedade, mantinha seus próprios tribunais e possuia vilas inteiras, com suas aldeias e fazendas. Na estrutura feudal dos reinos cristãos, o Templo, juntamente com a Igreja, era um dos maiores suzeranos, e essa ambígua relação de suzerania e vassalagem que as duas estruturas mantinham com o poder secular, não raro, era causa de sérios conflitos políticos. Dessa forma, para qualquer monarca que estivesse pensando fazer do seu reino um estado nacional, centrado na autoridade de um único soberano, a primeira coisa a fazer seria enfraquecer a autoridade da Igreja; em segundo, liquidar com a instituição do feudalismo. E por fim, destruir as Ordens militares ─ em especial a Ordem do Templo ─ enquanto organização secular, pois esta, além de representar o braço armado da Igreja ─ e muito bem armado ─ era também a lídima representante da mais im-portante tradição feudal que ainda resistia à pretensão dos soberanos a um estado nacional: a Cavalaria.
A primeira, Filipe já havia conseguido com a eleição do papa Clemente V. A segunda, representada pela sujeição dos barões e a mitigação dos poderes da nobreza feudal era um processo que já estava em marcha há algum tempo e quase concluído. A terceira etapa começava agora, com o assalto à fortaleza do Templo. Aquela sexta-feira, dia 13 de outubro de 1307, ficaria conhecida no ima-ginário popular como sendo um dia azíago, um dia em que as po-tências ocultas do mundo inferior foram liberadas para desencadear um processo que o mundo nunca mais esqueceria.
Filipe IV, rei da França, apelidado o Belo, era um homem de incrível tenacidade, combinada com uma desmedida ambição. Aliava a política à religião de uma forma tão compacta que não conseguia, ou não queria, distinguir uma coisa da outra. Sua filosofia política era informada pela teologia, o que fazia dele muito mais um rival do papa em seu desejo de ser visto como o principal defensor da fé cristã, do que um monarca, cujo compromisso era reinar em benefício de um povo. Aliás, para as tarefas do reino, no que concernia à política interna, administração, economia e demais tarefas de um soberano, ele contava com um séquito de eficientes ministros, bailios e senescais. Suas principais ocupações, além daquelas concernentes à religião, eram as campanhas militares e as artes cavalarianas, nas quais era um verdadeiro mestre.
Mas tudo isso era apenas aparência. Embora ostentasse um ar de majestática ausência em relação aos problemas do dia a dia do reino, quem o conhecia de fato sabia que essa postura era estrategicamente estudada. Sua verdadeira atenção estava focada no exercício do poder. Um rosto fino, de penetrantes olhos azuis, com uma testa alta e um queixo pronunciado compunham o conjunto de uma cabeça, que se diria de uma beleza invulgar, não fosse a desagradável impressão de implacabilidade que a imponência daquele colosso ─ que parecia construído em mármore, ─ passava aos seus interlocutores. Recebera o apelido de “Belo” justamente pela majestade da sua cabeça coroada, que encimava um tronco robusto de homem alto, de largas espáduas, grande envergadura e longas pernas, conjunto que fazia dele um indivíduo imponente, cuja portentosa presença física intimidava qualquer oponente.
Mas não era apenas no rosto de perfeitíssimas feições, nem na presença física intimidante, que ele mostrava a sua férrea disposição. Era principalmente nos olhos azuis, de uma frieza glacial, que ele espelhava a profundeza do seu pensamento e refletia a inflexibilidade de uma vontade que não se detinha diante de nada para realizar os seus intentos.
“Se pelos olhos se pode ver a alma das pessoas, esse rei não tem alma” disse um bispo, inimigo de Filipe, “pois ele não é um homem nem uma besta. É uma estátua de mármore, uma coruja, que só observa, com seus olhos frios e distantes, o mundo à sua volta.”
Essa era a impressão que o rei da França passava às pessoas que o conheciam. Alguém que se metesse a procurar nos seus olhos, ou no rosto de expressão marmórea, um sinal do que se passava na sua mente, ficaria decepcionado. Seus olhos simplesmente não se me-xiam e os músculos da face formavam uma máscara praticamente impassível. Falava pouco e observava muito. Nas audiências pú-blicas, ou nas reuniões do Conselho do reino, ele lembrava, de fato, uma estátua de mármore. Mantinha o proeminente queixo apoiado entre as mãos de dedos longos e fortes, mãos que eram como galhos que saiam de seus braços possantes; estes, por sua vez, asseme-lhavam-se à colunas apoiadas na base dos cotovelos, a ponto de parecer que estavam fincados nos tampos da mesa, ou nos braços do trono, como se fossem estruturas de pedra lavrada por hábeis maçons cinzeladores de obras de arte. Os olhos azuis e vítreos passeavam de um ministro a outro sem demonstrar nenhuma emoção, contrariedade ou concordância com o que era dito nessas ocasiões, ainda que ocorressem disputas tão ferrenhas entre seus ministros, que às vezes, só não terminavam em lutas corporais em respeito à pessoa do monarca.
Por conta dessa impassibilidade seus inimigos haviam lhe dado o
apelido de “rei de mármore”. Mas por dentro daquela imobilidade de estátua de pedra, habitava o gênio implacável de um homem de-terminado a realizar seus intentos a qualquer custo.
A seu modo, Filipe era um homem religioso, que acreditava, de fato, nas virtudes do Cristianismo e nos postulados da Igreja Roma-na. Talvez nem tanto por convicção de que a fé católica fosse a verdadeira representação da vontade de Cristo na terra, mas porque era a que mais lhe convinha, já que a Igreja de Roma monopolisava, em praticamente todos os estados cristãos, a fonte do poder espiritual e ditava a última palavra quanto se tratava de homologar o poder temporal.
Filipe havia, na verdade, sobrepujado o poder da Igreja, forçando
a eleição de um papa que lhe era submisso. Além disso, ainda obri-gara a corte papal a sair de Roma e a trouxera para Poitiers, em terras francesas. Mais tarde ela seria removida para Avignon, onde ele poderia, a qualquer momento, pressioná-la quando lhe conviesse. Assim, a Igreja estava agora sob seu controle, com o papa sob sua guarda e bispos indicados por ele em todas as dioceses importantes da França.
Afora isso, Filipe, o Belo, tinha vencido praticamente todas as resistências internas ao seu projeto de um forte estado nacional. Através de alianças políticas e casamentos arranjados, ou mesmo por conta de eliminação física e imposição por força armada, ele reduzira o poder da nobreza a um mínimo controlável. A França, sob seu reinado, se tornara a nação mais poderosa do mundo cristão, com um nível de unificação política que só fora alcançado séculos antes, sob o império de Carlos Magno, e seria repetida apenas séculos depois, sob a dinastia dos Bourbons.
Talvez esse fosse o seu sonho: repetir o feito do seu antepassado famoso, tornando-se o lider da Cristandade. Carlos Magno fora o único monarca, depois da queda de Roma, a ser considerado um verdadeiro sucessor dos antigos imperadores romanos. A própria Igreja o havia revestido nessa condição e essa era a ambição de Filipe, o Belo. Por isso é que enquanto passeava pelo mundo cristão sua fama de rei piedoso e defensor inflexível da fé cristã, ao mesmo tempo ele procurava debilitar a Igreja que a representava, impondo-lhe um líder politicamente enfraquecido, contestado pelo restante da Cristandade, e um clero submisso que se preocupava mais em aten-der aos desígnios do rei do que da instituição a que pertencia.
Mais não fora, ele pertencia a uma dinastia, cujas ligações com a Igreja de Roma eram históricas. Os Capetos, desde seu fundador, Hugo I, sempre se arvoraram em defensores da fé católica, e nada menos que Luís IX, o famoso avô de Filipe, havia sido recentemente canonizado por conta da sua intransigente defesa dos valores cris-tãos. Destarte, Filipe IV, o Belo, havia sido educado nos ardores de uma fé que não conhecia nem admitia qualquer sinal de controvérsia. Segundo se dizia dele, Filipe acreditava piamente na tese dos direitos divinos do rei e que havia sido “ungido com os mesmos santos óleos que vieram do céu, trazido por uma pomba por ocasião da coroação do seu primeiro antecessor, Clóvis I.”
Politicamente ele seguia a tendência da época, de buscar a conso-lidação do estado que governava em uma monarquia forte e centra-lizada, onde o poder real não estivesse tão sujeito a ser mitigado pela nobreza feudal e submissa ao controle da Igreja.
Consciente como era das incertezas políticas do seu tempo, não permitiria que com ele acontecesse a mesma coisa que ocorrera com o rei da Inglaterra, João, o Sem Terra, cerca de cem anos antes, que fora obrigado a assinar uma Magna Carta, documento que contestava o direito divino dos reis e concedia aos barões ingleses uma liberda-de que estava além do seu controle. Por isso Filipe lutara com unhas e dentes contra os privilégios da nobreza e trabalhara, contra suas próprias convicções, de adepto das tradições cavaleirescas, para for-talecer o poder central.
Não obstante, encontrara em Jacques de Molay um adversário à altura. O velho grão-mestre da Ordem do Templo era um osso duro de roer. Homem teimoso e cioso de sua autoridade como comandante supremo de uma organização que só devia satisfação ao papa, Filipe via nele o principal óbice ao seu projeto de liquidar com o último bastião de resistência ao seu projeto de um estado nacional.
Na verdade, as relações entre o Templo e a coroa francesa já andavam tensas desde algum tempo. O rei devia muito dinheiro à Irmandade. Era comum ele se valer dos fundos templários para socorrer o empobrecido tesouro real, sucessivamente esvaziado pelas cam-panhas militares em que os reis franceses, incluindo ele próprio, viviam se envolvendo.
Filipe, o Belo, já não sabia onde mais poderia levantar dinheiro para cobrir o enorme deficit em que se encontravam as contas do reino. No ano anterior ele havia expropriado os judeus e sangrado os banqueiros lombardos, duas outras fontes de renda das quais ele normalmente se valia para recompor o debilitado orçamento real. Aumento de impostos e desvalorização da moeda eram outros recursos comumente empregados para equilibrar as contas públicas, mas essas se revelaram estratégias perigosas, que já tinham lhe dado muita dor de cabeça no passado recente. Esses eram expedientes que, pelo menos naquele momento, ele queria evitar. Dessa forma, só restava a propalada riqueza do Templo, que ele sabia ser imensa.
Mas a fama de obstinação e integridade que acompanhava o inflexível monge comandante do Templo preocupava o rei e aparecia como um óbice à realização do seu desejo. Tivera uma prova disso no ano anterior, quando um incidente o colocara em rota de colisão com Jacques de Molay e lhe mostrara o quanto aquele velho monge-cavaleiro, obtuso e arrogante, iria servir de freio às suas ambições.
Para fazer face às altíssimas despesas que tivera com a guerra contra a Inglaterra, em 1304, Filipe reduzira o peso em ouro da moeda francesa, provocando a sua desvalorização em quase dois terços. Isso gerou de imediato uma enorme inflação que atingiu, particularmente, a grande massa do povo, que de uma hora para outra ficou sem condições até de comprar comida. Em consequência, a fome, o desemprego e a desordem se espalharam por todo o país e acabaram desencadeando uma grande revolta popular. Em Paris, o povo faminto e desesperado tomou de assalto o palácio real e obrigou o rei e sua corte a procurar refúgio nas dependências do Castelo do Templo, único lugar seguro na cidade naqueles dias.
Foi nessa ocasião que o rei, vendo a opulência da riqueza templá-ria, aguçou a sua cobiça e começou a pensar numa estratégia para abocanhar parte dela. A ideia, proposta inicialmente por Enguerrand de Marigny, então seu intendente das finanças, e apoiada por William de Nogaret, o chanceler do reino, era, em princípio, lançar uma taxação sobre as rendas do Templo e do clero em geral. Porém, a firme recusa de Jacques de Molay em renunciar às prerrogativas que o Templo possuia, de imunidade a qualquer tipo de taxação, frustrou as intenções de Filipe e fizeram com que ele recuasse no seu intento. No entanto, deve ter contribuído bastante para acirrar sua disposição, já bastante forte, de destruir os templários e apoderar-se de seus bens. Essa situação foi discutida em uma reunião do Conselho Real, logo após o incidente da revolta popular, onde se buscavam soluções para debelar a terrível crise financeira que assolava o reino.
─ Os templários ─, disse o rei ─ administram uma incalculável riqueza, enquanto o povo francês passa fome. Essa situação é into-lerável.
─ Concordo plenamente com Vossa Majestade ─ respondeu Marigny. ─ Por direito, os bens do Templo pertencem ao povo da França, pois provém de doações feitas por nobres franceses e de rendas obtidas com a exploração desses bens e dos privilégios a eles concedidos. Essas doações foram feitas para que as Ordens de Cavalaria pudessem manter as possessões cristãs na Terra Santa. Agora elas não mais existem. Portanto, elas também perderam a sua razão de existir.
─ Não seria nenhum mal feito se esses bens retornassem à coroa
no caso das Ordens serem extintas ─ interveio Nogaret, cuja cabeça de advogado já andara pensando em uma solução jurídica para o caso.
─ Embora os hospitalários ainda sejam úteis, devidos aos serviços públicos que prestam na área da saúde ─ disse Marigny.
─ Realmente ─ respondeu Nogaret, cuja preocupação estava centrada no Templo. ─ Tendes razão quanto ao Hospital, mas quanto ao Templo, não há mais razão para que continue existindo.
─ Porém ─ interveio Charles de Valois ─ dirigindo-se a Nogaret ─ o papa dificilmente concordará com isso. Não podemos esquecer que o Templo é uma organização eclesiástica e somente a Igreja tem poderes para dissolvê-la. E principalmente para dispor de seus bens, que ao que parece, é a vossa principal motivação para espoliar a Ir-
mandade.
─ Tendes razão quanto a isso ─ respondeu Nogaret, evitando comprar a provocação de Valóis ─, mas podemos pensar em algumas soluções jurídicas para contornar esse obstáculo, se a Ordem for extinta.
─ E como poderíamos extinguir uma Ordem religiosa que não deve obediência aos poderes seculares, mas somente ao Santo Padre? ─ insistiu Valóis.
─ Estamos pensando em uma fórmula ─, interveio Marigny.
─ Pensai depressa ─ disse Filipe. ─ O tempo urge. Uma nova revolta popular pode representar a nossa ruína.
─ Não se poderia simplesmente impor uma taxação sobre as rendas do Templo? Diz-se que elas são altíssimas ─, sugeriu o príncipe Luís, o Cabeçudo, filho mais velho de Filipe.
─ Anualmente arrecadam mais do que uma república italiana de grande porte ─ disse Marigny. ─ Mas essa solução já foi tentada e fracassou, pois o Templo, por lei, é imune á taxação.
─ E se os desapropriássemos, pura e simplesmente? ─ perguntou
Filipe, o Longo, segundo filho do rei.
─ Enquanto a Ordem existir e estiver protegida pelas leis em curso, isso é impossível ─, respondeu Marigny. ─ Temos que acabar com ela primeiro ─, completou.
─ Mais cedo ou mais tarde é o que teremos que fazer. Por enquanto ─ disse Nogaret ─, o melhor é negociar com o Templo um empréstimo. Isso aliviaria as dificuldades atuais do tesouro e nos daria mais algum tempo para preparar uma estratégia.
─ A coroa já deve muito dinheiro ao Templo ─, lembrou Charles de Valóis. ─ O próprio tesouro pessoal de Vossa Majestade, ao que sei, está penhorado com os Templários. Achais mesmo que eles vão confiar mais dinheiro a quem não paga nem o que já deve? ─ disse
ele, dirigindo-se ao rei.
─ De Molay não ─ respondeu Marigny. Ele é um velho obtuso e turrão. Não conseguiríamos arrancar um mísero florim dele. Mas Hugues de Peyráuld, o inspetor-visitador do Templo é nosso amigo e aliado. Ele não nos negará esse favor.
─ E o cavaleiro de la Tour, tesoureiro do Templo em Paris, também não se oporá. Afinal, ele só está nesse cargo por indicação de Vossa Majestade ─, lembrou Nogaret.
─ Mas eles não podem fazer isso sem a anuência do grão-mestre geral ─, objetou Charles de Valóis.
─ Na ausência dele sim ─, respondeu Nogaret. ─ E ao que me consta, Jacques de Molay está em Chipre e não voltará tão cedo.
─ Então vamos aproveitar a ausência dele e correr com isso ─, concluiu o rei. ─ Negociai esse empréstimo antes que o velho turrão volte ─, ordenou ele a Marigny.
─ Sim, Majestade. Farei isso imediatamente ─, disse Marigny, com uma mesura.
─ Á César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. Não é o que dizem as Escrituras? ─ arrematou o rei, levantando-se do seu trono e dando por encerrada a reunião.
“Todo César, um dia, também encontra os punhais de Cássio, Bruto e Casca”, pensou Charles de Valóis, com um esgar de sorriso, que não escapou a Nogaret.
─ Messsire de Valóis parece não gostar muito das nossas propostas ─, disse ele.
─ O que me incomoda, Messire Nogaret, não são as vossas propostas, mas os sentimentos e as motivações que o levam a fazê-las ─, respondeu Charles de Valóis.
Nogaret não respondeu. Apenas sorriu. “Eis a nobreza inútil e perdulária que fala,” pensou.
DO LIVRO OS MONGES MALDITOS- NO PRELO
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 10/09/2018