Mestre Everard de Evreux ouviu o barulho dos cascos ferrados dos cavalos que o pelotão de soldados do rei faziam ao se encaminhar, em marcha célere, rumo ao castelo do Templo. Eles estavam passando embaixo da janela da sua mansarda. Eles estavam trotando rumo ao Castelo do Templo. Imediatamente pressentiu do que se tratava. Seu coração se contraiu no peito e suas pernas começaram a tremer. Fazia muito frio naquela hora da manhã em Paris, mas ele sabia que não era de frio que elas tremiam.
“Logo virão atrás de mim”, pensou ele.
Mestre Everard era um alquimista a serviço da Ordem do Templo. Não o único, porém talvez o que mais resultado havia apresentado, até aquele momento, justificando o investimento que o Templo fazia naquele tipo de atividade. A alquimia não era, como o vulgo pensava, apenas uma operação praticada por alguns magos amalucados que pensavam ser capazes de fabricar ouro através da transformação de um metal impuro, como o chumbo, o estanho e outros metais “moles”, em um metal quimicamente puro.
A alquimia, na verdade, era uma Arte e uma Ciência, cultivadas por adeptos que chamavam a si mesmos de “filósofos.” Contratados e financiados por príncipes, reis, nobres e até altos prelados da Igreja, esses solitários pesquisadores da natureza trabalhavam incansavelmente na procura do seu mais íntimo segredo, que era a fórmula pela qual ela combina os elementos atômicos que formam a base material de todos os metais. Essa fórmula, segundo a crença geral dos alqui-
mistas, poderia então ser manipulada e usada para produzir metais
preciosos a partir de metais menos nobres.
Essa fórmula, segundo quem já a conhecia, era chamada de “pedra filosofal”. Assim, especializando-se nas artes da metalurgia, os alquimistas procuravam aprender os processos pelos quais a natureza produz os minerais. Com esse conhecimento, trabalhando em seus laboratórios, poderiam repeti-los e realizar transmutações de metais simples em metais preciosos. Graças a esse trabalho, muitas descobertas no campo da química, da medicina e da metalurgia haviam sido realizadas. Esse, por exemplo, era o segredo da qualidade do aço usado nas armas templárias, reconhecidamente melhor e mais resistente do que o obtido pelas demais forjas da Cristandade. A alquimia templária era também responsável pela qualidade dos preparados químicos, usados como medicamentos pelos membros da Ordem, muito mais eficientes do que os usualmente encontrados no comércio.
Destarte, a possibilidade de transformar um metal comum em ouro não era uma fantasia de loucos possuídos pelo delírio metafísico, como o vulgo pensava, mas sim uma prática desenvolvida a partir de uma teoria, que, se pelo menos não era exata, nada tinha de loucura. A teoria era a de que os metais eram encontrados na natureza em suas formas, perfeita e imperfeita. Os imperfeitos eram aqueles alteráveis pela ação da natureza. Oxidavam-se, corroíam-se, mudavam de estrutura pela ação do fogo e outros elementos. Os perfeitos eram inalteráveis e resistentes a esses elementos. Entre os primeiros listavam- se o ferro, o chumbo, o estanho, o cobre; entre os segundos, a prata e principalmente o ouro.
Todos os metais, segundo essa teoria, eram formados por dois elementos, que eram o enxofre e o mercúrio, encontrados em quantidades variáveis em cada metal, segundo sua categoria. O que conferia a cada metal a qualidade da perfeição era a pureza desses dois constituintes. Acreditava-se que o ouro fosse constituído por uma grande quantidade de mercúrio e uma pequena parcela de enxofre, ambos muito puros. O estanho, o ferro, o cobre, ao contrário, eram constituídos por grandes quantidades de enxofre e pequenas quantidades de mercúrio, ambos mal fixados, ou impuros. Então, para se alterar as propriedades de um mineral impuro, tornando-o puro, era preciso submetê-lo a um processo de eliminação de suas impurezas, fazendo-o passar do estado imperfeito para o perfeito. Era, mais ou menos, uma operação, que no seu cerne, implicava em uma experiência que tinha muito de religiosidade. Pois, na pesquisa da alma da natureza, o próprio operador tinha que integrar-se nela, modificando e purificando o seu próprio espírito. E nesse sentido, a alquimia assemelhava-se a uma religião, e seus praticantes, afastando-se da ortodoxia religiosa admitida pela Igreja de Roma, causavam desconfiança, e não raras vezes, eram vistos como hereges pelas autoridades religiosas.
Mestre Everard sabia disso. E o fato de ser, ele mesmo, além de alquimista, um monge templário, iniciado nos segredos do Templo, o colocava sobre dupla suspeita. Foi por isso que ele começou, naquela mesma manhã de sexta-feira, treze de outubro, logo após a tropa real ter desaparecido na neblina, a embalar alguns ingredientes usados em seu metier. Sabia que não poderia esconder dos agentes da Inquisição a natureza do seu trabalho. Mas certos ingredientes que usava para fabricar medicamentos e principalmente venenos, esses não podiam ser encontrados com ele. Se o fossem, a fogueira seria o destino inevitável das suas carnes já um tanto cansadas de tanta labuta na procura da pedra filosofal.
Durante todo o fim de semana, Jacques de Molay ficara encarce-
rado em uma cela das masmorras do castelo do Templo sem receber
nenhuma visita. Entretanto, o rei Filipe, o Belo, e seu ministro William de Nogaret, juntamente com Enguerrand de Marigny, estiveram bem ativos. Por ordem do rei, Nogaret reunira, no sábado, na sala do capítulo da Catedral de Notre Dame, os doutores da Universidade de Paris, os membros do clero e os nobres do reino para ouvirem a leitura das acusações que estavam sendo feitas aos monges-cavaleiros da Ordem do Templo.
A maioria dos doutores, prelados e nobres ali reunidos, evidentemente já sabiam que alguma coisa estava acontecendo, pois o inefável Pierre Dubois havia sido bastante pródigo nas acusações contra os templários e não tinha deixado dúvidas que uma ação nesse sentido iria ocorrer, mais cedo ou mais tarde. De certo, todos ali já teriam ouvido alguma coisa sobre as estranhas práticas litúrgicas e comportamentos heterodoxos que, supostamente, os monges do Templo adotavam intramuros. Mas nenhum deles dera muita importância a esses mexericos, pois sabiam que dentro de um mosteiro, de um convento, um quartel, em qualquer lugar onde homens e mulheres ficam enclausurados, em contato apenas com pessoas do mesmo sexo, alguns comportamentos não muito consentâneos com a moral pregada pela Igreja acabavam mesmo acontecendo.
As acusações de desvios sexuais entre os membros de todas as seitas eram comuns. Quando verificadas sua veracidade os praticantes eram punidos exemplarmente, mas nem sempre se conseguia provar desvio de conduta.
Entre os templários a coisa não devia ser diferente. Os membros da Ordem faziam votos de castidade e eram proibidos de conviver com mulheres. Havia uma regra específica que os obrigava a se afastar do sexo feminino, ainda que fossem pessoas da sua própria família. E, de uma maneira geral, os monges-cavaleiros cumpriam estritamente essa regra e mantinham uma conduta pessoal impecável nesse quesito, mas toda regra tem exceção. Depois da perda da Terra Santa e da transformação da Ordem em uma grande empresa multinacional, envolvida muito mais com interesses econômicos e políticos, a moral interna da Irmandade também arrefeceu. Não eram poucos os membros da Ordem acusados de conduta sexual imprópria, seja com mulheres, ou mesmo com seus próprios irmãos. Isso, aliás, acontecia no interior de todas as Ordens religiosas, a despeito das rígidas regras morais a que estavam submetidos os monges.
Havia também a duvidosa moralidade dos membros da nobreza, especialmente daqueles que passavam grande parte das suas vidas nos teatros de guerra, convivendo apenas com pessoas do mesmo sexo. Reis e príncipes não escapavam dessa pecha. Na corte inglesa, por exemplo, se dizia à boca pequena que a jovem rainha Isabel, filha de Filipe, o Belo, para poder dar um herdeiro ao príncipe Eduardo tivera que fornicar com o próprio sogro, pois que o futuro rei inglês gostava mais de seu jovem escudeiro, Gaveston, do que da princesa. Na casa real de França, na família dos Capetos, ninguém esquecia o caso que Filipe II, antecessor de Filipe, o Belo, teria mantido com o rei da Inglaterra, Ricardo I, chamado “Coração de Leão”. Assim, o homossexualismo, conquanto condenado duramente pela Igreja e pelo rígido código de moral da época, era uma prática comum na solidão do claustro e nos teatros de guerra.
Por outro lado, toda ordem eclesiástica tinha seus regulamentos e ritos próprios, cuja liturgia escapava ao leigo. Uma boa parte da plateia reunida no grande salão da Universidade de Paris, naquela tarde, era composta por clérigos e muitos deles eram membros de Irmandades religiosas. Portanto, tinham conhecimento de causa e o que se dizia a respeito dos templários, especialmente quanto aos comportamentos relativos ao sexo, talvez não fossem assim tão diferentes
dos que aconteciam em suas próprias congregações.
Mas quanto à parte relativa à heresia e outras questões, relacionadas à fé e os fundamentos do credo cristão, isso precisava mesmo ser esclarecido. Afinal não fazia muito tempo que a Igreja havia instituído o Tribunal da Inquisição, justamente para perseguir e exterminar as heresias. Esse tribunal havia sido criado durante a Cruzada Albigense por inspiração do padre dominicano Domingos de Guzman e acabara se tornando uma excelente ferramenta de opressão que os próprios reis cristãos não tinham nenhum constrangimento em usar contra seus inimigos. Acusar os opositores de heresia tornara-se moda e uma imputação dessas, cujos elementos de convicção sempre dependiam mais de testemunhas que podiam ser compradas ou devidamente convencidas, do que de provas físicas ou documentais, era o modo mais fácil de destruir um inimigo. Assim, ser acusado de heresia frente ao Tribunal da Santa Inquisição já era, praticamente, uma condenação da qual poucos conseguiam escapar.
Heresia, feitiçaria, magia negra, satanismo, alquimia, cabala, doutrinas heterodoxas, gnosticismo. Tudo era cosido no mesmo caldo. Não se diferenciava entre a mera superstição e a investigação filosófica ou científica, ou a simples tradição popular.
Em 1307 fazia vinte e dois anos que Filipe subira ao trono. Para transformar seu reino em um estado nacional, com o poder centrado na autoridade real, ele adotara uma política teocrática, na qual enfeixava em suas mãos todos os poderes, tanto os temporais quanto os religiosos. Seus ministros, especialmente Nogaret e Marigny, haviam desenvolvido uma política de intimidação, onde o terrorismo moral e espiritual eram as principais armas de destruição dos inimigos. Qualquer manifestação de comportamento ou pensamento que contrariasse a doutrina da Igreja, na interpretação de Filipe e seus ministros, era tida como crime contra a fé e contra o Estado, e nesse caso, a força da autoridade secular se juntava ao poder espiritual da Igreja para triturar o inimigo.
Isso havia acontecido, há não muito tempo, com a chamada Cruzada Albigense, uma autêntica guerra civil movida pela Igreja e pela nobreza do norte da França contra as populações da Provença, na região conhecida como Langedoc. Nessa região, durante mais de dois séculos, floresceu a chamada heresia dos cátaros.
A religião dos hereges cátaros era fruto de um sistema de pensamento que fizera muito sucesso nos primeiros séculos da era cristã, com o nome de maniqueísmo. Tratava-se de um sistema que se opunha ao Cristianismo oficial, já que pregava ideias heterodoxas e adotava comportamentos totalmente desvinculados das doutrinas básicas que sustentavam o credo de Nicéia, adotado pela Igreja Romana.
Os cátaros negavam a existência de um único Deus, pois, segun-do a doutrina maniqueísta, o mundo se equilibrava entre dois princí-pios. Assim, existiam dois deuses, um que presidia o bem, outro que presidia o mal. Em consequência, não havia, para eles, uma trindade contituída por um Pai, um Filho e um Espírito Santo, como ensinava a Igreja de Roma.
Destarte, a crença na existência de dois princípios digladiando-se para controlar o mundo não servia ao Cristianismo romano, que adotara a doutrina da Santíssima Trindade como princípio básico da sua teologia. Por consequência, se Deus era um princípio que se dividia entre duas forças opostas e contraditórias, como diziam os cátaros, ele não podia ter filho. Nem podia ser três pessoas em uma. Essa dú-vida já havia sido veiculada no século IV por Ário, bispo de Alexandria, e sua doutrina se constituíra numa das mais sérias heresias que a Igreja de Roma tivera que combater em seus primórdios. O arianismo fora a crença geral de muitas seitas cristãs que apareceram nos primeiros séculos do Cristianismo e sobrevivia ainda na prática de vários grupos que incomodavam a Igreja. Os arianos constituíam os chamados cristãos “adocionistas”, para quem Jesus não era divino, nem filho de Deus, como apregoava a ortodoxia católica. Ele teria sido “adotado” por Deus após o cumprimento de sua missão e se “divinizara” em razão disso. Mas não era igual a Deus e nem sequer seu filho.
Outra forma de encarar a questão da existência de Jesus era separar a parte carnal da sua essência espiritual. Essa forma de pensar teve muitos adeptos nos primeiros séculos do Cristianismo. A ela aderiram inúmeras seitas que causaram muito incômodo à Igreja de Roma. Estes eram os chamados cristãos “docéticos”, para os quais no homem Jesus conviviam duas naturezas diferentes: uma física e outra espiritual. A sua natureza física era a de um homem comum, que nasceu, cresceu, viveu e morreu como todo mundo. Já a sua natureza divina, o Cristo, era a de um ser angélico que se revestiu de carne e osso para realizar uma missão.
O Cristo “incorporou-se” no homem Jesus por ocasião do batismo realizado por João, quando sobre ele desceu em forma de pomba. Até então Jesus era apenas um homem. A divindade nele coabitou durante os três anos do seu magistério. Depois que a natureza divina abandonou o corpo de Jesus, quando foi preso no Horto das Oliveiras, ele voltou a ser um homem comum. Porque então a sua missão teria sido completada.
Sendo assim, o Cristo, que era a natureza divina presente em Jesus, não podia sofrer nem morrer. Destarte, quem foi posto na cruz foi o homem Jesus e não o Cristo, propriamente dito. Por consequência, ele também não podia ressuscitar, já que nunca morreu.
E quanto ao homem, esse morreu e foi sepultado como um mortal comum. Mas seus discípulos roubaram seu corpo e deram um sumiço nele, criando a lenda da ressurreição.
Nos primeiros séculos do Cristianismo eram muitos os grupos que professavam esses estranhos credos. Eles eram conhecidos pelo nome comum de gnósticos. O Concílio de Nicéia havia colocado na clandestinidade a maioria das seitas gnósticas, mas muitas delas sobreviveram e continuaram a praticar e difundir suas ideias. Os cátaros eram os herdeiros de um desses grupos. E suas crenças, mesmo após o cruel extermínio da sua seita, ainda tinham muitos seguidores, principalmente na região do Languedoc francês.
A par isso, a perda da Terra Santa destruíra a moral dos exércitos cristãos, templários inclusos. Muitos desses soldados, a quem fora pedido que derramassem seu sangue na luta contra os infiéis sarracenos, acreditavam, em princípio, que a milícia cristã fosse invencível, pois que o próprio Cristo lutaria suas batalhas. Foi essa crença que levou muitos nobres a participar das cruzadas e a entrar para as Ordens militares. Mas essa crença se tornou um horroroso blefe quando os sarracenos esmagaram o exército cruzado na batalha dos Chifres de Hattin e depois expulsaram os cristãos da Terra Santa, tomando Jerusalém de volta e recuperando todos os demais territórios que haviam sido conquistados pelos exércitos cristãos, à custa de muito suor e sangue. Para eles, Cristo os abandonara, ou então era impotente frente aos seguidores de Maomé. Isso abalou a fé de muitos cruzados e deve ter influído no comportamento dos templários, contribuindo para um desvio de conduta, especialmente daqueles que já estavam sobre a influência da doutrina cátara. Além disso, um clima de derrotismo e pessimismo se apossou do Ocidente. Alguém tinha que pagar o pato. A lógica apontava justamente para aqueles que foram os maiores beneficiários do sistema: as Ordens militares que tinham se mostrado impotentes para manter as conquistas cristãs. Entre elas, os templários constituíam os mais visados, pois já eram alvo da antipatia popular em razão da sua riqueza e arrogância.
A Heresia Albigense e a verdadeira guerra civil que se travou para extirpá-la ainda estavam vivas na memória dos prelados ali reunidos. Assim, foi com certa reserva que aquela seleta assembleia de doutores e teólogos ouviu Nogaret dizer, em alto e bom som, que William de Paris, o inquisidor-mor da França, havia solicitado à Sua Majestade, o rei Filipe, o Belo, a prisão de todos os membros da Ordem do Templo que fossem encontrados em território francês. Por isso, naquele momento, em todas as cidades da França, esses monges-cavaleiros heréticos, sodomitas, idólatras e conspiradores, estavam sendo caçados e presos por serem criminosos da pior espécie, que atentavam contra as sagradas disposições da Igreja e envergonhavam a Cristandade com a prática dos mais horrorosos crimes.
Um murmúrio de consternação e dúvida percorreu toda a plateia. Afinal, naquela assembleia não havia quem não tivesse um amigo, um conhecido, ou quiçá, um parente entre os templários. Eles eram odiados e amados ao mesmo tempo. Havia quem os considerasse santos e heróis, pela atuação que tiveram nas conquistas e preservação dos domínios cristãos na Terra Santa. Mas também tinham feito muitos inimigos, especialmente entre os membros das Ordens religiosas, em face dos múltiplos privilégios que foram concedidos à sua Irmandade e que à grande maioria das demais ordens e membros da nobreza eram negados.
Não eram poucos os que consideravam os templários uma casta de monges arrogantes, autoritários, ambiciosos e até perversos. Eram santos e malditos ao mesmo tempo. Por isso, junto com os murmúrios de dúvida e consternação, ouviram-se também várias manifestações de satisfação e alguns comentários de aprovação à ousada ação do rei.
Isso decorria da própria estrutura que a Ordem do Templo desenvolvera depois que deixara a Terra Santa. Progressivamente, à medida que foi se organizando como uma grande corporação multinacional, ela se tornara um aparato que os próprios reinos, carentes de uma burocracia estatal organizada, utilizavam para seus próprios fins. Assim, os templários haviam assumido uma grande parte dos serviços públicos nos reinos onde eles se estabeleceram, controlando alfândegas, cobrando impostos, fazendo serviços notariais, e em muitos casos, executando funções policiais e militares, principalmente de guarda e controle de tráfego nas estradas e até na guarnição de fortalezas e castelos, a soldo de reis e senhores feudais.
Isso sem contar as operações financeiras e comerciais, que haviam se tornado as principais atividades do Templo depois que as cruzadas terminaram. Assim, não seria estranho que a maioria dos prelados e dos nobres cavalheiros ali reunidos, naquele sábado, na sala do capítulo da Catedral de Notre Dame fosse cliente da Ordem do Templo e tivesse alguma dívida para com os templários. Talvez, mais do que a perplexidade que o fato, em si, lhes provocava, fosse a preocupação do que seria feito com suas notas de empréstimo que lhes ocupava o pensamento. Perdoadas, de certo não seriam. Quem sabe até lhes fossem cobradas com juros bem mais salgados, por outro credor...
No dia seguinte, domingo, 15 de outubro, o povo de Paris foi
convocado a se reunir na Praça de Notre Dame para ouvir as terríveis
acusações que estavam sendo feitas à Ordem do Templo. Perante uma plateia diversificada, composta por soldados, membros do baixo clero, comerciantes e todo cidadão que conseguiu arranjar lugar na praça lotada, o próprio Nogaret leu o libelo acusatório, que ele mes-
mo havia redigido em nome do rei, Filipe, o Belo.
“Uma coisa amarga, uma coisa deplorável, uma coisa horrível de pensar, terrível de ouvir, execrável de perfídia, detestável de infâmia, uma coisa que nada tem de humano, mas atestada por numerosos testemunhos, chegou aos nossos ouvidos, não sem nos provocar um violento espanto e um horror indizível...”
Nogaret olhou, por um momento, a silenciosa plateia, boquiaberta com as declarações que ele começara a fazer. Limpou a garganta e prosseguiu: "A nossa dor foi imensa com a notícia de crimes enormes, praticados contra a majestade divina, a fé ortodoxa, que são uma vergonha para a humanidade, um exemplo de perversidade, um escândalo público...”
O preâmbulo, longo e redigido de forma rebuscada, começava a enervar o público. As pessoas se mexiam em seus lugares, mostrando sinais de impaciência com a prolixa linguagem do documento. Nogaret percebeu a deixa e apressou-se para chegar ao ponto crucial da questão. Disse, finalmente, do que os templários estavam sendo acusados:
“Quando de sua recepção na Ordem, os noviços são obrigados a renegar Cristo por três vezes e a cuspir na cruz.”
“Quando de sua iniciação na Ordem, os noviços são compelidos a beijar as partes íntimas dos veteranos.”
“Incentivam e praticam entre eles atos de sodomia.”
“Adoram um ídolo demoníaco representado por uma cabeça barbada, que eles colocam no lugar da imagem de Cristo.”
“Os cônegos da Ordem realizam missas, nas quais a liturgia contraria frontalmente a que é determinada pela Santa Madre Igreja.”
“Enterram em seus cemitérios, mediante pagamento, pessoas excomungadas pela Santa Madre Igreja.”
E daí por diante. A cada acusação um oh! de espanto era arrancado da plateia. Os bons e crédulos cidadãos de Paris começaram a murmurar.
– Eu sempre achei que essa gente não prestava!
– Eu já tinha ouvido alguma coisa a respeito disso, mas nunca imaginei que fossem tão horríveis!
– São uns depravados, esses templários!
– Imaginem! Com aquela aparência de santos eles são todos uns hereges malditos!
– E com toda aquela aparência de virilidade não passam de um bando de veados!
Nogaret olhou para a plateia e pareceu gostar da impressão que causou. Ao terminar de ler o longo pergaminho com mais de uma centena de acusações, ele se sentia satisfeito com a ação que desencadeara. Os templários estavam perdidos. Agora não havia mais volta. Não lhe passou pela cabeça que acabava de acionar o motor da História, dando início a um dos mais controvertidos e bizarros momentos vividos pela humanidade, na sua procura por uma identidade.
Mas para os Irmãos do Templo, o tempo do horror estava apenas começando.
(DO LIVRO: A IRMANDADE DOS SANTOS MALDITOS, NO PRELO)
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 20/09/2018