João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


William de Nogaret, o grande chanceler, era um personagem carismático e ao mesmo tempo, misterioso. Sua origem era pouco conhecida e seus laços de família bastante obscuros. O pouco que se sabia sobre ele era que tinha vindo de uma pequena vila chamada Saint-Félix de Caraman, no condado de Toulouse. Em 1302, já bastante conhecido como jurista, ele foi indicado para assumir o posto de Ministro dos Selos Reais, devido à morte do seu antecessor, Pierre Flote. O lorde Guarda-Selos, na prática, era um verdadeiro Primeiro Ministro do reino de França.
     Desde cedo sua vida fora dedicada ao estudo das leis, com espe-cialização no direito canônico, pois, segundo pensava, “o inimigo de-via ser destruído pelo seu próprio veneno.” E esse inimigo era a or-ganização eclesiástica e tudo que ela representava.
     À noite, depois de ler as respostas dadas por Geoffrey de Charney, ele confabulou com William de Paris e Nicolau d’ Ennezat sobre os próximos a serem dados.
     – O que vós pensais das respostas dadas pelo preceptor da Normandia? – perguntou ele.
     – Normais. Não esperávamos que ele confessasse tudo espontâ-neamente –, respondeu William de Paris.
    – Não. Mas ele parece bem seguro do que diz –, respondeu d’Ennezat. – Sua postura física e suas respostas não são de quem têm a consciência pesada.
    – Talvez ele apenas saiba mentir muito bem –, disse Nogaret.
     – É possível –, respondeu William de Paris. De qualquer modo, temos muito tempo para fazer esses malditos hereges confessarem seus horrendos crimes. E também há muita gente para ser esticada no cavalete e levantada nos ganchos da estrapada. Quero ver se esses sodomitas desgraçados vão continuar com essa postura arrogante quando os pés deles forem untados com gordura e assados em fogo lento.
     – Vamos submeter os altos dignitários do Templo a tais suplícios? – perguntou, um tanto consternado, o monge d’Ennezat.
    – Se for preciso, não devemos ter constrangimento em fazê-lo –, respondeu William de Paris, com firmeza.
    – Será que o papa aprovará tais medidas? – perguntou d’Ennezat.
    – Ele não estará em Paris para ver o que estamos fazendo –, res-pondeu o inquisidor-mor. – E depois que extrairmos as confissões desses degenerados, ele não terá como censurar-nos.
     Nogaret concordou com um aceno de cabeça.     
     – Realmente –, disse ele, com um tom de desprezo –, pouco im-porta se ele concorda ou não. Se ele nos incomodar, faremos com ele a mesma coisa que fizemos com o velho Bonifácio VIII.  – E depois, Clemente V deve sua mitra ao rei Filipe –, completou Nogaret. Não creio que ele crie muitos obstáculos. Mas, – ponderou o lorde Guar-da-Selos –, para evitar quaisquer surpresas, vamos manter no maior segredo possível qualquer procedimento de força que tivermos que tomar contra esses malditos hereges. As confissões feitas mediante tortura, embora sejam legais do ponto de vista jurídico, sob o aspecto moral, são sempre contestáveis.    
     – Certamente que tudo será feito no maior sigilo, obedecendo a todos os procedimentos legais –, disse William de Paris. ─ Não que-remos transformá-los em mártires ─, completou.
      William de Nogaret sorriu. Ali estava um aliado ideal. O inquisi-
dor-mor, ao que parecia, também odiava os templários. Não poderia ter escolhido alguém melhor para levar adiante o seu plano.
     – Bem. Continuai com o interrogatório e usai todos os elementos de persuasão possíveis. Não devemos ter piedade desses miseráveis adoradores do demônio –finalizou Nogaret.
    A d’ Ennezat é que a coisa não pareceu muito bem. Afinal, ele era um membro profissional do clero. Estava a serviço de William de Paris porque efetivamente acreditava na utilidade da Inquisição como instrumento de defesa da fé. Pensava, realmente, que a heresia era um cancro no seio da Cristandade e precisava ser extirpada sem dó nem piedade. As manifestações de heresia, bruxaria, sodomia, ido-latria, satanismo, era algo que realmente o horrorisava. Contraria-vam tudo de santo e puro que a Igreja de Cristo tanto fizera para ensinar aos homens. Tinham que ser apuradas com rigor e seriedade e combatidas com mão forte. Mas deviam obedecer ao devido pro-cesso legal.
     Gostara de ouvir o inquisidor-mor dizer que este seria obedecido. Mas ele não apreciara o pouco caso com que Nogaret falara de Clemente V. Afinal, Sua Santidade era o Supremo Pontífice e ele não admitia que alguém, que nem pertencia ao clero, fizesse pouco caso do chefe da Igreja, ainda que não tivesse muito respeito por ele. Ademais, não teria nenhum prazer em ver os comandantes da Irman-dade do Templo sendo torturados somente para satisfazer a cupidez do rei Filipe, o ódio de Nogaret e a inveja de William de Paris. Ele gostaria que a justiça fosse feita.Se os templários fossem mesmos hereges e adoradores do demônio, então...
     – Amanhã ouviremos o inspetor- visitador da França, o cavaleiro Hugues de Peyráuld. Devemos prosseguir com a mesma estratégia, dando-lhes ciência das acusações e deixando que ele as confirme ou não?– perguntou d’Ennezat.
     – É a lei processual, não é?– respondeu William de Paris. – Temos que dar a esses patifes a oportunidade de confessar, por si mesmos, os seus crimes,antes de extrair-lhes, à força, a verdade. Por mim, eu os poria, de cara, no cavalete, pois acho que eles são culpados como o próprio Diabo que eles servem. Toda essa lenga-lenga processual é pura perda de tempo. No fim, teremos que submetê-los mesmo ao súplicio.
     – Então por que não poupar tempo e ouvir também o cavaleiro Geoffrey de Gonneville, preceptor de Aquitânia e Poitou? Sabemos que a resposta de ambos será a mesma –, sugeriu d’ Ennezat.
     – É melhor não atropelar o rito processual –, disse William de Paris. – Os defensores desses miseráveis poderão usar isso em sua defesa. – Depois –, completou o inquisidor-mor, com um simulacro de sorriso –, não existe ferro que não se conforme ao bater firme do martelo. As nossas masmorras são excelentes bigornas e os nossos carrascos magníficos ferreiros.
     “Bom. Pelo menos isso,” pensou d’Ennezat. O devido processo legal iria ser obedecido.
     ─ Quanto a Hugues de Peyráuld, creio que não teremos proble-mas com ele. Ele é nosso ─, disse por fim Nogaret, que tinha ouvido todo aquele diálogo em silêncio.
    ─ Como assim? ─ perguntou d’Ennezat, que não havia entendido o sentido da fala de Nogaret.
    ─ Ele tem suas razões para colaborar conosco. Ide devagar com ele ─, respondeu Nogaret, com um sorriso enigmático.
    A perspectiva de torturar os três grandes dignitários do Templo, com exceção de Peyráuld, era uma idéia que excitava o lorde Guarda–Selos, William de Nogaret. Afinal, seu ódio pela Igreja iria ter um magnífico canal de escape. Não lhe bastava ter sido um dos principais articuladores da humilhação e morte do papa Bonifácio VIII, quando, na companhia dos irmãos Colonna e seus partidários armados, invadira o Castelo de Anagni e fizera o velho pontífice prisioneiro. Nessa ocasião, permitira que Pierre, sobrinho do Cardeal Collona, esbofeteasse o papa no rosto, causando um dos maiores escândalos de todos os tempos. Por conta disso todos seriam excomungados, mas Nogaret estava pouco se importando com isso. Ele não acreditava em nada disso mesmo. Sua igreja era o reino de França e seu papa o rei Filipe, o Belo.
 

 
     O Atentado de Anagni acontecera alguns anos antes, no dia sete de setembro de 1303, mas William de Nogaret recordava-se bem dessa aventura, que lhe tinha dado um grande prazer, mas também lhe trouxera não poucas preocupações.
     Filipe, o Belo, tinha entrado em rota de colisão com o papa Bonifácio VIII. O conflito evoluíra de tal maneira que o velho pontífice ameaçara de excomunhão o monarca francês. Este, em resposta, mandou a Roma uma expedição armada com a finalidade de prender o papa e trazê-lo para ser julgado perante um concílio de bispos franceses. A expedição contra o Vaticano foi comandada por Nogaret, pessoalmente. Seu sucesso se devera principalmente ao apoio que lhe foi dado em Roma pelos inimigos declarados de Bonifácio VIII, a família Colonna, comandada pelo sinistro bispo Sciarra Colonna, sobrinho do cardeal excomungado, Jacques Colonna. A família Colonna dominava o partido dos gibelinos, inimigos figadais de Bonifácio VIII. O papa, abandonado pelos seus aliados romanos, refugiou-se no Castelo de Anagni, onde foi capturado e preso pelos soldados franceses. Nessa ocasião, Sciarra Colonna aproveitou para destilar todo seu ódio contra Bonifácio VIII, agredindo-o fisicamente com um tapa no rosto, ao qual o velho pontífice respondera, que “entregava a tiara papal e a própria cabeça, mas nunca sua dignidade, pois papa era e assim morreria.”
     Entrementes, a população de Anagni, ao saber do atentado contra Bonifácio VIII, armou-se e assaltou o castelo para libertá-lo. Nogaret, os partidários de Sciarra e os soldados franceses, em menor número, fugiram. O papa foi libertado, mas já não era o mesmo homem. O episódio havia comprometido de vez a sua saúde física e mental.  Em consequência o velho e combativo pontífice morreria no mês seguinte. Seria sucedido por Bento XI, que não obstante ter realizado uma trégua com o rei francês, não cedeu, como era desejo deste, às suas maquinações. Em consequência, morreria envenenado dois anos depois, supostamente a mando de Filipe, o Belo. Para o seu lugar foi eleito o inefável cardeal francês Bertrand du Got, que adotou o nome de Clemente V. Filipe e Nogaret haviam vencido essa batalha contra a Igreja, pois Clemente V, menos do que um papa, era um refém do rei francês, que o obrigara, inclusive, a mudar a corte papal para Poitiers, em território francês.
 

 
    Nogaret queria agora minar a Igreja naquela que era a sua mais poderosa organização: a Ordem do Templo. Afinal, ela possuía mais de cinco mil membros somente no território francês. Só em homens de armas contavam-se mais de dois mil, entre cavaleiros e sargentos. Sua fama de guerreiros valorosos era temível. Seria um poderoso braço armado para o papa. Se um dia Clemente V, ou outro pontífice que tomasse o seu lugar, tivesse a coragem de enfrentar Filipe, os templários seriam uma arma preciosa para a Igreja. E com a riqueza que possuíam, poderiam comprar aliados, equipar um exército, enfim, se tornariam um peso fatal na balança contra qualquer inimigo da Igreja. E agora que as cruzadas haviam terminado, os templários não tinham mais utilidade como milícia de Cristo. O que impediria que se tornassem a milícia do papa? 
    Assim pensando, William de Nogaret engajara-se de corpo e alma na campanha de Filipe para destruir a Ordem do Templo. Talvez nem fizesse parte da sua estratégia as insinuações de que os templários estariam, na verdade, ressuscitando a heresia cátara, pela qual seus próprios antepassados foram queimados nas fogueiras da Inquisição. Primeiro porque ele mesmo não acreditava nisso, depois porque, sendo ele tão anticlerical, a menor de suas preocupações era a defesa da fé cristã. As questões religiosas não tinham a menor importância para ele. Na sua cabeça, religião era uma superstição que a Igreja inventara para manter controle sobre o espírito do povo. Ele era todo político, seu hálito rescendia a política, sua alma respirava política. Mas, se para atingir seus objetivos fosse preciso usar a religião, então que fosse. Ele se tornaria o mais ferrenho dos católicos, o mais íncli-to defensor da fé, o mais inflexível soldado de Cristo...
     Filipe queria destruir o Templo por cobiça. Também tinha medo que os templários pudessem ser usados como arma contra ele. Os motivos de Nogaret eram outros. Era vingança contra as pessoas que haviam chacinados os seus ancestrais, pois fora um exército de cruzados, usando aquela maldita cruz vermelha que havia perpetrado o cruel genocídio a que foram submetidos os seus antepassados. Ele, que era descendente de ancestrais que haviam abraçado a doutrina cátara, tinha desprezo pelo Templo e ódio pela instituição que os sustentava, a Igreja de Roma. Os templários, pensava ele, eram a institucionalização eclesiástica do exército cruzado. Aqueles cavalei-ros de mantos brancos, com a cruz vermelha no peito, lembravam os malditos soldados de Simão de Montfort, que meio século atrás haviam chacinado seus ancestrais e destruído a herança da sua família.
     “Agora, é o veneno deles sendo usado contra eles mesmos”, mur-murou o descendente dos cátaros, enquanto descia as escadas da masmorra para inspecionar os instrumentos de tortura que estavam sendo preparados para “amolecer” os altos dignitários do Templo. Sorriu intimamente pensando que seria a própria Inquisição que daria arremate à sua vingança contra a Igreja. O filho da heresia iria usar a própria heresia para se vingar daqueles que ele acreditava, tinham sido os algoses da sua família.
 

 
     Jacques de Molay tinha sessenta e três anos quando foi preso. Estava completando nove anos no comando geral da Ordem do Templo. Embora sexagenário, apresentava-se em boas condições fí-sicas e parecia gozar de boa saúde. Tanto é que três meses antes da sua prisão, juntamente com dez irmãos da Ordem, cavalgara, em cerca de uma semana, os mais de trezentos kilômetros que separam Poitiers de Paris.
     Em Poitiers se avistara com o papa e conversara sobre as acusa-ções que pesavam sobre a instituição que ele presidia. Essa investi-gação, o próprio Jacques de Molay já havia solicitado, em face das notícias que haviam chegado aos seus ouvidos. Ele sabia que o rei Filipe havia apresentado a Clemente V uma lista com uma série de acusações contra o Templo. Essas acusações eram baseadas em teste-munhos de antigos cavaleiros que haviam deixado a Ordem, segundo o que papa o informara. Clemente V apresentou a Jacques de Molay a lista de acusações e disse a ele que devia tomar cuidado com as maquinações de Filipe V.
     – Concordo com Vossa Santidade – respondeu Jacques de Molay.– Os inimigos da nossa Ordem estão cada vez mais ativos e é preciso tomar muito cuidado.
    O papa havia apresentado ao grão-mestre templário as imputações que lhe haviam sido feitas por Filipe, extraídas dos depoimentos de três antigos membros da Ordem, Esquin de Floyran, Bernard Pelet e Gérard de Byzol. Esses cavaleiros haviam sido todos expulsos da Irmandade e agora se dedicavam à tarefa de difamá-la onde pudes-sem e encontrassem quem quisesse ouvir.
     – De certo que são difamações e calúnias urdidas por esses cana-lhas –, disse o papa. – E o rei Filipe está se aproveitando disso para atacar o Templo.
     – Isso é verdade, respondeu Jacques de Molay. – Como Vossa Santidade está ciente, esses indivíduos foram expulsos da Ordem por conduta inadequada.
    – Não é só por despeito que o rei quer destruir o Templo. Ele quer principalmente se apossar dos seus bens –, lembrou o papa.
    – Estou ciente disso – respondeu o grão-mestre. É principalmente a cobiça que leva o rei a querer nos destruir.
    – Assim –, disse o papa – com um olhar de viés, que não deixava dúvidas –, seria conveniente tomar providências em relação aos bens do Templo. 
    – Entendo. Vossa Santidade tem razão. Isso será feito o mais rápido possível –, disse o grão-mestre. ─ Mas e quanto às nossas propriedades e bens de raíz, juntamente com suas rendas? Como haveremos de protegê-las? ─ perguntou Jacques de Molay.
    ─ Nós cuidaremos disso, meu filho ─, respondeu o papa.
     O comandante do Templo era um velho teimoso e analfabeto, como Filipe o Belo, o apodava, mas não tinha nada de bobo. Sabia que o papa estava nas mãos do rei francês, e que algum acordo nesse sentido estava em curso. Alguns dias antes chegara às suas mãos o documento assinado por um advogado de Paris, chamado Pierre Dubois, denominado De recuperatione terre sancte, na qual o refe-rido causídico advogava veementemente uma nova cruzada para re-cuperação dos domínios cristãos na Terra Santa. E que essa cruzada fosse comandada justamente pelo rei da França, usando os recursos das duas poderosas Ordens monásticas, a do Templo e a do Hospital.
     “Essencial para esse empreendimento”, dizia o documento, “é que a Ordem do Templo e o Hospital de São João sejam fundidas em uma só organização e colocadas sob um único comando.” Evidente que o comando único seria dado ao próprio Filipe, ou a alguém indi-cado por ele. Dado o pouco interesse demonstrado pelo Hospital nessa fusão, e a obstinada resistência de Jacques de Molay, já mani-festada inclusive por escrito, o documento não fazia por menos: recomendava simplesmente que no caso de resistência à fusão, a “Ordem do Templo fosse destruída e para as necessidades da justiça, aniquilada por completo.”
     Fora por isso que, uma semana antes do assalto ao Templo, ele ordenara ao preceptor de Paris, Gérard de Villiers, e ao comandante da esquadra templária, William de Saint’Clair, que levasse o tesouro da Ordem para Gisors, onde ele ficaria a salvo até poder ser embar-cado para o exterior. Quanto às relíquias do Templo, e em especial aquela, cuja existência ocupava a maior parte das preocupações do grão-mestre, era preciso que fosse oculta em lugar que ninguém pudesse encontrá-la, por que, se ela fosse apreendida pelos senescais de Filipe, ou pelos carrascos da Inquisição, seria impossível administrar os problemas que isso lhe causaria.
    Mas quanto ao resto, Jacques de Molay, em sua cela no castelo do Templo, estava tranquilo. Sabia que tanto o tesouro monetário do Templo, quanto as relíquias que o preocupavam estavam seguras. O Irmão Saint’Clair removera o tesouro para Gisors alguns dias antes da sua prisão e dali as levaria para La Rochelle, embarcando tudo na frota templária. O destino final seria a Escócia, onde a família de Saint’Clair possuia terras na região de Lothian, província de Rosslyn. O comandante da esquadra templária convencera os altos dignitários do Templo que Rosslyn seria o local ideal para a guarda desse tesou-ro, pois sendo um local praticamente desconhecido das autoridades, era circundado por cavernas e subterrâneos que somente a famíla Saint”Clair conhecia. Além disso, a Escócia estava em estado de guerra contra a Inglaterra e a maior preocupação de todo mundo ali, naquele momento, eram as hostildiades entre escoceses e ingleses.
     De Molay já tinha a informação de que Saint’Clair fora bem sucedido em tirar o tesouro templário de terras francesas. Embora o próprio Nogaret, como havia feito na sexta-feira, treze de outubro, tivesse comandado uma expedição ao porto de La Rochelle para apreender a esquadra templária, dois dias depois do assalto ao Tem-plo, ele chegara atrasado. Os dezoito navios da esquadra já haviam zarpado. As cruzes vermelhas sobre as velas infladas das galés, ape-quenando-se cada vez mais no horizonte, até desaparecerem, foi tudo que Nogaret conseguiu ver.
 

 
      Filipe não conseguira botar as mãos no tesouro do Templo, mas se apossara dos bens que estavam registrados em nome da Ordem em todo o território da França. Isso não havia passado despercebido aos olhos do papa. Embora respeitosamente, e com a devida cautela de um pontífice que era refém do rei, Clemente V foi capaz de mostrar a sua indignação pelo ato de rapina praticado pelo monarca francês,  escrevendo uma carta censurando-o por esse ato intempestivo e agressivo, prendendo os templários e confiscando os bens da Ordem.“s, querido filho”, escreveu o papa ao rei, “violastes em nossa ausência todas as regras e deitastes a mão à pessoas e propriedades dos templários. Vós também os aprisionastes e, o que nos entristece ainda mais, não os tratastes com a devida clemência (...) e acrescentastes ao desconsolo do encarceramento ainda outra aflição. Vós deitastes a mão á pessoas e propriedades que estão sobre a proteção direta da Igreja de Roma. (...) Vosso impetuoso ato é visto por todos, e de forma correta, como um ato de desrespeito para conosco e para com a Igreja Romana.”
     Era, sem dúvida, um ato de coragem, praticado por um papa que tinha abdicado do seu poder e se submetera, covardemente, aos desígnios de um rei que fizera dele um mero títere. Clemente V não estava incomodado com o destino dos templários, naquele momento encarcerados em sua maioria, caçados por toda a França e alguns deles sendo mortos onde eram encontrados, se por acaso resistissem à prisão. Ele estava preocupado com os bens da Ordem, que Filipe surrupiara com mão grande.
     Certamente que ele, sendo o Supremo Pontífice, poderia ter exercido a sua autoridade sobre William de Paris, para evitar que os membros da Ordem fossem submetidos aos suplicios da tortura. Afinal, embora o Tribunal da Inquisição tivesse certa independência em relação à influência papal, nenhum inquisidor, por mais poderoso que fosse, se oporia aos desígnios do papa. Mas isso ele não ousou. Não tinha suficiente coragem para confrontar a vontade do rei da França.
     Quanto a Filipe, este nem se deu ao trabalho de responder à interpelação do papa. Tinha certeza de que logo, à vista do trabalho de convencimento iniciado pelos carrascos de William de Paris, os próprios templários iriam oferecer munição suficiente para que Clemente V os condenasse. Porque, logo na semana seguinte, os inquiridores haviam iniciado o interrogatório. E a vista das negações dos altos dignitários do Templo, os instrumentos de tortura começaram a ser preparados. A par disso, uma intensa campanha de convencimento do papa havia sido iniciada. Uma campanha em que todas as armas seriam usadas.
    No dia seguinte ao que Geoffrey de Charney fora interrogado, Jacques de Molay foi levado à presença do inquisidor-mor. O monge dominicano d’Ennezat leu para ele acusações que já haviam sido feitas ao preceptor da Normandia. Ao ouvi-las, de Molay mostrou a mesma indignação que seu irmão de Ordem havia demonstrado ao ser confrontado com tais declarações.
     – Infâmia – declarou o idoso cavaleiro, com uma expressão in-dignada, que as espessas barbas brancas não conseguiam esconder.
    – Negais então as acusações que são feitas contra vós? – pergun-tou William de Paris.
    – Nego, pela minha alma e pela minha devoção à Santa Madre Igreja e à Virgem, a quem servimos, que tudo não passa de falsidade e calúnia –, disse o grão-mestre, mostrando a altivez que ainda conservava, apesar da idade e da situação desconfortável em que se encontrava.
     A postura altiva do velho cavaleiro não deixou de ser observada pelo inquisidor-mor e pelos prelados que acompanhavam o ingerro-gatório. “Maldito herege”, pensou William de Paris. “Veremos se ainda conservará essa postura de arrogância depois de alguns dias no cavalete.”
    – É do vosso conhecimento que essas acusações foram todas confirmadas por antigos irmãos da Ordem? – inquiriu William de Paris.
    – Essas acusações são falsas e foram feitas por membros expulsos
da Ordem por conduta inadequada. Peço que essa circunstância seja levada em conta –, disse de Molay.
    – Certamente a levaremos –, disse William de Paris, com um sorriso irônico. – Mas espero que vós sejais mais colaborativo e pou-pe o vosso tempo e o nosso dizendo logo o que queremos saber.
     – Se vós vos referis á essas acusações absurdas que estão sendo feitas contra nós, reputo que são todas falsas e quem as fez são men-tirosos e infames –, repetiu de Molay.
    – E quanto aos bens em espécie do Templo, o que foi feito deles? – inquiriu William de Nogaret, que assistira calado, até aquele mo-mento, o interrogatório.
    Era a primeira vez que essa pergunta surgia no inquérito. Jacques de Molay logo percebeu que esse era o verdadeiro móvel de todo esse processo. Não pretendia entregar a coisa de modo tão fácil. Se Filipe queria destruir o Templo e ele certamente o faria, disso o grão-mestre estava certo, pelo menos teria que salvar o tesouro da Irman-dade. Ele permitiria que a Ordem sobrevivesse mesmo que fosse suprimida em França e outros países onde Filipe detinha influência.
    – Não existem tais bens em espécie –, respondeu o imponente an-cião, voltando-se para Nogaret.
   – Vós estais faltando com a verdade –, vociferou Nogaret. Todos sabem que o Templo de Paris guarda uma incalculável riqueza em espécie.
   – Ela foi toda emprestada ao rei Filipe e outras organizações e pessoas –, respondeu de Molay. – Como vós próprio sabeis, a coroa deve uma soma imensa ao Templo.
    William de Paris não estava disposto a deixar que os dois opo-nentes desviassem o interrogatório para outra questão. A ele cabia apurar as acusações de heresia. A questão sobre os bens do Templo não era problema seu. Mas Nogarret não parecia disposto a abando-
nar a questão.
    – Recusai-vos, pois, a nos dar essa informação?– insistiu o lorde Guarda-Selos. – Por certo não ignorais que temos meios para arran-cá-la á força. Insistis em negar?
   – Nada tenho a dizer sobre essa questão –, repetiu o grão-mestre.
  – Sois um velho teimoso e tolo.  A culpa por tudo que vos aconte-cer, e aos vossos irmãos, daqui por diante será toda vossa ─, voci-ferou Nogaret, com o rosto rubro de colera.
    Só dois olhos altivos e frios responderam à essa ameaça.
    William de Paris balançou a cabeça em sinal de desagrado. A intempestiva intervenção de Nogaret havia desviado o rumo do interrogatório.  Com um ar de contrariedade no rosto, resolveu dar por encerrada a seção.
     – Levai o prinsioneiro de volta à sua cela –, ordenou inquisidor-mor, aos dois soldados que guardavam, impassíveis como estátuas, a porta da sala onde se processava o interrogatório.
       ̶ Vamos ver até quando ele continuará negando os seus abo-mináveis crimes  ̶  , disse Nogaret.

      ̶  É. Vamos ver  ̶ , murmurou William de Paris sem olhar para o lorde Guarda-Selos.

(DO LIVRO A IRMANDADE DOS SANTOS MALDITOS),NO PRELO
 
 
 
 
 
 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 13/11/2018
Alterado em 13/11/2018


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