A LENDA DO FRADE DE PEDRA
A LENDA DA PEDRA DO FRADE
Não existe visão mais interessante do que a de uma serra modulando no horizonte. Nos contornos dos seus picos, na geografia das suas formações rochosas, nos desenhos dos seus montes, uma mente imaginativa pode enxergar qualquer coisa. Deitado na areia da praia, lanço um olhar descuidado para a serra. Parece aos meus olhos que ali há um gigante deitado de costas. Aquele pico mais alto, com duas manchinhas escuras, uma ao lado outra, forma perfeitamente o contorno de um nariz. Aquela encosta, nua de vegetação, na mesma linha do nariz, mas num nível de altura um pouco inferior, tem a forma de uma orelha.
Logo abaixo dessa formação, que parece a cabeça do gigante, há uma clareira, por onde certamente corre um riacho. Vista aqui da praia parece uma boca. Olhando-se para o maciço conjunto de terra e pedra, com seus contornos e rebaixos, e a vegetação que o cobre, posso perceber um tronco robusto, com uma barriga pronunciada, duas pernas escarranchadas que se derramam pelas encostas pedregosas e numas pedras imensas que arrematam o conjunto, até a figura de dois pés....
Imagino, quiçá, um ciclope que ali tenha se deitado para tirar uma soneca e de repente, um abalo sísmico, uma tsunami gigantesca ou outra qualquer transformação ocorrida no corpo da terra juvenil, o soterrou e petrificou, deixando-o ali, inerte como a mulher de Lot convertida em estátua de sal, ou como um dinossauro que estivesse dormindo no momento em que o grande meteoro que acabou com a sua raça, chocou-se com a terra.
Deste meu ponto de vista imagino a serra como um monte de terra que Deus empurrou com a mão para fazer um dique para conter as águas do mar. Como diz a Bíblia: “ Ajuntem-se num só lugar as águas que estão debaixo do céu, e apareça a parte seca”. E assim foi. À parte seca Deus chamou terra, e chamou mares ao conjunto das águas.”
Por isso, quando os portugueses desembarcaram nas praias do Brasil e viram o maciço montanhoso que era a Serra do Mar, cercando de Sul a Norte o litoral do país, pensaram que ela fosse uma muralha feita por uma raça ciclópica. Depois, pouco a pouco, foram recortando nelas suas visões gestaltianas. Aquele pico parece um dedo. Chamaram-no de Dedo de Deus. Aquele outro parece um pão. Virou o Pão de Açúcar. O monte acolá parece um sino. A Pedra do Sino. A Garganta do Diabo. A Pedra do Frade...
A Pedra do Frade é um rochedo escarpado que fica na Serra da Bocaina, ali pelos lados de quem vai de Cunha a Bananal. Fica na divisa dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Hoje ele é muito procurado para trilhas e caminhadas. É um dos pontos mais altos encontrados na Serra do Mar, com 1.574 metros de altitude. Do alto desse pico se pode contemplar a baia de Angra dos Reis em toda sua imponente beleza natural.
Até os anos cinquenta ninguém se atrevia a escalar aquele pico, salvo os caboclos mais ousados que lá se aventuravam em busca do tesouro que dizem existir lá.
Lendas á parte, quem já foi lá afirma que o local é realmente encantado. Afora a vista que se tem do litoral, que é estupenda, há no lugar um clima de encantamento e magia que contagia até o mais empedernido dos céticos.
Na base do rochedo a chuva cavou na pedra uma pequena piscina natural, bastante profunda, onde a água é tão cristalina que se pode ver o fundo. Antigamente os caboclos diziam que pela manhã, quando os primeiros raios do sol projetavam seus raios sobre o espelho dágua, um bando de patinhos dourados aparecia lá para nadar. Logo desapareciam quando a sombra do rochedo cobria toda a superfície da lagoa. Mas não era todo mundo que conseguia vê-los. Só as crianças e os puros de coração. Eram encantados.
Segundo se acreditava então, a presença daqueles patinhos de ouro eram a prova de que existia um tesouro enterrado na Pedra de Frade. Nos anos quarenta até se tentou garimpar lá. Sinais de mineração ainda são visíveis em alguns locais da montanha, mas já há muito tempo o IBAMA interditou a área para qualquer tipo de exploração e ninguém mais entra no parque, salvo para praticar turismo ecológico.
Chama-se Pedra do Frade, porque segundo os caboclos daquelas serras, lá costumava aparecer, todo dia, por volta da hora da Ave Maria, a figura de um frade. Capuchinho diziam uns, franciscano afirmavam outros. Houve também quem dissesse que era jesuíta ou dominicano. Como conseguiam identificá-lo com uma dessas Irmandades ninguém até hoje soube explicar. O fato é que o tal frade só podia ser visto de longe, quando o sol estava no seu crepúsculo. Então ele surgia, em pé, brilhante como uma estátua de ouro, sobre a grande penha que se posta no alto da montanha. Mas só aparecia nessa hora, afirmavam os caboclos. E era no exato momento em que a rádio Aparecida, aliás a única emissora que ainda pega naquelas montanhas, começava a transmitir a Ave Maria. Era como se ele, o frade, saísse da sua solitária cela na montanha para acompanhar a novena rezada no maior e mais famoso santuário do país.
A história desse frade é controversa. Dizem que em meados do século XVIII as autoridades portuguesas proibiram a fundação e a existência de mosteiros em todos os chamados territórios das Minas Gerais, pois segundo elas, esses mosteiros facilitavam o contrabando do ouro extraído na região. Como se sabe, o ouro extraído na região mineira costumava ser levado para Paraty e dali embarcado para a metrópole. Era transportado, portanto, pela velha Estrada Real, que vem das cidades mineiras e passa por Bananal, Cunha e outras antigas cidades da região. Ladrões e contrabandistas infestavam aquela estrada para roubar o ouro ou simplesmente desviá-lo dos cofres reais.
Segundo algumas lendas, esse frade era cúmplice dos contrabandistas e costumava guardar, em seu mosteiro, o ouro roubado, ou sonegado ao fisco colonial. Diziam também – nunca faltam os idealistas românticos – que esse tesouro escondido seria utilizado para financiar uma futura revolução libertadora, do tipo daquela tentada pelos Inconfidentes de Ouro Preto, que custou a vida de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.
O fato é que, se verdadeiras essas informações, o tal frade escondeu o ouro tão bem que nunca ninguém o achou. E os contrabandistas, furiosos com o “chapéu” que levaram do religioso, mataram-no e enterraram o corpo dele em local incerto e não sabido, que como o tal tesouro, nunca foi encontrado.
Assim, tanto o ouro escondido quanto o corpo do frade estariam enterrados em algum lugar na montanha onde fica a chamada Pedra do Frade. O ouro teria se transformado nos patinhos que podiam ser vistos nadando na piscina na base do rochedo, ao nascer do sol, e a projeção espiritual do corpo do padre surgia todo dia em cima da pedra, como a guardar o tesouro pelo qual fora sacrificado. Por isso, diziam os caboclos, todos os valentes que ousavam se aventurar por aquelas bandas, à procura do tal tesouro, jamais voltavam. E seus corpos também nunca eram encontrados.
Se estivéssemos na Europa, alguém poderia dizer que essa lenda se trata também de um conto alquímico. É, por exemplo, o que Bernard Rogers assevera ao colecionar uma série de contos fantásticos, como o Gato de Botas, o Pequeno Polegar, Alice no País das Maravilhas, Gargantua e Pantagruel, Chapeuzinho Vermelho, Os Contos das Mil e Uma Noites, etc. São todos, na visão daquele autor, metáforas do processo utilizado pelos alquimistas na procura da pedra filosofal. ¹
Mas não existiam alquimistas no Brasil colonial. Pelo menos, nunca se fez recenseamento de nenhum adepto da Arte de Hermes praticando o seu ofício no Brasil até hoje. Portanto, a lenda do Frade de Pedra há que ter outra origem.
O funcionário do IBAMA, sob cuja jurisdição está o território onde se localiza a Pedra do Frade diz que tudo é superstição dos sertanejos que vivem na serra. “Na verdade”, diz ele “o que os caboclos chamam de frade é uma pedra que tem a vaga aparência de um homem vestido com uma túnica. Deste lado da serra, principalmente no crepúsculo, os raios do sol batem em cheio sobre ela e a umidade faz com que ela adquira uns tons de dourado.” “Quanto aos tais patinhos dourados” diz ele, com muita segurança”, são apenas os raios do sol que refletem no espelho d’agua, e com o soprar do vento parecem estar se movimentando.”
Mas ele nunca foi lá para ver se é isso mesmo. Minha mãe, que me contou essa história, disse que uma vez o seu pai, meu falecido avô, tinha ido lá e visto, tanto o frade quanto os patinhos de ouro. E que o frade, numa língua esquisita (devia ser latim), mas que ele entendeu bem porque o frade falava com o pensamento e não com a língua, o advertiu para sumir dali antes que ficasse escuro. Pelo arrepio que ele sentiu na espinha e pelos cabelos que arrepiaram todos, ele logo soube que não estava falando com gente. Era, sem dúvida, alma penada. Sumir correndo dali foi o que ele fez e nunca mais voltou lá.
Bom, o meu avô e a minha mãe eu conheci e sei que eles não mentiam. Se diziam que viram, então viram. O funcionário do IBAMA eu não conheço e não sei o quanto se pode confiar nele. O que eu posso dizer é quando vou à Angra dos Reis e olho para o tal rochedo eu também enxergo um frade lá em cima, olhando, impassível, a vastidão que se estende à sua frente, lamentando quiçá, que ela já esteja agora tão cheias de tonsuras, como a que ele tem na sua cabeça.
Quanto ao tesouro eu já o encontrei há muito tempo em meu coração, quando descobri que Deus existe e que o mundo que Ele está construindo é muito mais do que eu consigo representar em minha pobre imaginação.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 20/04/2019