A BIOGRAFIA DO DIABO
Dizem que a luz só pode ser gerada a partir da escuridão. Luz e trevas são os pólos da corrente energética que dá nascimento a tudo que existe no universo. São a fonte da dialética que move o mundo. Representam a vida e a morte, o positivo e o negativo, yin e yang, Deus e o Diabo, e tudo o que é composto a partir dos dois princípios fundamentais que dá origem à realidade existente.
Por isso a Bíblia ensina que o mundo foi feito de luz, luz que Deus tirou das trevas. “E disse Deus: Haja luz; e houve luz. E viu Deus que a luz era boa; e fez Deus separação entre a luz e as trevas. E Deus chamou à luz Dia; e às trevas chamou Noite. E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro.”
O evangelista João também começa a sua crônica do Novo Testamento com um discurso que fala de trevas e luz. “Nele estava a vida, e esta era a luz dos homens. A luz brilha nas trevas e as trevas não a derrotaram”.
Convencionalmente, costuma-se dizer que o século
XVI foi um século de luz. A cultura humana foi redescoberta pelo Renascimento. O espírito religioso foi ressuscitado pela Reforma Protestante. Isso é verdade. Os séculos de trevas pelos quais passou a mente ocidental foram desafiados e enfrentados pelas conquistas intelectuais e científicas realizadas no século XVI. Reforma religiosa, revitalização das cidades, invenção da imprensa, grandes navegações, libertação moral e espiritual da escravidão que um clero corrupto e ignorante impunha ao povo, tudo isso aconteceu no século das luzes.
Entretanto, para que a luz possa brilhar, é preciso que antes experimentemos as trevas. Assim, o período que precedeu o século das luzes, ou seja, o século XV, foi talvez o período em que a ignorância, a credulidade e a superstição atingiu o mais alto patamar na história da cultura ocidental. Contribuíram para isso, especialmente, as guerras dinásticas, a cupidez dos bispos e dos papas e uma espiritualidade de caráter extremamente duvidoso, canalizada principalmente para finalidades egoísticas de pessoas ávidas de poder.
O século XV foi a época em que as dinastias reais começaram a se afirmar e as monarquias locais davam os primeiros passos para criar os estados nacionais. No Ocidente, França e Inglaterra lutaram uma Guerra de mais de Cem Anos para ver quem dominaria aquela parte da Europa. Na Europa central, as lutas aconteciam para definir quem herdaria os restos do esfacelado Sacro Império Romano Germânico, que a ambição dos papas e reis, especialmente, tanto contribuiu para destruir. Uma multidão de príncipes, barões e prelados religiosos disputavam esse butim, em meio à guerras e conflitos étnicos, que até hoje ainda não foram devidamente solucionados.
De outro lado, vinham os turcos otomanos, que haviam liquidado o Império Romano do Oriente em 1453 e voltavam seus olhos para a Europa Ocidental na esperança de ampliar seus domínios e levar mais longe a glória de Alá.
Foi o reflexo desse ambiente de pobreza e ignorância, fermentado pelas guerras de conquista e por um ambiente religioso sem ética, nem moral, que levaram rapidamente a população ocidental à degradação intelectual e ao nascimento da cultura da superstição e da falsa ciência. Na Europa Central nascia a lenda do Príncipe Vlad Dracul, que serviria para inspirar, mais tarde, o mito do Conde Drácula. Na Europa Ocidental desenvolvia-se uma cultura mística e hermética que fazia dos magos, feiticeiras, bruxos e alquimistas, a verdadeira oposição para uma Igreja corrupta e vazia de espiritualidade, que caminhava a passos largos para uma derradeira e definitiva cisão.
Esse foi o caldo do Renascimento, pois como se já se viu, a luz habita nas trevas, e não há luz sem trevas que a anteceda.
O Século XV foi a época em que o delírio alquímico atingiu o seu auge. Um grande número de embusteiros e charlatães vendia seus falsos conhecimentos aos barões, príncipes e prelados da Igreja, prometendo a realização de um sonho quimérico, que era a sinterização da pedra filosofal e o elixir da longa vida. Esses eram os dois produtos, que segundo o sonho alquímico, surgiam como corolários dessa estranha ciência que produziu alguns homens de gênio e uma imensa legião de falsários.
Viver muito, e se possível rico. Essa era a principal meta de quem podia contratar um mago, ou um feiticeiro, ou um verdadeiro cientista para trabalhar para ele na procura da tão sonhada pedra filosofal. Por isso, reis, príncipes, barões e potentados da igreja, todos tinham o seu alquimista, ou o seu mago. Uns desenvolvendo a sua estranha prática em laboratórios equipados com fornos, foles, pipetas, astrolábios e balanças, outros em templos ornamentados com sinistras decorações, praticando estranhos rituais que colocavam as autoridades religiosas de cabelo em pé. .
Cada monarca europeu tinha o seu adivinho. Nada se fazia sem consultá-lo. Todos os homens de espírito se envolviam, de uma forma ou de outra, em aventuras místicas. Uns pelo sincero amor ao conhecimento, outros pelo desejo cúpido da fama, do dinheiro, ou do poder puro e simples. O Século XV e as primeiras décadas do XVI viu nascer grandes personalidades como Paracelso (1493-1451) e Rabellais (1494-1553), mas também foi a época de Heinrich Kraemer e James Sprenger, dois padres dominicanos, autores do bizarro tratado denominado Maleus Maleficarum (O Martelo das Feiticeiras), obra sinistra que tinha por objetivo ensinar aos piedosos padres e príncipes da época como identificar e exterminar o grande mal do século, ou sejam, os bruxos, os magos e as feiticeiras.
Aliás, para esses dois virulentos defensores da fé católica, o mundo estava povoado desses agentes de Satanás, e entre eles, a grande maioria era constituída por criaturas do sexo feminino. Não foram poucas as mulheres que pagaram por suas superstições nas fogueiras e nos tachos da Inquisição, cujas águas eram fervidas para que os reis e padres provassem os caldos e pelo gosto pudessem identificar se as pobres coitadas eram ou não feiticeiras.
O século XV também viu nascer Joana D!arc e Gilles de Rais, duas pessoas cujas vidas e experiências, que aconteceram praticamente na mesma época e com igual intensidade, jamais serão devidamente explicadas de forma racional. E por um estranho destino, esses dois nomes estão ligados de maneira tão estreita e paradoxal, que é difícil desvincular uma da outra e não pensar que ambas tiveram praticamente a mesma inspiração, ou seja, o ambiente místico e supersticioso da época em que os dois viveram.
À luz de uma análise fática e racional, hoje dificilmente se escaparia de concluir que Joana D!arc era uma menina esquizofrênica que sofreu um grande trauma em sua infância, provavelmente em consequência de algum episódio da Guerra dos Cem Anos. Afinal, sua aldeia, a pequena Donremy, estava na rota dos combates travados entre franceses e ingleses pela posse da principal cidade da região, a fortificada Órleans. Não é impossível que muitas barbaridades tenham sido praticadas ali pelos soldados ingleses. Em suas incursões pelo território francês, as tropas inglesas queimavam, saqueavam, matavam e cometiam todo tipo de brutalidades com as populações das aldeias invadidas.
Isso era praxe em todas as guerras medievais. Não é difícil imaginar que alguma pessoa da família de Joana Darc, ou até ela própria, tivesse sido vítima de tais agressões. Daí o ódio que ela votava aos invasores ingleses e a importância simbólica que se deu à sua qualidade de virgem, qualidade essa que foi a principal marca da sua virtude.
Joana, de certo, acreditava na sua missão messiânica, mas as autoridades francesas, que a usaram para a realização das suas ambições de poder, certamente só viram nela um grande trunfo político. E souberam usá-la muito bem. Isso está patente no comportamento dos nobres franceses, pois enquanto Joana, julgada e condenada como bruxa e feiticeira, foi morta na fogueira, Gilles de Rais, que foi um dos seus mais competentes generais e um amigo dos mais leais, mesmo sendo réu confesso de heresia, bruxaria, assassinatos e outras barbaridades rituais, que foram muito além da romântica esquizofrenia da donzela de Orleans, acabou escapando da fogueira e foi até perdoado pela Igreja, embora os tribunais civis o tenham condenado à forca.
Gilles de Rais foi o maior serial killer que se tem notícia na história da humanidade. Conhecido como o Senhor das Trevas, esse estranho cavaleiro francês nasceu em 1404 em Machecoul, uma aldeia próxima à fronteira com a Bretanha. Seus pais se chamavam Guy de Montmorency-Laval e Marie de Craon. Feito cavaleiro aos quatorze anos de idade, aos quinze ele já havia feito sua primeira vítima na pessoa de um amigo de infância, a quem ele convidara para um duelo simulado, onde ele pretendia demonstrar as habilidades que havia adquirido em seus treinamentos de cavaleiro. Era para ser um duelo de brincadeira, mas Gilles o levou a sério, matando o colega com uma estocada certeira de sua espada.
Desde criança, entretanto, ele já mostrara a sua imensa perversidade matando e esquartejando animais. Dizem que ele fazia isso com uma fúria e uma frieza quase ritualística, e já nessa época demonstrava possuir um espírito místico e uma personalidade sinistra e demoníaca, que assustava os seus parentes e amigos.
Agressivo por natureza e perverso por instinto, logo foi atraído pela carreira militar e entrou para o exército do pretendente ao trono francês, o Delfim Charles, que se tornou, mais tarde, Charles VII, rei da França, coroado por obra e graça da heroína Joana D!arc. Sua posição como general das tropas francesas o levou a conhecer a jovem donzela guerreira, com quem estabeleceu uma sólida e fiel amizade que durou até a prisão e a morte dela na fogueira.
Gilles foi um dos principais comandantes das tropas francesas que lutaram ao lado de Joana, e consta que ele a idolatrava como uma verdadeira santa. A prisão e morte de Joana, provavelmente, foi um dos motivos de sua revolta contra a Igreja e a válvula de escape para suas práticas heréticas.
Na verdade, Gilles de Rais e Joana d’Arc tinham personalidades muito parecidas. Ambos eram místicos e fanáticos. Ambos acreditavam que uma orientação de ordem superior informava suas ações. Por isso lutavam com denodo, atacando os inimigos sem medo e sem piedade, fazendo das batalhas em que participavam, mais do que uma ação militar, uma missão verdadeiramente religiosa.
Joana d’Arc acreditava que Deus havia escolhido a ela para libertar a França do domínio inglês. Gilles de Rais acreditava que poderia conquistar um poder ilimitado e transcendental através de práticas ritualísticas que envolviam, principalmente, o derramamento de sangue humano.
Enquanto houve guerra e ele pode derramar o sangue dos seus inimigos no campo de batalha, Gilles de Rais aplicou nas ações militares toda a sua habilidade para matar. Com isso tornou-se um herói para os franceses e um respeitado soldado, temido pelos inimigos. Ganhou prestígio, fama e riqueza após as vitórias que fez de Joana d’Arc a grande heroína francesa. Por conta dessas vitórias Gilles de Rais se tornou um dos maiores barões de França.
Após a morte da sua grande líder e inspiradora, e a derrota que ela impôs aos ingleses, a paz entre os dois reinos foi selada durante algum tempo e Gilles se viu sem o seu principal esporte, que era a guerra. Casou-se, mas logo viu que esse tipo de vida não fazia o seu gênero. Informações sobre o seu caráter homossexual começaram a ser veiculadas. E também logo começaram a ser comentadas as estranhas práticas às quais ele se entregava, no segredo dos seus sinistros e misteriosos castelos de Tiffauges e Machecoul.
Na região da Bretanha, onde ficavam seus domínios, um grande e terrível mistério começou a preocupar os habitantes daquela localidade. Num período de oito anos, cerca de mil garotos, com idades variáveis entre sete e onze anos desapareceram sem deixar rastros. Isso ocorria com frequência naqueles tempos. Era fato corriqueiro crianças serem raptadas por ciganos e bandidos, para serem vendidas como escravos e outros fins não confessáveis, como sacrifícios rituais e orgias sexuais, muito comuns entre os devassos cortesãos daquela época.
Logo se espalhou pela região a notícia de que eram demônios que surgiam à noite e levavam os meninos. Outra versão dizia que era a própria Igreja que raptava os garotos e os trancafiava em conventos para serem transformados em padres, já que na época a Igreja passava por um momento de crise e ninguém queria ser membro do clero.
Todavia, em seu castelo, Gilles de Rais havia fundado uma estranha seita que cultuava todo tipo de magia e superstição que havia na época. Lá ele montou laboratórios de alquimia, onde praticantes dessa arte trabalhavam em busca da pedra filosofal, usando sangue humano como matéria prima; haviam também salões e locais preparados especialmente para bruxos e feiticeiras praticarem seus rituais e salas especialmente preparadas para ele e os sádicos membros da sua estranha seita executarem seus satânicos rituais.
Suas reuniões eram acompanhadas de verdadeiros banquetes orgíacos nos quais se praticavam a sodomia e os mais aberrantes comportamentos sexuais. Mas os momentos culminantes eram aqueles em que os meninos raptados pelos membros da estranha Confraria eram torturados, estuprados e assassinados no cumprimento de um estranho e satânico ritual, que segundo seus acusadores, tinha por objetivo obter a vida eterna.
No começo do ano de 1440 uma investigação feita por ordem da Igreja acabou descobrindo as atividades de Gilles de Rais e sua estranha seita. E logo ficou patente que o desaparecimento dos meninos da Bretanha tinha a ver com os macabros rituais que eram praticados em seus castelos. Com isso teve início um dos mais emblemáticos processos da história da luta do homem contra os males que assolam sua mente, nas épocas em que a escuridão e a ignorância se tornam dominantes.
Gilles de Rais, o principal acusado, era um homem que se dizia temente a Deus. Ostentava os títulos de primeiro barão da Bretanha, marechal de França, grande senhor feudal, companheiro de armas de Joana d’Arc, a maior heroína do povo francês, com quem compartilhou a fé e as vozes que a inspiravam.
Cometer crimes contra a fé foi exatamente a acusação que lhe foi feita. O libelo de acusação, redigido pelo Bispo de Nantes, relata pactos demoníacos, prática de sodomia com caráter sacrílego, violação de privilégios eclesiásticos, assassinatos rituais, no curso dos quais se contabilizavam mais de seiscentas vítimas, todas elas, crianças entre sete e onze anos de idade.
Gilles de Rais tinha, na época, trinta e quatro anos. Nas atas do processo que o condenou, o que mais impressiona são suas próprias confissões dos crimes que cometeu e os motivos pelos quais os cometia. Não os negou, nem às circunstâncias em que foram cometidos. “Eram lindas crianças,” disse ele. “Eu as estrangulava. Quando elas desfaleciam, praticava nelas o vício da sodomia. Quando estavam mortas, beijava nos lábios alguns dos rostos mais bonitos” confessou ele em delírio, como se estivesse em pleno transe.
Inquirido dos motivos pelos quais fazia coisas tão horrendas, respondeu calmamente: “Não procurava senão o mais puro e completo deleite carnal. O único sentimento capaz de levar um espírito ao que chamais de paraíso.”
“Por que razão”, prossegue ele em seu depoimento, “nesta hora em que já estou desligado de tudo quanto é terrestre, vos ocultaria que ao praticar sodomia, ao matar e reduzir a pó tantas belas crianças, não fiz mais do que procurar o êxtase que me davam os seus corpos quentes primeiro, depois gelados entre meus braços? Por que razão vos ocultaria eu que esse prazer se prolongava ainda mais quando, com as minhas próprias mãos, esquartejava, como animais no matadouro, aqueles corpos que acabara de amar? Como negar que sentir o odor daquela carne queimada na fogueira do sacrifício me lançava numa forma de desmaio, de prazer indizível, que se assemelhava ao ingresso no paraíso?”
Gilles de Rais foi condenado e excomungado no Tribunal da Inquisição, mas sendo um barão da corte francesa, escapou da fogueira. Esse tipo de sentença era praxe para todo condenado por heresia, bruxaria, satanismo e práticas afins, especialmente quando se tratava de pessoa de alta estirpe.
Mas Gilles de Rais não estava preocupado com isso. A única coisa que parecia incomodá-lo era a excomunhão. Não obstante o caráter perverso que tinha, e a monstruosidade de seus crimes, a idéia de que os praticava com espírito religioso o levava a justificar tudo que fazia.
Não temia a morte, mas tinha receio de perder o beneplácito das potências luciferinas que cultivava, porque, segundo confessou aos seus inquisidores, essa era também uma forma de cumprir os desígnios de Deus e honrar a sua amada Santa Madre Igreja. Pois assim como sua santa e dileta amiga Joana d!Arc, ele também ouvia suas vozes. As vozes de Joana a mandava matar ingleses para libertar a França. As de Gilles o incitava a sacrificar e sodomizar crianças para libertar suas almas. Dessa forma tudo se justificava. Tudo era feito em nome da fé.
Diferentemente de Joana, cuja condenação foi orquestrada por motivos puramente políticos, já que ela foi julgada justamente pelos ingleses, os inimigos a quem combateu, o sádico satanista e serial killer Gilles de Rais foi indultado pela Igreja após pedir perdão e confessar todos os seus crimes. O bispo de Nantes, presidente do Tribunal, fez então a clássica pergunta que o Tribunal da Inquisição fazia a todos os condenados por esse tipo de crime: “Queres agora, abominando teus erros, tuas evocações e teus outros crimes, que te fizeram sair da fé católica, ser reincorporado á Igreja, tua Mãe, entregando-te de novo a ela?”
Essas mesmas perguntas foram feitas a Jacques de Molay e seus companheiros templários cerca de um século e meio antes, antes que queimá-los na fogueira; fora feita também a Joana d!Arc, momentos antes de ser queimada. A que se saiba, nem os líderes templários nem Joana responderam afirmativamente, mas Gilles de Rais, sim.
E assim, caído de joelhos, o maior serial killler da História mal conseguia acreditar no que ouvia. Em razão de um simples “sim”, estava sendo absolvido pela Igreja. Seu espírito não iria sofrer as penas do inferno. Ele chora e suspira. E ante tais demonstrações de arrependimento, o tribunal eclesiástico decide readmiti-lo nas hostes católicas, retirando a acusação de heresia.
Com a mesma contrição e fervor com que praticara seus crimes, Gilles pede humildemente a anulação de sua excomunhão. Jean de Malestroit, o bispo de Nantes, presidente do tribunal, o absolve e o reintegra na congregação dos fiéis católicos, admitindo a sua participação os sacramentos. Dessa forma o trabalho do tribunal eclesiástico está encerrado e o espírito do Senhor das Trevas, como era chamado o perverso barão da Bretanha, estava em paz. “Vai em paz, Monsenhor de Rais”, diz o bispo. “Daqui pela frente, a Igreja nada mais pode fazer por ti nem contra ti. A decisão agora cabe ao braço secular”.
Mas isso, para Gilles, é o de menos. Morrer ele já sabe que irá. Deus, através da Igreja, perdoa, mas a sociedade não. A sociedade exige a sua vida por conta do sangue inocente das centenas de crianças que ele matou no curso das suas práticas satânicas. A Igreja pode fazer acordo com o Diabo para enganar Deus, mas a sociedade precisa ser implacável na defesa dos seus valores porque se trata da sua própria sobrevivência.
Do tribunal civil ele sabe que não escapará. Mas para ele isso pouco importa. Já conquistou o seu objetivo, que era tomar o céu de assalto. Daí que venha a morte na forca. O seu espírito ganhara a prerrogativa de viver eternamente. Assim, se Joana d'Arc era a emissária de Deus. Gilles, para contrabalançar, fez de si mesmo o próprio Diabo na terra.
Ele foi enforcado no final do ano de 1440. Não foram poucos os que defenderam as práticas de Gilles de Rais. Houve quem dissesse que as crianças que ele assassinou se tornaram anjos graças ao caráter sacrificial de suas mortes. Também não faltou quem cultuasse sua memória fazendo dele um verdadeiro santo.
Em 1793 sua tumba foi profanada e seus ossos foram roubados. Diz-se que nunca mais foram encontrados e se tornaram relíquia de uma determinada seita secreta. No lugar do seu túmulo, os admiradores do terrível mago das trevas ergueram um santuário, onde durante muito tempo mulheres grávidas costumavam peregrinar para orar pedindo uma gravidez tranquila e leite abundante. Esse santuário foi demolido por ordem da Igreja em meados do século XIX, mas consta que até os primeiros anos do século XX, no lugar onde ele se erguia ainda se cultuava a Virgem do Bom Parto e do Cria-Leite.
Isso mostra que a loucura humana não tem limites. Só nos resta mesmo contar com a benevolência de Deus e com o seu justo julgamento para que o equilíbrio da nossa razão, muitas vezes perdido em virtude da nossa própria ignorância e perfídia, seja mantido para herança e defesa das almas dos nossos descendentes.
Mostra também que, se for preciso, para salvaguarda dos interesses da hierarquia dominante, até o Diabo poderá ser julgado e absolvido pelo tribunal da consciência humana. Porque, no processo dialético que move o universo, não haverá bem se também não houver o mal.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 18/08/2019
Alterado em 21/08/2019