João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos



          Seu Garcia era o dono do único caminhão da aldeia. Um velho FNM meio desconjuntado que servia para tudo. Realizava mudanças, levava os doentes para o hospital da cidade mais próxima, transportava mercadorias para os dois empórios de secos e molhados da aldeia; aos domingos levava o time de futebol local para os jogos do campeonato varzeano da região que ele disputava, e pelo menos uma vez por ano fazia uma romaria para Aparecida do Norte, ocasião em que cerca de quarenta pessoas se aboletavam na carroceria do velho FNM, sentadas nas tábuas que eram instaladas nela á guisa de bancos. Naqueles tempos a policia rodoviária não implicava com essas coisas, e a romaria do “Seu  Garcia” era um dos acontecimentos mais esperados do ano. Todas as famílias preparavam os seus comes e bebes, os frangos com farofa, sucos e refrigerantes e lá ia aquele montão de gente, na maioria composta por senhoras piedosas da região, acompanhadas pelo pároco da aldeia, que ia na cabine, juntamente com o Seu Garcia e a mulher dele, Dona Ritinha, cantando rezas pela estrada, até o famoso santuário. Acabava sendo uma farra, além de um grande alívio para o espírito daquele povo.
O caminhão do Seu Garcia servia para tudo. Todo dia transportava as hortaliças produzidas na aldeia até o mercado da cidade grande mais próxima. Na volta trazia bujões de gás, ferramentas, roupas, e tudo mais que as lojinhas da aldeia, e as pessoas que lá moravam encomendavam. Até de rabecão funcionava. Não foram poucas as vezes que ele levou defuntos para enterrar no cemitério da aldeia e de outras cidades.

     Seu Garcia prosperava com seu velho caminhão. Estava até pensando em trocar o seu desengonçado FNM por um modelo Ford, ou Scania, mais novo. Não era um caminhoneiro, como algumas pessoas o chamavam. Não gostava do termo. Ele se dizia empresário de fretes. E não deixava de ser. Afinal era o único transportador da aldeia. 
     Um dia apareceu na casa do Seu Garcia um sujeito que ele nunca havia visto por aquelas bandas. De certo não era morador daquela aldeia, pois ele conhecia todo mundo ali e aquele sujeito lhe era completamente estranho. Tinha um rosto encovado e pálido, onde os olhos de um cristalino meio amarelados, que pareciam feitos de gema de ovo, lhe davam um ar sinistro e assustador. Vestia um terno preto e usava um chapéu de abas largas, da mesma cor, formando um conjunto que causava uma estranha e desagradável sensação de mal estar nas pessoas. Parecia um papa-defuntos, pois era assim que se chamavam, e se vestiam os agentes funerários naqueles tempos.
      Seu Garcia não gostou de cara do sujeito, porque além do aspecto sombrio que apresentava, o estranho ainda tinha um hálito nauseabundo que podia ser sentido a vários metros de distância.        Cheirava a cadáver, como se tivesse saído de um túmulo recentemente.
   E gostou menos ainda por causa do pedido que ele lhe fez.

   ─ Seu Garcia ─ pediu o estranho personagem ─, preciso que o senhor vá buscar uma mercadoria para mim na cidade.  
    Seu Garcia estranhou que o sujeito soubesse o seu nome. Afinal, ele não o conhecia. Mas logo concluiu que isso não tinha importância. De qualquer modo, ele era o único transportador da aldeia e o sujeito bem que podia ter perguntado o seu nome a qualquer morador. Ademais, ele era conhecido por toda aquela região, inclusive na cidade onde a tal mercadoria devia ser buscada.
    ─ Que mercadoria é essa? ─ Perguntou Seu Garcia, meio desconfiado e um tanto apreensivo, em face do aspecto do sujeito e do sentimento desagradável que ele lhe inspirava. 
    ─ É um caixão que eu encomendei na funerária ....─ disse o sujeito, com um sorriso medonho, onde uma fileira de dentes amarelos aumentavam a desagradável impressão que o próprio rosto, e aquele hálito pestilento já causavam. 
    ─ Quem morreu?─  perguntou Seu Garcia, meio apreensivo, e já bastante desconfiado em face da estranha figura daquele desconhecido. Afinal, ele conhecia todo mundo naquela aldeia e, ao que soubesse, ninguém tinha morrido por ali naquele dia.
     ─ Ninguém, até agora ─ disse o estranho, com um simulacro de sorriso, onde os dentes amarelados salientavam ainda mais a palidez marmórea daquele rosto estranho e aterrador. ─ Mas amanhã, com certeza vamos precisar dele ─ completou ele, tirando do bolso um papel com o endereço da funerária e um maço de notas, que entregou ao Seu Garcia.
      Seu Garcia não gostou nada do serviço que lhe estava sendo proposto. Mais não fosse a mórbida impressão que aquele sujeito lhe passava, a coisa toda não fazia muito sentido. Ele sabia que ninguém, naquela aldeia estava doente, e não havia previsão de nenhuma morte para aqueles dias, embora a morte, como bem dizia seu velho pai, não mandasse aviso. 
       Mas enfim, o dinheiro oferecido era bom. E os tempos não estavam para recusa de serviço. Seu Garcia contou o dinheiro, pegou o endereço da funerária na cidade, onde o caixão devia ser retirado e foi buscar o seu velho FNM. 
     
        Eram cerca de duas horas da aldeia até a cidade. Percurso que o Seu Garcia fazia todos os dias e conhecia muito bem. Ao que parecia, aquela sensação de mal estar, com relação áquele serviço, no fim se revelara ser apenas uma cisma boba. No fim das contas, era um frete como qualquer outro. Ele já transportara defuntos no seu caminhão, gente com doença terminal, que já morrera no caminho para o hospital, e em muitas outras oportunidades também já carregara outros caixões de defunto.
       Transportar um caixão era o de menos. 
O problema não era a mercadoria, mas sim o cliente que encomendara o serviço. "Sujeito sinistro", pensou Seu Garcia. Mas no fim, enquanto rodava, lentamente e com extremo cuidado pela empoeirada estradinha cheia de curvas que ligava a cidade á sua aldeia, nada de estranho havia acontecido. Pegara simplesmente o caixão na funerária, sem nenhum problema, e já estava no meio do caminho de volta. Logo entregaria a encomenda no endereço dado pelo estranho e pronto. Era um caixão bonito, com entalhes bem lavrados, de madeira boa e bem envernizado. Devia ser para algum sujeito bem aquinhoado. Seu Garcia passou, de relance,  a memória visual por todos os habitantes bem de vida da aldeia para ver se algum deles estaria em vias de ser o ocupante daquele esquife, mas não encontrou ninguém que estivesse naquela "bica".
"Talvez", concluiiu, com um arremedo de sorriso, "seja para ele mesmo. Com aquela cara de morto vivo, ele é o único que se encaixa no perfil", pensou.       
       Afinal, o cara já tinha mesmo cara de morto vivo. Certamente estava esperando a visita da dita cuja nos próximos dias e já estivesse se preparando. "Eu não faria uma coisa dessas" pensou Seu Garcia. "Prefiro que outras pessoas cuidem do meu funeral", concluiu. 

“Mas quando eu morrer, gostaria de ser enterrado em um caixão assim”, pensou Seu Garcia, com um sorriso meio zombeteiro. Afinal, de tudo aquilo ficaria apenas a satisfação de ter embolsado uma boa grana por aquele serviço. O mais bem pago que ele já realizara. 
 
     Foi em uma curva do caminho, já bem próximo da aldeia, que o acidente aconteceu. Uma vaca surgiu de repente no meio da estrada. Seu Garcia pisou no freio, mas não houve tempo nem espaço para parar ou se desviar. O velho FNM bateu em cheio na vaca, e na manobra que Seu Garcia tentou fazer para controlar o veículo, acabou tombando o caminhão, que rolou numa ribanceira de mais de cinquenta metros de profundidade. Junto ao corpo da vaca dilacerada, em meio á uma poça de sangue, ficou o caixão, que caíra da carroceria e ficara, intacto, na beira da estrada, como uma tétrica e única testemunha daquela tragédia, que causou a destruição do único transporte da aldeia e a morte do seu mais conhecido empresário.
       Seu Garcia foi enterrado no dia seguinte, naquele mesmo caixão que ele estava transportando.  As pessoas da aldeia até hoje ainda comentam o estranho fato de ele estar transportando aquele esquife justamente no dia do acidente. E estranharam ainda mais porque, dentro do envelope fechado que foi encontrado no porta-luvas do caminhão, havia uma nota fiscal em nome do Seu Garcia e o endereço da sua casa. Tudo indicava que ele próprio havia comprado o caixão.
       O caso se tornou ainda mais estranho porque o Seu Garcia era um homem ainda jovem, saudável e sempre se mostrara muito feliz e satisfeito com a vida. Ninguém, nem mesmo sua mulher e filhos jamais desconfiaram de algum motivo que o levasse a querer se matar. Nem que estivesse com alguma doença terminal que ele tivesse escondido da família.
      Ninguém tinha dúvda que o que aconteceu foi um acidente. Só que aquele caixão e aquela nota fiscal em seu nome constituíam um detalhe que nunca seria explicado. Porque ele teria comprado aquele esquife? Que mistério se escondia por trás desse fato?

       O incidente causou tanta especulação na aldeia, que ninguém notou, na hora do enterro, junto á cova em que o corpo do Seu Garcia estava sendo sepultado, um estranho e pálido personagem, vestido com um terno preto e um chapéu de abas largas da mesma cor, jogando três punhados de terra sobre o caixão que descia para o fundo da cova.  Ao mesmo tempo em que abria duas fileiras de dentes amarelados e exalava um hálito terrivelmente infecto, num sorriso sinistro e diabólico, ele enrolou o que parecia ser uma sombra de  pessoa, colocou-a debaixo do braço e desapareceu entre os túmulos.
 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 26/08/2019
Alterado em 27/08/2019


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras