O PRINCIPE DAS TREVAS- CONTO DE UM CONTO
Quando Bram Stocker publicou seu romance de horror, Drácula, em 1897, ele estava longe de pensar que o mito que criou atravessaria séculos, aterrorizando, comovendo e enriquecendo muitas pessoas como vem fazendo desde então. Desde então, amor e ódio, magia e terror, com tinturas de sangue, vêm dando sedimento à estórias e histórias fabulosas que assustam e encantam as pessoas em todo o mundo, enriquecendo escritores, atores, diretores de cinema e editores, que encontraram na saga do famoso vampiro da Transilvânia um rico filão.
Abraham "Bram" Stoker nasceu em Clontarf, Irlanda, em 8 de Novembro de 1847 e morreu em Londres, em 20 de Abril de 1912. Viveu toda a sua infância e juventude em Dublin e escreveu seu primeiro ensaio aos 16 anos.
Era uma pessoa profundamente atraída pelo misterioso e pelo sobrenatural, na mesma linha do seu conterrâneo Robert Louis Stevenson, autor do clássico conto “O Médico e o Monstro” (Dr. Jekil e Ms. Hyde). Admirador de Edgar Alan Poe, William Blake, Herbert G.Wells e outros, a maioria de seus temas sempre enfocou assuntos extraordinários, com a característica de levantar e discutir questões psicológicas. Essas questões, justamente naquela época, estavam em voga com o surgimento da psicanálise e a sua estreita relação com o simbolismo que habita o inconsciente coletivo da humanidade na forma de arquétipos, como bem enfocaram os estudos promovidos por Freud e principalmente Jung.
Drácula é uma história de ficção montada em cima de um personagem que se tornou arquetípico, já que ele simboliza o mal que muito dura (a imortalidade do vampiro), porque esse mal está no sangue da espécie humana; mal esse que só pode ser mitigado pelo amor, que também nunca acaba, porque se transmite de geração a geração (o amor de Vlad por sua dama Wilhelmina).
O personagem foi inspirado em uma figura histórica chamada Vlad Tepes, o Dracul (Dragão, Drac, em latim), que viveu entre 1431 a 1476. Ele era príncipe da Valáquia, território que no século XV, correspondia às terras que hoje pertencem à Romênia, conhecida como Transilvânia.
Coroado rei da Valáquia, com a ajuda dos turcos, ele tornou-se Vlad III. Sua coroação como rei não foi uma escolha muito fácil. Vlad era cruel e impiedoso. Tinha fama de praticante de bruxaria e adepto de satanismo. A Igreja Católica foi uma das principais opositoras da sua coroação, e consta que muitos padres foram assassinados em razão dessa oposição, o que teria colocado Vlad na condição de um amaldiçoado pela Igreja, excomungado e considerado como adorador do Diabo. Isso contribuiu muito para sua fama de vampiro, que foi brilhantemente aproveitada por Bram Stocker na composição do seu sinistro personagem.
Vlad ficou conhecido pela crueldade com que tratava os inimigos vencidos em batalha. Costumava pendurá-los em estacas, que lhes eram enfiadas pelo ânus, razão pela qual ele ficou conhecido como Vlad, o Empalador. Em meados do século XV (1453), os turcos otomanos haviam capturado Constantinopla e posto um fim no Império Bizantino. Depois de dominarem todos os países do Oriente Médio, que pertenciam ao antigo Império Romano do Oriente, os turcos se voltaram para o Ocidente. A passagem natural para atingir os territórios europeus era exatamente a Valáquia, território montanhoso e de difícil penetração, protegido pelos Montes Carpatos.
Os otomanos haviam abraçado a religião do Islã e queriam implantá-la por toda a Europa. A Valáquia estava no caminho deles. A Igreja Católica, a mais poderosas das entidades do mundo cristão, precisava deter o avanço turco. Nesse sentido, deixou de lado todas as reservas que tinha contra o rei Vlad e lhe prometeu todo o apoio para que ele combatesse e detivesse as tropas turcas nos Montes Carpatos. Foi o que Vlad fez. Abandonando seus antigos aliados turcos, moveu uma guerra impiedosa contra eles, e com isso ele impediu o avanço dos otomanos sobre a Europa. Virou um herói para o mundo cristão.
Mas tão logo a ameaça turca foi debelada, a Igreja voltou a abrir suas baterias contra o rei Vlad. Acusando-o sistematicamente de satanismo, heresia, crimes contra a religião e a humanidade, fez com que seu reinado se tornasse um império de lutas, traições e assassinatos. As diversas intrigas políticas, as intermináveis lutas dinásticas que envolviam os reinos e as famílias nobres da região acabaram por isolar Vlad, que segundo a tradição, acabou sendo assassinado por seus próprios soldados.
Dizem que sua esposa, Elizabeth, suicidou-se pulando da torre do castelo quando ele foi sitiado por tropas otomanas e dado como morto. Sendo uma suicida, o bispo local proibiu que fosse enterrada em terra consagrada. Em consequência, teria tido a sua cabeça decepada, como era costume na época se fazer com as pessoas que tiravam a própria vida. Vlad, que não havia morrido, mas apenas sido feito prisioneiro e solto depois de pagar um resgate, quando soube da história da morte da esposa, teria se insurgido contra a Igreja. Em decorrência dessa traição eclesiástica, Vlad teria renegado a fé cristã e se tornado adorador do Diabo, passando a praticar feitiçaria e bruxaria. Conta-se que em suas cerimônias de missa negra, ele sacrificava crianças e bebia o seu sangue. Vem desse comportamento a sua fama de vampiro. Mas o mais provável, porém, é que essa fama venha mesmo é do apelido herdado do pai, que era conhecido como Dracul, o Dragão. Na verdade, esse era o título do brasão de sua família. Seu pai era membro de uma Ordem de Cavalaria chamada “Ordem do Dragão”, cujo símbolo era esse mitológico animal. Vlad também teria pertencido á essa organização.
Bram Stocker aproveitou a interessante biografia do príncipe Vlad da Valáquia para escrever seu famoso romance . O “príncipe das trevas”, figura centenária que há mais de quatro séculos aterrorizava os povos da Europa Central, desde a publicação do romance de Bram Stocker passou a viver no imaginário popular do mundo inteiro, como sendo uma criatura sobrenatural, eterna, que se alimenta de sangue humano e é íntima de Satanás.
Vários filmes já foram feitos aproveitando esse mito. Ele virou herói, vilão, monstro, demônio, e até um curioso Drácula, reencarnação de Judas Iscariotes, já ocupou as telas dos cinemas e vem sendo constantemente reprisado na televisão, aproveitando a onda desencadeada pela série Crepúsculo, criada por Stephanie Meyer. Essa série reinventou o mito do vampiro, fazendo do antigo monstro de Bram Stocker um figura romântica e sedutora, que está mais para o bem do que para o mal.
Nessa série, o mito de Drácula tornou-se mais uma versão da velha dicotomia que desde os primórdios dos tempos habita na mente do ser humano: a eterna luta entre o bem e o mal, entre o feio e o bonito, simbolizado pela Bela e a Fera.
Bram Stocker foi um escritor da era vitoriana, época em que o sobrenatural era muito utilizado pelos escritores para lastrear suas histórias. Veja-se por exemplo, já citado, o clássico Dr. Jekil e Mister Hyde (O médico e o monstro), de RL Stevenson, publicado mais ou menos na mesma época. Esse conto trata do mesmo tema, aproveitando o interesse, então muito acentuado dos intelectuais da época, pela alquimia. Também o famoso romance de Mary Shelley, Frankenstein, pode ser incluído nesse rol.
Era um tempo de intensa busca espiritual. A maioria dos movimentos místicos, que ainda atraem muitas pessoas, nasceram nessa época. O Espiritismo, de Alan Kardec, o Teosofismo de Rudolph Steiner, a Teosofia de Madame Blavatsky, etc. A maioria das Lojas Maçônicas de orientação espiritualista também foram fundadas nessa época, aproveitando esse contexto.
Bram Stocker era membro da famosa sociedade “Golden Dawn”, uma espécie de Loja Maçônica mística, de orientação rosa-cruz, fundada na Inglaterra em 1887, que congregava grandes nomes da literatura e da arte mundial, tais como o poeta Yeats, o filósofo Bernard Shaw, a escritora Winn Westcott, os autores S.L. Mathers, Bulwer Lytton, Aleister Crowley e outros, compreendendo, no total, 144 membros, número esse inspirado no Apocalipse de São João.
O mito do vampiro é um clássico exemplo do fantástico que influi no real. A saga dos vampiros do Crepúsculo tem rendido aos seus produtores e à jovem Stephanie Meyer um fabuloso império de dólares e fama. Muito mais que o príncipe Vlad conseguiu conquistar na sua estranha, misteriosa e sinistra vida de verdadeiro vampiro.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 05/09/2019
Alterado em 06/09/2019