João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos



           A sua última lembrança era a de estar escalando um muro e de repente alguma coisa queimar suas costas com uma violência tal que o impacto o atirou imediatamente para o outro lado do muro. Caíra com um baque surdo no chão e podia até ouvir o som do seu corpo batendo pesadamente na terra. Mas depois disso não sentira mais nada. Tudo era um vazio escuro e completamente informe, onde toda e qualquer informação sensível deixara de existir. Não conseguia se lembrar de nada que tivesse acontecido entre aquele momento em que seu corpo despencara de cima do muro e o instante em que viu naquela cama de hospital e aquela moça loura, bonita como um anjo, vestida de branco, enxugando o suor da sua testa e pensando suas feridas, com um carinho e uma dedicação de mãe extremosa.
Era estranho. Não se lembrava de nada que acontecera depois que caíra do outro lado do muro, mas se recordava bem do que acontecera antes. Lembrou-se que era um criminoso, um ladrão procurado, que tinha sido surpreendido assaltando um posto de gasolina e tivera que fugir com a polícia em seu encalço. Fora encurralado num beco sem saída que terminava num muro de cerca de dois metros e meio de altura. Tentara escalar o muro e já estava quase no topo dele quando ouviu o som de uma arma sendo detonada, e imediatamente após sentiu o impacto da bala queimando suas costas como se uma brasa tivesse sido encostada ali com extrema violência.  
 
       Deitado na cama daquele hospital (nunca vira antes um lugar tão limpo, tão imaculadamente branco) ele começou a rememorar sua vida. Vivia nas ruas desde os nove anos de idade. Sua mãe um dia o deixara numa das esquinas da cidade, num semáforo, e mandara que ele aproveitasse os intervalos para pedir uns trocados para as pessoas que passavam nos carros. E se ele voltasse de mãos vazias ia apanhar tanto que não teria mais vontade de aparecer em casa. Ele sabia que sua mãe cumpriria a ameaça, pois tudo que ela tinha lhe dado até o momento fora xingamentos e pancadas.
        Então aprendeu a se virar. Começou pedindo esmolas nos semáforos, mas logo evoluiu para flanelinha. Arranjou um balde, que enchia de água no rio Tietê, e um pano sujo, que ficava passando no párabrisa dos carros que paravam no semáforo. Percebeu logo que os motoristas preferiam pagar para que ele não passasse aquele pano imundo no vidro, riscando-o e sujando ainda mais, ao invés da pretensa limpeza que ele se propunha fazer. E então ele deixava que a água ficasse cada vez mais preta e o pano cada vez mais sujo. Pois bastava ele chegar perto do carro com aquele balde de água nauseabunda e aquela flanela pegajosa, que os caras iam logo tirando uns trocos do bolso para dar a ele. E assim ele ia ganhando a vida. Uma vida miserável, indigna e desgraçada, que ficava ainda mais insuportável à medida em que ia crescendo e vendo a prosperidade dos outros, em contraste com a miséria em que vivia.
      Do pai ele nem se lembrava direito. Ele não teria mais de cinco anos quando o sujeito sumiu da vida deles. Também não se importava com isso. As únicas lembranças que tinha do cara eram dos porres que ele tomava e dos palavrões que dizia. E dos sopapos que levava dele. Decididamente fora um alívio saber que aquele desgraçado nunca mais apareceria no barraco onde eles moravam. Mas isso também não resolveu nada porque a partir de então sua mãe tomou o lugar dele em tudo que havia de ruim. Aprendera todos os palavrões do pai, os comportamentos agressivos, o mau humor, e até o hálito infecto de pinga barata, ela adquirira. Parecia que todo dia ela bebia. Todo dia tomava um porre e descontava nele as agruras da miséria em que viviam.
      Aprendera a fumar maconha com dez anos e experimentara o crack com doze. Aos treze já era ladrão e com quinze, assassino. Desde os onze já não voltara mais para casa, e vivia na rua. Dormia em um velho prédio em ruínas ali pelos lados da Cracolândia e nunca mais voltara a ver sua mãe. Ela também não o procurara mais. Não sabia o que tinha sido feito dela e não se importava. Aliás, foi um alívio se livrar dela e ela dele.
      Seu primeiro delito havia sido um assalto praticado contra uma professora. A descuidada parara no semáforo com o vidro do carro aberto. Ele chegara de surpresa, encostara na cabeça dela uma chave  de fenda enferrujada e exigira que ela entregasse a bolsa que estava no banco da frente e o tocador de CDs removível. Depois disso andou atuando como trombadinha na Praça da Sé e adjacências, tomando carteiras e bolsas de velhas senhoras que saiam do metrô.
      O crime de morte fora praticado contra outro trombadinha que tentara tomar o seu ponto. A polícia não o incomodou por causa disso e ele verificou que ninguém estava muito preocupado com a vida de sujeitos como ele, e se ele não aborrecesse pessoas importantes, nem desse bandeira demais em locais públicos e bem frequentados, poderia viver daquele jeito durante muito tempo sem ser incomodado.
     Especializara-se em abordagens a motoristas nos semáforos e em assaltos à postos de gasolina. Mas um dia dera o azar de abordar um delegado de polícia num semáforo. Ele estava com a janela do carro aberta e ele o atacara com uma faca. Jamais imaginara que a vítima fosse reagir daquele modo. O cara saiu do carro rapidamente e lhe deu um tranco com a porta do carro, atirando-o no meio da rua. Em segundos estava em cima dele,  imobilizando-o completamente. 
     Fora sua primeira experiência com a FEBEM. Tinha dezesseis anos e ficou lá cerca de seis meses. Foi uma escola onde aprendeu muitos truques para burlar a polícia e praticar com mais segurança seus crimes. Compreendeu que a cadeia, na verdade, era uma escola onde se aprendia o ofício do crime, ao invés de ser um forma de punição e um centro de recuperação. Saiu da FEBEM muito mais escolado do que já era.
      Mas apesar de toda a experiência adquirida não pode deixar de cumprir pena na penitenciária estadual. Preso aos vinte e cinco anos após um assalto a um posto de gasolina, no qual acabou matando o dono, que reagiu ao assalto, ele foi julgado dois anos depois e pegou vinte e oito anos de pena. Cumpriu cerca de oito anos. Com mais os dois que ficara preso antes do julgamento ganhou o direito de progressão e menos de dois anos depois estava na rua.
 
       Fazer o que com a liberdade? Foi a primeira coisa que ele se perguntou. Durante o tempo em que ficara na prisão chegou a freqüentar os cultos de uma seita evangélica, na qual aprendeu os fundamentos da religião cristã e ficou sabendo que a vida do homem sobre a terra é uma espécie de provação na qual as almas concorrem para obter um grau de mérito que lhes permite sobreviver numa esfera de existência superior em determinadas condições. E conforme for o grau do mérito a sua alma adquire o direito de viver de novo em outro corpo.  
      Viver de forma virtuosa na terra era garantia de uma sobrevivência digna no céu e de uma reencarnação em melhores condições a cada vez que isso acontecia.  Ficou preocupado, pois se fosse assim mesmo, pensava ele, seu passivo estaria bem grande e talvez toda sua vida restante não fosse suficiente para igualar essa contabilidade. 
      Mas saíra da prisão disposto, pelo menos, a diminuir esse passivo. Porém, como fazer isso? Ninguém lhe dava trabalho digno. E ele nunca trabalhara. Fizera alguns cursos profissionalizantes no presídio. Aprendera, por exemplo, a fazer instalações elétricas domiciliares, alguns rudimentos de marcenaria, um pouco de construção civil. Mas quando ele se apresentava como candidato para uma vaga, em uma empresa, ou uma construção, sua carteira de trabalho vazia de experiências e seu passado de presidiário logo o eliminavam de pronto. E quem se arriscaria a admitir, dentro da sua casa, um egresso de penitenciária, para fazer concertos domiciliares?
       Foi assim que, seis meses depois de ser posto em liberdade, ele estava de volta ao crime. Escolhera aquele posto de gasolina porque era uma das empresas que o recusara como funcionário. Ele sabia que fora a discriminação que o alijara da vaga, pois ela ainda não havia sido preenchida. 
       Mas desta vez se dera realmente mal. Talvez estivesse destreinado também para esse tipo de operação. Fora lento na ação e descuidado na preparação. Não estudara devidamente as rotas de fuga e fora encurralado pela polícia naquele beco sem saída, em frente daquele muro que ele não conseguira pular a tempo.
 
        Já fazia um bom tempo que ele estava naquele hospital. Não tinha como precisar o quanto, por que não sabia quando tinha sido levado para lá nem que dia era aquele. Não havia calendários ali. Estranhou a liberdade que lhe davam para andar pelo prédio. Não havia guardas em sua porta, e todos os médicos e enfermeiras que o visitavam atendiam todos os seus pedidos sem contra argumentar. Manifestara o desejo de fumar e tomar cerveja e imediatamente lhe trouxeram um maço de Malboro e um balde de gelo com seis garrafas de Heineken. Teve desejo de comer feijoada e foi logo atendido. Até seus desejos mais íntimos, que ele não tinha coragem de manifestar, pareciam ser adivinhados e eram imediatamente atendidos. Inclusive seus apetites sexuais eram prontamente atendidos por uma linda enfermeira que parecia conhecer todas as suas preferências.
       Era fantástico aquilo. Ele nunca imaginara que pudesse haver no mundo um lugar como aquele onde todos os desejos de um homem eram prontamente atendidos. Ele não precisava fazer absolutamente nada para isso. Bastava desejar e pronto. Era como se ele tivesse, de repente, sido posto numa daquelas fábulas das Mil e Uma Noites, em que um gênio era colocado à sua disposição, pronto para atender a todos os seus desejos. 
      E assim ele continuou a viver ali. O tempo passou, ele conheceu outros internos e logo percebeu que aquilo não era um hospital. Era uma espécie de colônia penal. Mas era uma colônia diferente, onde tudo estava à sua disposição e bastava apenas desejar para ser atendido. E ele não estava só ali. Havia centenas de pessoas como ele, cujas histórias de vida eram semelhantes, alguns até com históricos muito mais escabrosos do que o dele.
      Que lugar era aquele afinal? Uma colônia penal onde o governo estaria fazendo alguma experiência pedagógica de recuperação de criminosos? Ele se lembrou de um filme que assistira na cadeia. Sabia que o filme fora passado com segundas intenções. O filme era os Miseráveis, baseado no romance de Victor Hugo, onde o herói era um presidiário que alcançava a redenção depois de ser beneficiado por um ato de bondade de um padre que ele havia roubado. O filme tinha a intenção de mostrar aos presidiários que nem tudo é maldade no mundo. Que existe a bondade sem segundas intenções. Então talvez fosse isso: o governo estaria pagando o mal que eles haviam feito com o bem. Estava aplicando o preceito de Cristo; estava dando a outra face. Estava mostrando como poderia ser o paraíso, para que ele desejasse ardentemente conquistar o direito de viver para sempre nele. Sim, era uma estratégia pedagógica interessante. 
 
       Mas com passar do tempo ele percebeu que ela parecia não estar funcionando. Porque depois de algum tempo vivendo naquele paraíso, ele estava se sentindo terrivelmente entediado. Era um saco viver num lugar onde não se precisava fazer nada para ter tudo. O tédio começou a envolvê-lo. Tudo que ele gostava antes começou a desagradá-lo. Nada mais parecia dar-lhe prazer.
E não era só com ele que isso estava acontecendo. Todas as pessoas com quem ele conversava não demonstravam qualquer sinal de felicidade em seus rostos nem confessavam qualquer alegria por estar ali. Alguns estavam inclusive extremamente infelizes e já tinham perdido qualquer esperança de, um dia, reencontrar a alegria de viver.
      Um dia ele topou com o mais antigo habitante daquela colônia e perguntou-lhe porque não tinha ainda ido embora dali, já que ele se sentia tão infeliz por estar naquele lugar. Afinal, ninguém era obrigado a ficar ali, nem havia guardas para impedir que alguém saísse.
      − Nós não podemos sair daqui− disse o homem.
      − Porque não? Não há muros, não há guardas, não há qualquer tipo de vigilância ou impedimento para que a gente sair daqui − disse ele.
      − Você ainda não entendeu rapaz, disse o homem, com um arremedo sarcástico de sorriso. − Fora daqui não existe mais nada para nós. Não há nenhum lugar onde possamos ir. Aqui é o lugar onde viveremos a eternidade. Eu já nem lembro quando fui encerrado aqui, só sei que foi no início do tempo. Rebelei-me contra o autor de todas as coisas e ele me mandou para cá.  Aqui são encerradas as almas que não tem mais direito à nenhuma oportunidade de vida. Aqueles que morreram a sua última morte e já foram julgados irrecuperáveis para o processo de construção do universo. Nossa pena é nada precisar fazer porque é a necessidade de fazer alguma coisa que leva uma alma a desejar viver.
 
       Foi então que ele se lembrou. Rápido como um relâmpago que fulgura na noite escura e desaparece sem deixar rastro, todas as encarnações vividas e todo o processo cármico à que a sua alma fora submetida ao longo do tempo se desenrolou à sua frente. Sentiu a dor de desencarnar e a sensação jubilosa de reencarnar. Sentiu o acúmulo do carma ruim que foi aderindo à sua alma à medida que ia experimentando suas vidas, como crostas de lama que ele não conseguia lavar nas encarnações seguintes.
      E por fim veio aquela imagem. O fulgor de uma arma de fogo iluminando a noite escura. O som abafado de um tiro. A queimação nas costas. A queda do outro lado do muro. A escuridão indevassável que se apossara da sua mente. O nada absoluto.
     −Entendi− disse ele, finalmente, depois de um prolongado silêncio. − Eu morri. E aqui estamos todos mortos. E não vamos ter outra oportunidade de consertar os nossos erros.
     − Até que enfim você entendeu – disse o outro, balançando a cabeça.
     −Mas tem uma coisa com a qual eu ainda não atinei. Se todos aqui temos histórias de vida mais ou menos iguais, nós não deveríamos estar no outro lugar. Aquele onde os pecados são pagos com o eterno sofrimento? − perguntou ele.
    −Mas aqui é esse lugar – respondeu o outro.
    − Não entendi – respondeu ele.
    − Existe maior sofrimento do que sentir-se inútil? Do que ter tudo sem precisar fazer nada? Do que viver sem sentir-se vivo?
Assim disse o outro ao estupefato ladrão e assassino. Depois, com uma gargalhada diabólica ele se transformou numa nuvem de fumaça e desapareceu, deixando no ar um cheiro insuportável de enxofre...
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 05/01/2020
Alterado em 08/01/2020


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras