QUEM QUISER RENCONTRAR
O CAMINHO DA ESPERANÇA
VAI TER QUE PROCURAR
NOS OLHOS DE UMA CRIANÇA.
ESCOTOMA
Existem momentos na vida em que algumas áreas do nosso campo visual ficam cobertas por uma espécie de mancha negra e certas coisas que estão diante nosso nariz deixam de ser vistas. Essas manchas são chamadas “escotomas”. Todos os mamíferos têm determinados “pontos cegos” em seu campo visual. São anomalias da retina ou problemas que acontecem em razão de algum problema com o nervo ótico. Alguns escotomas são psicológicos. Em psicologia, ele provoca uma falha de percepção que nos acomete quando somos submetidos a estados estressantes. É como uma mancha que se interpõe no nosso sistema visual e nos impede de ver o que está na frente dos nossos olhos. Aconteceu comigo outro dia. Entrei correndo em casa em joguei a chave do carro em cima da mesa da cozinha. Tinha que sair imediatamente para cuidar de outro assunto, e já estava atrasado. Mas cadê a danada da chave? Revirei a casa inteira à procura dela e nada. Já estava ficando desesperado. Aí meu neto de oito anos me disse: “ Não são essas que estão em cima da mesa?” Eu estava olhando justamente para a dita mesa. “Puxa vida vô,” disse o danadinho. “Se fosse uma cobra ...”
Escotomas psicológicos também causam lapsos de memória. Nunca lhe ocorreu esquecer alguma coisa que está ali, na sua cabeça, mas você não consegue lembrar? Algo assim como os óculos que estão na sua cabeça e você fica procurando pela casa toda?
Uma coisa puxa a outra. Comecei a pensar que o mundo em que vivemos é um verdadeiro caleidoscópio, que muda de cor e forma a todo instante. Se não aprendermos a ver essas mudanças, e mais que isso, a senti-las, ficaremos como aquele personagem do João Cabral de Melo Neto, em Morte e Vida Severina, que em dado momento se sentiu um homem acompanhando o próprio enterro.
A mídia faz isso com a gente. Quando ela fareja algum assunto que pode dar manchetes e matérias de grande repercussão, fica martelando aquele assunto com tal intermitência que a gente não consegue ouvir nem ver outra coisa. O nosso campo de acuidade mental se reduz a um território de interesses tão pequeno que as demais coisas passam despercebidas.
É o que está acontecendo agora. A pandemia do covit 19 tomou conta do noticiário de uma forma tão violenta, que tudo o mais parece sem importância. A gente abre os jornais se perguntando: quantas pessoas morreram hoje?
O meu neto me ensinou a limpar o escotoma psicológico que a mídia estava colocando na minha mente. Um dia eu estava vendo o jornal da noite na TV quando ele entrou no meu quarto e me perguntou:
“Vô, o senhor não cansa de ver as mesmas notícias todos os dias?”
“Como assim, campeão?”
“Ah! você já viu isso no jornal da manhã, no jornal da tarde e Jornal Nacional”.
“É mesmo, né?”, foi a única coisa que eu consegui responder.
Quanto mais olhamos para o escuro, mais escuro e denso se torna o espaço que nos parece escuro. O meu neto quebrou um padrão que é comum ao nosso sistema neurológico. A informação age em nosso cérebro como um produto entorpecente. Quanto mais dela você tem mais ele tende a exigir. Foi então que desliguei a televisão e comecei a ler um livro que estava na cabeceira da minha cama, esperando, já há bastante tempo, que eu voltasse os olhos para ele e começasse a lê-lo. Não sei se isso tem a ver, mas acordei naquele dia em excelente estado de humor. Lembro-me até que fiz um arroz de carreteiro para o almoço.
“Em verdade, em verdade vos digo, que se não vos tornardes crianças de novo, não entrareis no reino dos céus.”
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 01/04/2020
Alterado em 01/04/2020