O DESPERTAR DE ZARATUSTRA
Zaratustra saiu da caverna na qual havia se enclausurado depois de ter cometido o seu último pecado. Esse pecado, segundo compreendeu depois de levar sua mensagem aos homens, foi ter acreditado no seu próprio poder. Um poder, que segundo ele, acordaria a humanidade da letargia que os valores de uma civilização domada por um conjunto de valores falsos e castradores havia forjado. Ele havia anunciado uma nova humanidade, cujo novo modelo seria o super-homem. Esse novo homem, despido da carapaça aviltante do conformismo e do medo – carapaça a qual os mestres da covardia deram o nome de pecado – venceria o nihilismo da vida vazia e mesquinha que o homem ocidental arquitetara para si mesmo. Com a sua doutrina o homem deixaria de ser escravo de um deus morto para buscar a verdadeira liberdade que só a força e a inteligência podem conquistar.
Sim, pois Zaratustra havia descoberto na solidão das suas meditações que o homem era um equilibrista tentando atravessar o espaço entre duas torres, andando sobre uma corda bamba, tendo uma vara nas mãos para sustentar-se no seu equilibrio. E a certo momento da sua travessia, surge um palhaço que salta por cima dele e o derruba inapelavelmente, para a morte. E que de nada valia a ética, a bondade, a virtude a crença em um céu ou um inferno, pois que no meio dessa travessia, sempre haveria um palhaço a rir das humanas crenças e de todas as ações virtuosas que ele fazia para dar um sentido e um sabor ao vazio da sua vida estúpida e insossa. Zaratustra havia descoberto que o verdadeiro sentido da vida é a própria superação da forma e do conteúdo da própria vida que se vive para projetar-se em uma forma e um conteúdo superior. Pois que a vida tinha como objetivo sempre a construção de um modelo melhor. Por isso ele tentou ensinar ao homem como superar a si próprio e construir o super-homem.
“O homem não é um alvo, mas uma seta”, disse ele a quem o quis escutar. E então ele se propôs a enterrar o cadáver do homem que caiu da corda. E ao fazê-lo Zaratustra pensou estar enterrando o último homem. Mas ao fazê-lo descobriu também que sua doutrina não podia ser ensinada a todos os homens, mas apenas a alguns. Pois só aquele que tem fome depois de comer continua a procurar alimento. A massa indistinta dos seres humanos contenta-se com uma ração diária, e apenas quando vem a fome novamente ela sai para procurar alimento. Quem acredita que já sabe perde a vontade de aprender, da mesma forma que quem matou sua fome diária perde a vontade de comer. Aos homens havia sido ensinado que a frugalidade era virtude: “basta a cada dia o seu próprio mal”, essa era a lição que lhes havia sido ensinada. E Zaratustra desprezava o conformado e o homem saciado porque a saciedade e a conformidade eram a raiz da impotência. E que a bem aventurança da humildade era um caixão em vida no qual o homem covarde se escondia com medo de enfrentar os seus próprios demônios e assumir o leme do seu destino. Então concluiu que ele não devia falar à multidão, mas sim apenas a aqueles que tivessem coragem para segui-lo. Ele não seria o pastor de um rebanho, mas sim aquele que separaria do rebanho as ovelhas capazes de gerar uma raça mais forte. Separaria do rebanho de mortos aqueles que ainda estavam vivos. Porque o criador não faz parte do rebanho, mas sim, ele se serve do rebanho para realizar os seus propósitos. O propósito do criador não é o propósito do rebanho. Aliás, para que serve o rebanho senão para servir ao propósito do criador? Não seria uma sátira dolorosa e horrenda um rebanho que se revolta contra o propósito do seu criador? Pois assim foi ensinado aos homens. Que a criatura havia se voltado contra o seu senhor e tomado um caminho diverso daquele por ele pretendido. E para resgatar o rebanho, o criador sacrificara a sua melhor ovelha. Que poderia advir dessa fábula insidiosa senão covardia e conformidade lastimosa?
Zaratustra via os homens como um rebanho seguindo um pastor. Uma visão conforme e lastimável, que os confinava ao mais abjeto dos redis: o confinamento do abate. E foi nesse instante que Zaratustra imaginou a fábula do leão e da raposa.
A RAPOSA E O LEÃO
Um leão apaixonou-se por uma jovem raposa e decidiu que fosse o que fosse, ia casar-se com ela. Enfrentando a oposição da sua própria espécie e a desconfiança de todos os animais da floresta, foi até a toca da raposa para pedir a mão dela em casamento.
O pai da jovem era um velho raposão muito esperto. Desconfiou logo das intenções do leão.
― Quem garante que você não está querendo se casar com a minha filha somente para transformá-la num bom jantar? ― perguntou ele ao leão.
― Pode pedir a garantia que quiser ― disse o leão ― que eu a darei.
O velho raposo pensou por alguns minutos e por fim disse:
― Ah é? Eis então o que eu quero. Arranque todos os seus dentes e as suas garras e traga-as para mim. Se você for capaz de fazer isso, eu deixo você se casar com a minha filha.
Dito e feito. O leão foi a um dentista e com grande sofrimento mandou arrancar todos os dentes e as garras. Banguela, com as patas sangrando, inofensivo, insultado pelos seus companheiros e debochado por todos os animais da floresta, mas com a maior alegria no coração, lá foi ele entregar seus perigosos dentes e suas mortíferas garras ao velho raposão.
― Aqui estão os meus dentes e as minhas garras. Fiz o que me pediu como prova do meu amor por sua filha. Está satisfeito agora? Quando será a cerimônia do casamento? ―, perguntou o leão.
― Nunca ―, respondeu o velho raposão.
―Mas como? ― Choramingou o leão. ―Não fiz o que o senhor pediu? Sou agora um leão inofensivo e desdentado. Não posso mais machucar ninguém. Fiz tudo por amor à sua filha.
―Azar seu ― disse o velho raposão. ― Agora você é só um leão banguela e sem garras. Não pode mais caçar. Como vai sustentar uma família? Como vai defendê-la dos perigos se nem garras tem? Um leão sem dentes e sem garras não é mais um leão. É uma aberração. Nessas condições, você é um sujeito sem identidade própria, e alguém assim não pode ser um bom marido para ninguém. Vá embora e não me aborreça mais.
― Isso é uma tremenda injustiça ― reclamou o leão. ― Eu fiz o que fiz por amor. E foi o senhor que pediu.
― Esse é o problema ―, disse o raposão. Você deveria saber que o verdadeiro amor não pede a ninguém que renuncie a si mesmo por causa dele. Ele é elemento que integra, mas nunca desintegra. Ele soma, mas não diminui. O amor poderia fazer um leão mais uma raposa, mas do jeito que você está agora vocês seriam uma raposa menos um leão. Não é de casais assim que a natureza precisa. A natureza quer reprodutores sadios que produzam crias fortes e sempre melhores que as anteriores.
E assim o leão se foi, triste, cabisbaixo e derrotado.
(Continua)
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 28/09/2020
Alterado em 30/09/2020