II - AS QUATRO DIREÇÕES
Zaratustra leu e releu a fábula que havia escrito sobre o leão que quis casar-se com a raposa e achou-a boa. Combinava com o que havia ensinado até então. Lamentou que os homens vivessem na busca de uma igualdade enganosa, que nem na própria natureza existia. “Heterogênea é a natureza porque ela sobrevive na diversidade. Mas homogênea tem que ser a espécie porque ela só evolui na especificidade”, disse para si mesmo.
Após meditar mais um pouco sobre o que havia escrito, Zaratustra suspirou fundo e concluiu: “de fato entendo agora porque o homem passou a andar sobre duas pernas e o seu corpo tornou-se ereto. É que a dignidade não anda nas quatro patas, e os olhos da virilidade não se dirigem ao chão, mas ao mais alto dos céus. Bom que o homem tenha passado por essa transformação. Senão ainda seria um símio procurando o escuro das cavernas para dormir e a copa das árvores para defender-se dos perigos que o rondavam. De fato, basta, às vezes, um único gesto de rebeldia para quebrar a conformidade lastimosa de um padrão. Erguer os ombros, estufar o peito, olhar para a frente e para cima, eis o que fez o macaco transformar-se em homem. E eis o que fará o homem superar o homem.”
Então Zaratustra contemplou o belo crepúsculo que o sol pintava no horizonte. Respirou fundo, inspirando e expirando compassadamente, pensando no ar que entrava e saia dos seus pulmões. A cada respiração sentia-se mais forte no corpo e mais tranquilo na mente. O sol começava a desaparecer atrás de uma montanha e o seu disco parecia uma coroa de fogo que expelia raios em todas as direções.
De repente, um torpor tomou conta dos seus nervos e sua mente foi invadida por um turbilhão de imagens desconexas, intraduzíveis e incompreensíveis, que ele não conseguia afastar. Durou apenas uma fração de segundo, mas foi como um raio que caiu sobre a cabeça de Zaratustra e deixou na sua mente a impressão de um quadro tão estranho quanto revelador, em cujas imagens ele sabia conter uma sabedoria de ordem superior, mas que para a sua pobre capacidade de linguagem ainda era impossível de traduzir.
“De fato” pensou Zaratustra, “eis uma visão que a minha mente só conseguiria descrever em parábolas. E estas, se eu o fizesse, ninguém as entenderia. Pois senti um vento precursor de tempestades chegar do norte, trazendo uma grande nuvem afogueada que ficou a revolver-se no céu; e no resplendor que se formou ao redor dela, vi sair do meio do fogo algo que parecia um metal brilhante, escamoso como uma salamandra.
E do meio dessa nuvem surgiu imagens de quatro seres cuja aparência se assemelhava a criaturas humanas. Mas cada um tinha quatro rostos, como também quatro asas.
Suas pernas ficavam todas do lado direito e a planta de seus pés era como patas de um bezerro. E elas brilhavam como se feitas de bronze polido.
A forma dos rostos era como a de um homem; mas à direita, os quatro seres tinham rosto de leão; à esquerda, pareciam um boi; mas também se assemelham à rostos de águia.”
E Zaratustra viu que todos andavam para a frente; para onde o espírito os conduzia e não se viravam para lado algum enquanto se moviam.
O aspecto desses seres era como o carvão em brasa, e eles brilhavam como tochas acesas na escuridão. E delas saiam fogos resplandecentes que eram trocados entre eles como se fossem relâmpagos que uns emitiam para os outros.
Zaratustra percebeu também que eles ziguezagueavam entre si à semelhança de relâmpagos; e ao lado de cada um deles havia uma roda brilhante, como se fossem feitas de metal polido; as quatro rodas tinham a mesma aparência, e era como se uma estivesse dentro da outra. Elas se movimentavam nas quatro direções simultaneamente e não se viravam quando se moviam. Seus aros eram altos e ao redor delas havia uma multidão de olhos..
As rodas se movimentavam à medida que os seres se moviam, acompanhando seus movimentos para o norte, sul, leste e oeste. Elevando-se eles, também elas se elevavam. Iam para onde o espírito queria ir, pois era o espírito que os impelia; e as rodas os acompanhavam, porque nelas havia o espírito de todos os seres viventes.
Sobre as cabeças dos seres havia algo semelhante ao firmamento, como um cristal brilhante que metia medo.
Por debaixo do firmamento, estavam estendidas as suas asas, a de um em direção à de outro; cada um tinha outras duas asas com que cobria o corpo de um e de outro, lado a lado.
Zaratustra ouviu o barulho das suas asas, que soava como o rugido de muitas águas, ou como o tropel de um exército em marcha.
E Zaratustra pensou: “Eis que de fato essa é uma visão que só a razão do espírito pode compreender. Não consigo atinar com uma explicação lógica para ela. Mas ela me fala ao coração mais do que qualquer discurso que algum sábio, algum dia já pronunciou. Vou conservá-la na memória. Quem sabe algum dia a sua razão me seja revelada. Ou então, Zaratustra, que não acredita em deuses, porque nunca foi apresentado a nenhum deles, talvez tenha sido contemplado com uma de suas manifestações.Quando Zaratustra a compreender, quiça ele possa, novamente, acreditar que existe algo além do homem e da sua necessidade de evoluir.”
E foi então que Zaratustra escreveu a oração dos quatro pontos e das quatro direções.
A ORAÇÃO DAS QUATRO DIREÇÕES
Ó Grande Espírito do Norte,
Espírito Invisível do Ar e dos Ventos frescos e gelados;
Ó vasto e iluminado Avô Céu,
Teu sopro vivo anima toda a existência.
Teu é o poder da luz e da força,
O Poder de ouvir os sons que vêm da alma,
Os sons que levam para longe os velhos padrões,
E trazem a mudança e o desafio,
O êxtase do movimento e da dança.
Nós te pedimos para que aceites estar alinhado conosco,
Para que tua força possa fluir através de nós,
E possa se expressar através de nós,
Para o bem de toda a terra
E todos os seres que nela vivem.
Ó Grande Espírito do Sul,
Protetor das terras férteis
E de todas as coisas verdes
Que nascem sobre a terra:
Avô Terra, Alma da Natureza,
Dá-nos teu poder de receptividade.
Vós sois aquele que nutre e suporta
As nobres árvores e a macia grama.
Fazeis crescer e medrar
As flores do campo e os frutos nos pomares.
Nós te oramos para pedir alinhamento contigo,
Para que assim tuas forças possam fluir através de nós
E ser expressas por nós
Para o bem deste planeta
E de todos os seres que nele vivem.
Ó Grande Espírito do Leste,
Radiância do Sol Nascente,
Espírito dos grandes começos.
Ó Grande Avô Fogo,
Grande fogo dos fogos - Sol,
Poder da vida – Energia, raio vital,
Poder de ver longe,
De imaginar com simplicidade,
Poder de purificar nossos sentidos,
Corações e mentes.
Nós te oramos para que possamos estar alinhados contigo,
Para que assim tuas forças possam fluir através de nós,
E ser expressas por nós,
Para o bem deste universo que formastes
E de todos os seres que nele vivem.
Ó Grande Espírito do Oeste,
Espírito das Grandes Águas,
Da chuva, rios, lagos e geleiras.
Ó Grande Avô Oceano,
Matriz profunda, útero da vida,
Poder de dissolver fronteiras,
De desatar as amarras,
Poder de provar e de sentir,
De limpar e de curar
Ó Grande e abençoada Escuridão da Paz!
Nós te oramos para que possamos estar alinhados contigo,
Para que assim tuas forças possam fluir através de nós,
E ser expressas por nós,
Para o bem deste mundo que criastes
E de todos os seres que nele vivem.
(continua)
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 29/09/2020
Alterado em 07/10/2020