João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


Não tinha memória de quando começara a sentir aquela compulsão por doces. Parecia ser um daqueles registros que estão perdidos para sempre no arquivo morto da inconsciência. Quando criança, disso ele se lembrava bem, não ligava muito para eles. Preferia salgadinhos. Sua mãe sempre brigava com ele por causa dessa preferência.
─Você só quer comer porcaria, n’é, menino?
E daí? Ele gostava, e ela, embora vivesse pegando no pé dele por causa disso, no fundo não ligava, pois deixava que ele comesse quanto salgadinho quisesse e até os comprava quando ia ao supermercado.
Sua mãe. Que falta ela lhe fazia. Toda vez que se lembrava dela não conseguia reprimir as duas lágrimas quentes que  brotavam dos seus olhos, mas que eram enxugadas rápido e sorrateiramente, para evitar que alguém as visse.Odiava que as pessoas o pegassem chorando. Detestava qualquer manifestação que pudesse ser taxada de sentimentalismo. Isso era coisa de boiola. Comportamento de babaca. Frescura de menina.
 
Meninas gostam de doces. Isso é o que ele dizia a si mesmo, amiúde, achando que elas compartilhavam desse seu desejo compulsivo por esse tipo de guloseima. Descobriu da pior forma que estava errado. Uma vez, na escola, achou de oferecer um brigadeiro para uma garota da sala. Já fazia algum tempo que ele estava de olho nela. Era uma menina bonita, de cabelos louros, bem lisos, e grandes olhos azuis. Sentava-se na terceira cadeira da primeira fila, no lado direito da sala, para quem olhava da mesa do professor. Ela pintava os contornos dos olhos como se eles estivessem dentro de uma moldura. A pintura realçava o azul dos olhos dela e os fazia parecer maiores do que realmente eram.
Gostava de ficar olhando para o rosto dela, mas ela nunca reparara no interesse dele. Ou fazia de conta que não reparava. Foi então que ele teve a intuição de que oferecer-lhe aquilo que ele mais gostava poderia ser uma estratégia inteligente para se aproximar dela. Nós sempre pensamos que aquilo que nos agrada deve agradar também aos outros. A sabedoria de que não existe um principio de identidade entre as preferências das pessoas nunca é a primeira descoberta que a gente faz na vida. E também não há escola nem professor que nos ensine isso, assim tão cedo. Nem faz parte da grade curricular de nenhum curso o ensinamento de que uma pessoa é uma pessoa e outra pessoa é outra pessoa. Que elas são diferentes porque é assim que o mundo funciona. Porque ele é um quebra cabeças, cujas peças precisam ter diferentes contornos para serem devidamente encaixadas umas nas outras. Pois é só assim os desenhos se completam.
 
Fora apenas um gesto amistoso e gentil, mas a tentativa resultou em desastre. A menina só faltou dar um tabefe na cara dele. Primeiro ela o olhou com tanto nojo que ele não sabia se ela estava vendo nele um sapo, uma lesma ou um monte de merda. Depois disse um palavrão que ele jamais pensaria ouvir daqueles lábios, que ele julgava tão encantadores. Sempre imaginara que daquela boquinha rosadas só poderia sair um repertório de palavras que denotassem ternura e encantamento. Nunca um projétil tão mortífero e destrutivo como aquele “tira essa merda da minha frente”, que os lábios carnudos da menina cuspiram para cima dele, como se aquela linda boquinha rubra, que ele comparava a bombinhas de cereja laqueadas em mel, tivesse se transformado, de repente, na boca do cano de uma arma fumegante que acabava de ser disparada à queima a roupa contra o seu coração, matando instantaneamente a sua autoestima.
 Sua mente consciente registrou esse acontecimento na forma de uma vigorosa rejeição por parte da espécie feminina. Sua mente inconsciente, no entanto, arquivara o fato com essa, e com outros pedaços de informação que diziam que ele era um monte de merda, asqueroso e putrefato, que só inspirava nojo. Ele acabara de fazer quinze anos. Não sabia que a nossa mente é programada mais pela meta mensagem contida na linguagem corporal do que por aquilo que a gente vê e escuta.  Porque, na maioria das vezes, não é o que a gente ouve, vê e sente na experiência vivida que molda o nosso comportamento, mas sim a mensagem não verbal que a acompanha. Ele não tinha consciência que as informações mais importantes que recebera da experiência com aquela garota estavam nas caretas de desgosto e desprezo que ela fez.  No rubor do rosto dela, que expressava uma raiva tão grande que mudou a coloração da pele rosada do rosto da menina, no tom ferino e mordaz da sua voz, na postura de repulsa e desagrado que ela apresentava em relação ao seu amistoso gesto de aproximação.
Até então não percebera o quanto era arrastado o r da pronúncia dela. Nem quanto aquele som o incomodava. Aquele “tira essa merrrrda da minha frente” ficou martelando na cabeça dele por vários dias. Era como se alguém lhe cutucasse,diuturnamente,uma ferida aberta no peito.
Durante muitos dias tivera sonhos decorrentes. Ás vezes sonhava com canos fumegantes de revólveres, canhões, bazucas e até bocas de vulcões, vomitando lava e fumaça com cheiro de merda, pelo azul de um céu imaculado e inocente. Outras vezes sonhava que andava por um jardim, cheio de flores lindas e perfumadas. De repente, pisava em algo mole e pastoso. Afundava até os joelhos. O cheiro nauseabundo não deixava dúvidas. Era aquilo. A merda.
Soube depois, por meio de um colega, que a tal menina sonhava ser modelo. Doce, para ela, era palavrão. Era ofensa das grossas. Mas para ele, foi o que bastou. Nunca mais teve coragem de se aproximar de outra garota. Em sua cabeça ele era uma caca que precisava ser retirada da frente dos outros.Mas se alguém lhe perguntasse sobre esse  assunto, ele diria, com muita convicção, que nem se lembrava mais disso. E era verdade. Não se lembrava mesmo, porque sua mente bloqueara a memória dessa experiência. Ela sempre faz isso para evitar que a gente sinta pela vida inteira o peso das nossas dores.
 
Mas o problema não era só esse. Ele tinha quase certeza que era isso mesmo que ele era. Ouvira a mesma coisa, várias vezes, do seu pai bêbado. “Você é uma bosta que não vale o que come”, era a locução favorita do velho, quando ele fazia algo que o aborrecia. Como o velho estava sempre bêbado e aborrecido com alguma coisa, isso era o que ele mais ouvia. Mas o pior era ouvir isso também dos colegas. Gostava de jogar futebol, mas nunca conseguiu ser bom de bola. Sempre sobrava para ele a posição de goleiro. Goleiro é sempre o lugar onde os “grossos" da turma são colocados, diziam os mais gozadores. Tudo bem, ele sabia que não era craque. Podia suportar muito bem isso e até fazer um papel bonito jogando no gol. Afinal, muitos goleiros fazem fama e fortuna defendendo o último portal. Muitos jogos são ganhos pelo goleiro. Esses eram pensamentos que o consolavam.
Mas ele não era um bom goleiro e então vinham os “frangos”. E com eles os xingamentos. “Você é mesmo uma bosta. Nem para goleiro serve”.
 
Cresceu com esse som desagradável na cabeça e esse cheiro nauseabundo no nariz. Nenhuma namorada, raros colegas. Com vinte e quatro anos de idade tornou-se um jovem afastado de tudo e principalmente, de todos. Enquanto a mãe era viva, ele ainda mantinha um elo de ligação suportável com o mundo. O pai, desprezível pudim de cachaça, havia morrido de cirrose hepática há uns três anos atrás. Ficou aliviado pelo fato de Deus ter se antecipado a ele, pois sua intenção era acabar com a vida daquele desgraçado na primeira oportunidade. Era uma mágoa tão grande que ele guardava daquele cara, que sua morte e principalmente a lembrança da agonia dolorosa que ele sofreu antes de morrer, lhe caíram como se ele tivesse tomado um remédio milagroso que aliviava repentinamente as dores de uma úlcera péptica que o consumia, toda vez que a presença daquele homem feria qualquer um dos seus sentidos.
Se ele era tímido, retraído, caladão, enquanto a mãe vivia, depois da morte dela – ocorrida dois anos após a morte do pai – tornou-se completamente arisco, selvagem, quase um ermitão.
Terminara, com muita dor e dificuldade, o ensino médio. Mais por conta da pressão materna do que por vontade própria. Por ele teria deixado a escola no mesmo dia em que aquela menina o transformara naquele “monte de merda ambulante”, que tinha que viver escondido para não provocar aqueles esgares de nojo e desprezo que ele pensava ver na linguagem não verbal das pessoas que se aproximavam dele, ou de quem ele tinha que se aproximar, mais por obrigação de viver, do que por necessidade ou desejo de se relacionar.
Em alguma coisa, no entanto, esse isolamento lhe fora proveitoso. A solidão e o afastamento do convívio com as pessoas fizeram dele um nerd. Tornara-se perito em informática. A informática, mais que uma profissão, é a doença dos solitários. Nerds são criaturas que estão mais próximas de cyborgs do que de seres humanos.
Sabia muito sobre computadores. Aprendera a trabalhar com tudo quanto era programa existente na praça. Só não se tornara um hacker porque tinha medo. Não de morrer, mas de ser preso e seviciado na cadeia, como são as "carnes novas" que lá são atiradas...
Seu mundo era a Internet. Nela vivia, nela comia, nela sonhava. Quando não estava trabalhando, estava viajando pela rede.
Aos vinte anos arranjara um emprego numa editora de livros. Era uma editora especializada em livros religiosos e esotéricos, que publicava escritores independentes que pagavam os custos de edição de suas obras.
Ele fazia a diagramação dos livros. No começo se surpreendeu com a quantidade de escritores esotéricos que contratavam os serviços da editora para publicar suas estranhas obras. Eram composições literárias de pouco valor artístico, que falavam de vampiros, lobisomens, seriais killers, bruxas, rituais satânicos, simbologia sagrada, sociedades secretas, fetiches e fobias bizarras, esquizofrenias e outras aberrações da mente humana.
Até então não tinha idéia de quão grande era o número de pessoas que gostava de ler sobre esses assuntos. Mas o mercado devia ser bem amplo, porque os livros tinham bastante saída. A editora publicava por demanda. Alguns deles alcançavam tiragem de dois, três, até dez mil exemplares, o que, num país cujo povo não gosta de ler, diga-se, era um verdadeiro fenômeno.
Pouco a pouco, ele foi mergulhando naquele mundo de fatos e fenômenos banidos do mundo da razão e do convívio com as pessoas normais. Começou a estabelecer uma relação de simpatia e prazerosa convivência com aqueles assuntos malditos que se hospedavam nos livros que ele diagramava. Eles eram como ele, monstrengos deportados para um mundo de sombras, onde não poderiam ficar constrangendo as pessoas com suas aparências horrendas. Eram fenômenos catalogados como sobrenaturais, anormais, aberrantes, coisas que precisavam das trevas para viver, como vampiros, ou esperar noites de lua cheia para se manifestar, como lobisomens.
Sim, eram como ele, um sujeito estranho que precisava sair de casa de madrugada, sob o manto protetor da escuridão e voltar já bem tarde, protegido pela capa da noite já densa, esgueirando-se pelas ruas mais desertas, para evitar os olhares das pessoas, a voz delas, o contato com elas.
Odiava as pessoas tanto quanto amava os assuntos dos livros com os quais trabalhava. Sabia tudo sobre Jack, O Estripador, o pistoleiro Billy the Kid, Karyl Chessman, o Bandido da Luz Vermelha, O Assassino do Zodíaco, que apavorou a vida dos californianos durante a década de 60, David Barkowitz, o famoso filho de Sam, que nos anos setenta, matou uma dúzia de pessoas nos Estados Unidos, e por aí afora. Seu preferido era o motoboy Francisco de Assis Pereira, que na década de 90 assassinou mais de dez garotas em São Paulo. “Elas mereceram” dizia para si mesmo, toda vez que pensava naquele assunto. “Todas as garotas merecem. São depravadas e só pensam em sexo”, concluía, para justificar o seu julgamento.
Sua banda preferida era os Dead Boys, cuja música heavy, soturna e arrepiante, o confortava e lhe dava prazer.Quando chegava em casa à noite, onde morava sozinho desde a morte da mãe, era isso que ele fazia. Sentava-se em frente ao computador e ficava navegando na rede, ouvindo o rock pesado da banda, até altas horas da madrugada. Quando a aurora chegava, ele se levantava, tomava um banho e saia para trabalhar.
Quase não dormia durante a semana. Tirava uns pequenos cochilos ali mesmo, diante do computador. Deixava para dormir de fato nos fins de semana, quando praticamente não saia da cama no sábado e no domingo. Só se levantava para comer as "quentinhas" que encomendava no restaurante próximo à sua casa.
Desenvolvera uma estranha simpatia por doutrinas racistas e religiões fundamentalistas. Achava as teorias que fizeram a cabeça de Hitler, como ele costumava dizer, o máximo da sabedoria. Por conta disso leu Alfred Rosemberg, Chamberlain, Gobineau e Nietszche, com grande prazer.
Comprou todos os CDs que reproduziam a música de Richard Wagner, compositor favorito de Hitler. Ao ouvir a Cavalgada das Valquírias, a Ópera Parsifal e o Anel dos Nibelungos e depois, lendo na Internet o libreto com a história e a interpretação dos mitos que serviram de inspiração para as respectivas óperas, ele logo compreendeu porque elas exerciam tanto fascínio sobre o espírito do lúgubre ditador alemão.
Não era à toa.Eram obras que falavam de heroísmo e da nobreza do povo ariano. Descreviam sangrentos holocaustos e sugestivos sacrifícios rituais. Descortinavam um mundo de heróis e deuses impiedosos, cujo objetivo era emular a força, a coragem, a ousadia e a determinação que faz de um homem um espécime invulgar entre os seus pares.
Tudo aquilo nada tinha a ver com o mundo mesquinho, tacanho e moralista em que fora posto para viver e que, por isso mesmo, o rejeitara. Talvez fosse essa a causa da rejeição. Ele não era igual aos demais. De repente passou a sentir-se um ser superior, posto por engano numa comunidade de inferiores, e começou a achar que as pessoas sentiam isso quando em contato com ele. “Todos tememos aquilo que não podemos vencer”, costumava dizer para si mesmo.
 
Com redobrado entusiasmo ele teria sido um soldado das S.S. E com muito orgulho e indescritível prazer teria participado das missões dos einsatz grupens, aqueles soldados alemães que durante a Segunda Guerra Mundial eram destacados para missões especiais de extermínio de minorias raciais e grupos étnicos indesejáveis, que prejudicavam a gloriosa missão ariana de construção de uma humanidade pura e saudável.
Depois de algum tempo passara a admirar também aqueles terroristas muçulmanos que explodiram as Torres Gêmeas naquele fatídico 11 de setembro de 2001. Que coragem tinham aqueles caras, pensava ele.Eles eram terroristas para os americanos. Para ele eram verdadeiros heróis. Que destino fantástico era o daqueles homens, que escolheram morrer por uma causa na qual acreditavam de verdade! Quantas pessoas no mundo teriam feito o que eles fizeram, com tanta frieza e determinação? Só os kamikases japoneses, na última guerra mundial, tinham feito coisa semelhante.
Acreditava, de verdade que eles estavam agora no paraíso prometido pelo Alcorão. Esse era outro assunto que o fascinava. Tinha certeza que essa promessa era verdadeira. Devia haver mesmo um paraíso, povoado por garotas, que por mais sexo que fizessem, ainda continuavam virgens. Seria bom ser mandado para um lugar assim, onde os himens nunca se rompiam, onde o pênis nunca amolecia e o sexo era uma atividade perene, desejável e santificada. Esse pensamento o excitava, e ele então se masturbava.
Não tivera nenhuma experiência sexual até então. Era virgem de contato com mulheres. Virgem como uma huri, aquelas meninas que habitavam o paraíso muçulmano. Compreendia o valor que a religião islâmica dava à questão da virgindade feminina, pois ela figurava o corpo da mulher intocada como um território de prazeres. A virgem era como uma praia deserta, onde o sonho do homem, de possuir um pedacinho do Éden, se realizava plenamente.
Talvez fosse por isso, por essa ilusão de eterna virgindade, que as huris, as Virgens de Alá, eram capazes de manter o pênis do felizardo que as conquistava ereto para sempre. Não importava que os infiéis dissessem que o paraíso dos muçulmanos se assemelhava a um bordel santificado. Essa era uma imagem caluniosa que dele faziam os imperialistas cristãos, uma raça de infiéis que não conseguia entender a grandeza dessa concepção, capaz de levar um homem a sacrificar a própria vida em prol de uma causa, coisa que nenhuma crença cristã, nos dias de hoje, era capaz de fazer. Decididamente o ocidente se tornara um mundo de valores corrompidos e sem honra que estava mesmo destinado a desaparecer. Por isso apoiava a causa dos guerreiro da Jihad e se fosse possível, gostaria de se juntar a eles. Só não sabia como fazer isso.
 
Em seu trabalho na editora tinha que diagramar muitos livros. Assim acabava lendo vários deles. Ficara fascinado por um conto, onde um desses terroristas suicidas detonava um colégio inteiro nos Estados Unidos, por que seu mestre lhe dissera que a Jihad seria mais completa quanto maior fosse o número de infiéis que ele conseguisse matar com seu ato. E maior seria o seu galardão no paraíso, porque as pessoas que ele matasse se tornariam seus escravos. Se fossem homens, seriam transformados em eunucos, se mulheres elas se tornariam as virgens que fariam parte do seu harém de huris.
Se fossem todas virgens enquanto vivas, melhor ainda. Então o maluco prsonagem do conto sequestrou um avião e jogou-o em cima de um colégio feminino, matando mais de uma centena de meninas adolescentes. Duas eram as motivações do suicida: providenciar uma provisão bastante farta de huris para o seu harém e diminuir o número de matrizes que os infiéis teriam à disposição para reproduzir os seus malditos rebentos. Com isso, pensava ele, Alá ficaria duplamente satisfeito. Mas para fazer um negócio desses o sujeito teria que ter coragem para cruzar, de livre e espontânea vontade, os Sete Portais do guerreiro, sendo o ultimo o sacrifício da sua própria vida.
Sete Portais era o nome do conto. O primeiro era o Portal da Fé. Só Alá é Deus e Maomé o seu profeta. Tinha que acreditar piamente nisso. Nenhum outro caminho o conduziria ao Paraíso, senão a religião de Maomé. O segundo era o Portal da Submissão. Tinha que se entregar todo à causa. Submeta-se, dizia a doutrina do Islã. Você não tem livre arbítrio sobre seu destino, como dizem os cristãos. Alá já traçou o destino de todos os homens. Mak Tub. Estava escrito. O terceiro Portal era o da Determinação. Os servos de Alá tinham que ser determinados. Não podiam duvidar, um só momento, de que escolheram o caminho certo. Em quarto vinha o Portal da Coragem. Soldado de Alá não podia ter medo. Tinha que entregar a própria vida pela causa. O quinto era o Portal do Desapego. Para realizar as façanhas que Alá esperava dele, seria preciso que o indivíduo não tivesse apego às coisas do mundo e às coisas que o mundo dá. Só pela esperança de encontrar, um dia, o paraíso, é que valia a pena viver. Quem se apegava aos bens do mundo eram os infiéis ocidentais. Os verdadeiros muçulmanos não. O sexto Portal era o do Ódio. Ódio substantivo e maiúsculo aos infiéis. Morte a todos eles. Matar um infiel não era pecado. Era realizar a vontade de Alá. O sétimo e último Portal era o do sacrifício, no qual o soldado de Alá imolava a si próprio.
Em sua vida cotidiana ele sentia que já havia passado espontaneamente por alguns deles. Desde que se tornara, por convicção, um muçulmano, ele adquirira uma fé inabalável nos postulados do Islã; portanto, a ele se submetia de todo coração. Por outro lado, já não tinha sonho algum em relação ás conquistas deste mundo criminoso e apodrecido que os ocidentais haviam construído. Tudo nele era pecado e heresia. Por consequência odiava tudo isso. A única coisa que não tinha ainda certeza era se teria coragem para transpor o último Portal, sacrificando a própria vida em proveito da causa. Mas isso é o que ele iria ver quando chegasse a hora.
 
O conto era, naturalmente, uma sátira e o seu autor tinha uma flagrante intenção de deboche. O autor fazia uma interpretação estereotipada e debochada das crenças islâmicas e da idéia que eles tinham do paraíso. Pintava-o como se ele fosse um magnificente bordel, onde prostitutas de luxo eram treinadas para satisfazer psicopatas tarados. Ali eles consumiam as delícias que Alá prodigalizava aos homens por conta dos atos loucos que haviam praticado na guerra santa contra os infiéis.  
Mas essas maluquices tinham amparo numa certa lógica fornecida pela História. O paraíso muçulmano, assim como o cristão e outras figurações dessa utopia, nada mais são do que retratos metafóricos das sociedades que as engendram.Afinal, era costume na Idade Média, quando essas ideias começaram a ganhar corpo, que o perdedor de um combate se tornasse escravo do vencedor.Ele e suas mulheres. Os homens se tornavam eunucos e as mulheres concubinas. Se fossem virgens, melhor ainda. Portanto, não havia nada de absurdo na idéia de que o morto pudesse se tornar servo do seu matador no outro mundo e suas mulheres se tornassem suas huris. Era uma crença que já tinha tido sua correspondência na própria prática consagrada pela sociedade humana.
Pensando assim podia entender melhor o que se passava na cabeça dos caras que jogaram aqueles aviões no World Trade Center. Quantos eunucos não estavam eles fazendo com aquele ato? Entre eles, quantas virgens, entre as mulheres mortas,não estariam sendo arrebanhadas para os seus haréns? Não valia a pena morrer por um prêmio assim?
Adotara como tela de abertura no seu computador a imagem dos gigantescos boeings sendo arremetidos contra as Torres Gêmeas. Desenvolvera outras telas com o mesmo motivo, mostrando aviões se chocando contra a Torre Eiffel, o Castelo de Windsor, o Prédio do Parlamento inglês, o Taj Mahal, o Ginza Store, a Estátua da Liberdade, o Krenlin, o prédio das Nações Unidas, enfim, todos os prédios e monumentos que simbolizavam a tirania do homem contra o homem.
Em cada uma dessas montagens ele era o piloto do avião. Com isso sentia-se um herói lutando por uma causa. Não era mais um “monte de merda que devia ser afastado da frente das pessoas.” Dessas ações emergia como um sultão, de pênis eternamente rígido, e servido, não por uma lourinha malcriada de subúrbio, mas por um séquito de escravos e um exército de huris de olhos amendoados e escuros, castas como donzelas intocadas, mas ainda assim, sensuais como uma princesa das Mil e Uma Noites.
Com um prêmio desses não se importaria de jogar um avião no prédio do Congresso, em Brasília, ou contra a estátua do Cristo Redentor. Adoraria ver todos aqueles deputados e senadores, filhos da puta, transformados em eunucos; e suas mulheres e filhas em deliciosas huris, que seriam fodidas todo dia por ele. Afinal, não era isso que aqueles malditos políticos faziam o tempo inteiro? Foder todo mundo?
Quanto ao avião que se chocava contra o Cristo Redentor, não era por ódio dos cariocas ou do Rio de Janeiro que ele fizera aquela imagem. Era pelos sentimentos que o cristianismo lhe inspirava. A religião cristã era, para ele, a maior farsa que já fora perpetrada contra a humanidade. Uma religião de hipócritas, feita para hipócritas. Uma crença, cujos praticantes falavam de paz, amor e perdão, mas na prática faziam a guerra, disseminavam o ódio e condenavam, sem piedade, milhões de pessoas à morte. Pela fome, controlando os mercados, pela guerra, incentivando o comércio de armas, e pela doença, através do controle das patentes farmacêuticas e da detenção do conhecimento em círculos muito restritos. E tudo isso somente para obter lucro. O lucro, na verdade, era o deus dos cristãos, e não Jesus, o filho de Maria, que na verdade, nunca foi mais que um profeta, menor que Maomé.
Que diabo de humanidade era essa que o Cristo representava? E para quem ele estendia aqueles braços? Deviam ser tão poucos os privilegiados, que talvez mal enchessem o círculo de pedra dos seus braços, abertos inutilmente no alto daquele morro. Afinal de contas, cristão era o mundo que o rejeitara. Seu pai também era cristão. Cristã era a menina que o considerara um “monte de merda que devia ser afastado dos olhos do mundo”; e cristãos eram os moleques que debochavam nele na infância.
 
Por isso, quando deu o primeiro tiro, dentro daquela sala de aula, naquele colégio onde ele entrara disfarçado de professor, ele não teve muito tempo para gozar o prazer que isso lhe causou. Mas não importava. Ele já o havia gozado centenas de vezes antes, ao planejar aquela ação. Durante um ano estudara todas as nuances da sua Jihad pessoal. Conseguira até permissão para ser professor voluntário naquela escola, para ensinar para os alunos algumas aplicações mais avançadas de informática.
Escolhera aquele colégio porque era uma escola particular. Ficava num bairro rico da Zona Sul. Não podia haver local melhor para mostrar ao mundo o seu inconformismo.  E porque a grande maioria dos alunos era do sexo feminino. Elegera o período matutino porque era reservado aos estudantes do ensino fundamental. Uma maioria de meninas entre doze e quinze anos. Maior probabilidade de serem virgens. Cerca de trinta alunos por classe. Muitos eunucos e huris para serem arrebanhados para o seu paraíso.
Ao disparar o primeiro tiro escolhera a menina sentada na terceira cadeira da primeira fila, do lado direito da sala, visto a partir da mesa do professor. Fora numa cadeira igual aquela, na mesma posição, que a lourinha dos seus quinze anos o transformara num “monte de bosta que precisava ser tirado da frente dos olhos e dos narizes do mundo”.
“Eu não sou um monte de merda”, murmurou ele, antes de apontar a arma e perguntar para a menina da terceira cadeira: ”Você é virgem?”
Não deu nem tempo para ela se recuperar do espanto de ouvir pergunta tão inusitada, feita de maneira tão extravagante e assustadora. A cabeça dela acabara de explodir, como se nela surgisse, de repente, uma cratera de vulcão esguichando sangue e pedaços de osso. Depois ele não viu nem pensou em mais nada. Em sua mente desfilavam imagens rápidas e confusas de canos fumegantes, aviões explodindo contra prédios e monumentos, soldados sem rosto, marchando ritmados e resolutos, vestidos com uniformes negros, com cruzes gamadas pintadas no ombro esquerdo. Toda a imensa confusão em que sua mente vivera até aquele momento, aflorou naquela hora, como um vulcão que acabasse de entrar em erupção. E viu também que suas mãos haviam se transformado em duas crateras vomitando fumaça e jatos de lava de cor alaranjada e sinistra, que contaminavam um céu azul, inocente e imaculado como um paraíso bíblico.
“Você é virgem? Você é virgem?” Perguntava e atirava contra a turma que fugia e gritava e se atropelava e escorregava em poças de sangue, que se tornavam cada vez mais densas e espalhadas. Não tinha tempo para fazer a conta. O importante era a quantidade de almas que precisavam ser capturadas. Sentia-se um bandeirante caçando índios para trabalhar no seu canavial, ou um soba africano, na sua frenética tarefa de capturar seus compatriotas para vendê-los aos fazendeiros do novo mundo.
Quase uma eternidade havia decorrido quando ele sentiu uma brasa queimar seu flanco direito. Alguém atirara nele. Arqueou, mas não caiu. Correu para a escada, mas não conseguiu descer os degraus. Sua visão começava a turvar-se. Sentiu o mormaço do sangue que começava a escorrer pelas pernas e a pingar no chão, formando manchas rubras e escorregadias. Sentou-se em um dos degraus, tremendo com a friagem que se espalhava pelo corpo inteiro.
 
Soube imediatamente que tinha chegado a hora de transpor o último portal. Viu os homens da polícia, chegando com seus revólveres, apontando para ele. Não podia esperar que o empurrassem. O ritual exigia que a iniciativa fosse sua. Não podia ser morto pelos inimigos. Isso inutilizaria todo o seu esforço. As Virgens de Alá não o receberiam se a iniciativa não fosse sua. Por isso, com as últimas forças que ainda restavam no seu braço, e num último lampejo de consciência, encostou uma das armas na própria cabeça e puxou o gatilho. Completara sua Jihad, a sua guerra santa contra o mundo que o rejeitara. Restava agora esperar pelo julgamento de Alá.
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*Nota: este conto, embora inspirado em fatos reais, é fruto exclusivo da imaginação do autor. Qualquer semelhança entre os personagens nele referidos e as pessoas que viveram essa experiência, terá sido mera coincidência.
 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 02/05/2021
Alterado em 02/05/2021


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