Maçonaria e Religião: ainda resta algo a ser dito? (I)
27/06/2021 Maçonaria,
religião
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Escrever sempre traz desafios: se o tema é inovador podem faltar elementos suficientemente robustos para sustentar o argumento, o que gera dúvidas e insegurança ao leitor; já se o tema é maduro arrisca-se a “chover no molhado”, tão somente reproduzir, ainda que com alguns acréscimos, tudo o que já foi dito. Este último parece ser o caso do desafio ora em apreço: dissertar sobre Maçonaria e Religião.
E por que um tema tão antigo permanece ainda aberto à discussão?; haveria algo de novo para ser dito?; afinal, a Maçonaria é ou não uma Religião?; e se é, revela-se incompatível com o cristianismo católico prevalecente no Brasil? A essas outras tantas questões pertinentes podem seguir. Penso que a resposta à primeira questão se deve, antes de tudo, à amplitude das duas expressões, pois tanto “Maçonaria” quanto “Religião” são construtos complexos e irredutíveis, de modo que não se pode aludir, inferir e generalizar sem margem às concessões que sacrifiquem as diversidades próprias a cada um. Destarte, nem a Maçonaria e tampouco a Religião são construtos homogéneos, daí que para apreciá-los conjuntamente impõe preliminarmente reconhecer que se está frente a um fenómeno de complexidade ainda maior. Esta condição, por razões que adiante ficarão mais claras, confere actualidade permanente ao tema. Já à segunda questão, a resposta é dupla e ambígua: do ponto de vista formal e oficial não há novidades para registar, sendo amplamente conhecidas as posições de ambas as instituições, principalmente a da Igreja Católica, pois esta é inequívoca; mas se considerado o dinamismo que caracteriza as instituições a resposta é afirmativa e ao longo do texto eu disserto e justifico o posicionamento antecipadamente ora firmado. Quanto aos demais questionamentos também serão respondidos ao longo da narrativa, um ensaio crítico e analítico elaborado a partir da pesquisa bibliográfica nas obras relacionadas ao final.
No que tange à Maçonaria, entre tantas, é conhecida a tipologia das quatro Escolas (a autêntica, a antropológica, a mística e a oculta) de Leadbeater (1968), Naudon (1968) quando refere aos Ritos e tendências que dividem a Ordem Maçónica enumera cinco tradições (teísta, deísta, cultural, mágica e racionalista), Ragon (2006) enumera incontáveis Ritos encontrados no seio da Ordem e outras afins, e, finalmente, quando o Reverendo J. Anderson (2012)
[2] identificou Adão como o primeiro Maçom, conferiu tamanha amplitude à História da Ordem que, sem exagero, esta passa a ser confundida com a da própria trajectória humana. E sem pretender exaurir o assunto há ainda a manifestação de Sommerman (2019, p. 50-1):
[…] é preciso destacar que, entre as muitas obediências maçónicas “especulativas” desses últimos três séculos, tem havido três perspectivas principais: há obediências que são portadoras de uma real perspectiva iniciática e espiritual, herdeira da Maçonaria “operativa” e da grande corrente hermética, cabalista, cavalheiresca e rosa-cruz; mas há também algumas (poucas) obediências inspiradas nos “famosos” Iluminati da Baviera – uma ordem não-maçónica, criada em 1776 e dissolvida em 1784. Tratava-se de uma ordem ferozmente racionalista, que se propunha a combater as religiões e também as obediências maçónicas do primeiro grupo, e que, quando foi dissolvida, buscou infiltrar vários dos seus membros em muitas das ordens maçónicas chamadas de regulares – regularidade essa que é justamente a sua dimensão iniciática e espiritual, comum à Maçonaria “operativa” e conforme as intenções e os documentos iniciais da Maçonaria “especulativa”. Há ainda um terceiro grupo de obediências maçónicas: as que sofreram forte influência da mentalidade profana que passou a dominar na sociedade ocidental desde o Iluminismo, e que dão mais ênfase à sua dimensão à acção política ou à dimensão honorífica e social. (DESTAQUES NO ORIGINAL) a qual não deixa margem a dúvidas (e isto se após ler Anderson ainda houvesse): mais do que tendências e diversidades internas, havia (há?), em determinados casos animosidades e intento declarado de combate às religiões. Resta pois, demonstrado, que a Maçonaria contemporânea é um fenómeno complexo.
E no que tange à Religião, como defini-la? Para tal recorro a algumas citações extraídas de McGrath (2005):
É extremamente difícil definir com precisão o conceito de religião (
op. cit., p. 43);
.
Mesmo no interior da mesma religião aparecem diferenças de opinião (
op. cit., p. 44);
.
[…] raramente as definições de religião são neutras. Em geral surgem para favorecer crenças e instituições com as quais os seus autores simpatizam e penalizar as que lhe são hostis. As definições de religião quase sempre dependem de propósitos e preconceitos específicos de estudiosos individuais […] a conhecida definição de F. Max Mueller segundo a qual “religião é a disposição que capacita o ser humano a aprender o infinito sob diferentes nomes e disfarces” […] todas as religiões nada mais são do que respostas locais culturalmente condicionadas à mesma realidade suprema transcendente (
op. cit., p. 44);
.
O cristianismo não é igual ao budismo […] a investigação histórica dessas questões [religião
vs. ciência] será bastante prejudicada se partirmos do pressuposto de que “todas as religiões dizem a mesma coisa” […] não se pode tratar as diferentes tradições religiosas como se fossem apenas variações sobre o mesmo tema […] grandes dificuldades enfrentadas pelos que desejam argumentar em favor da existência de terminada “essência da religião”. Não fazem sentido os argumentos que pretendem estabelecer o que seja verdadeiramente religião. Não existe essa coisa chamada religião. Existem apenas tradições, movimentos, comunidades, gente, crenças e práticas com feições associadas pelas pessoas com o que chamam de religião […] tanto o budismo como o confucionismo possuem elementos “religiosos”, sem que isso seja suficiente para caracterizá-los como “religiões”. (
op. cit., p. 45).
Ou ainda, nas vigorosas palavras de Levi (1977), onde aponta não só para as contradições internas às religiões, como também para a necessidade dos livres-pensadores:
[…] toda Religião é verdadeira, tirante as omissões, transposições, interpretações erróneas, conjecturas apressadas, adições, imaginações e incompreensões. Isto é o que os livres-pensadores têm de compreender em última instância se não desejam permanecer em perene combate contra uma das mais poderosas forças da Natureza Humana, o desejo insopitável de crer, e adorar alguma coisa no Infinito, e ter Fé numa Humanidade de certa forma maior que a natureza, de modo a alçar-se sempre na sua direcção, purificar-se nela, a fim e dominar e reinar através dela. (
op. cit., p. 28)
Portanto, c.q.d., a Religião, assim como a Maçonaria, também é um construto complexo, irredutível a elementos mais simples, universais e transversais a outros temas. Ademais, como as religiões habitualmente se fazem acompanhar das respectivas Igrejas, não raro, ainda que não sejam expressões sinónimas, é habitual referir uma pela outra porque cada Igreja dissemina, uma e apenas uma religião.
E no que resulta quando se intenta combinar dois construtos complexos, para contrastar ou salientar as semelhanças? Pelo menos duas consequências:
- em nível mais específico, em sendo tantas as possibilidades de cada um, sempre será possível encontrar pelo menos um desdobramento do primeiro construto (no caso, a Maçonaria) alinhado ao segundo (Religião), enquanto que em relação aos demais aspectos serão ressaltadas as diferenças que, ao contrário, afastam o alinhamento; já,
em nível de maior abrangência, ocorre uma inutilidade prática, pois quando tudo pode, nada discrimina, não é útil enquanto critério.
À guisa de exemplo:
- tome-se uma das especificidades da Maçonaria, no caso, um Rito, mais especificamente, o Rito Escocês Rectificado (RER): trata-se de um Rito cuja doutrina e ritualística carregam o legado do cristianismo, portanto é um Rito considerado como teísta. Com efeito, de acordo com Callaey e Blanco (2016):
- Pero también fueron la excusa para que pudiéramos abordar cuestiones propias de la doctrina que da vida y sustento al Régimen Escocés Rectificado, que a diferencia de otras masonerías propone la existencia de un Dios y una Revelación sobre la que descansa toda su estrutura […] La iniciación, tal como la comprende la Masonería Rectificada, es un proceso que debiera llevar a la restauración espiritual del hombre, a la reparación de la Caída de la que ha sido objeto, en síntesis, a su redención. (op. cit., p. 5)
Es por esto que exigimos y restringimos la entrada a la Orden Rectificada, exclusivamente a cristianos, pues de lo contrario las enseñanzas que recibirían no tendrían ningún sentido para ellos. (op. cit., p. 12)
já o mesmo não se pode dizer acerca do Rito Moderno (RM), também conhecido como Francês, considerado deísta, mas também referido como agnóstico [3]. Textualmente, para Correa (2020, p. 111) “O Rito Moderno, pois, é uma grande expressão do carácter laico que deve imperar nos Estados modernos e nas organizações de livres-pensadores”.
Assim, os que defendem a compatibilidade entre a Maçonaria e a Religião sempre poderão recorrer ao exemplo do RER, enquanto que os que defendem o contrário não terão dificuldades em apontar as incoerências se recorrerem ao caso do RM. Já os que defendem a possibilidade do diálogo e mesmo a convivência com base em argumento de maior abrangência, de regra se apegam a um ponto em comum a ambas as instituições, no caso, o mais frequente é o amor fraterno
[4] por princípio (e os seus correlatos: solidariedade, paz, etc.), como se isto fosse condição necessária e suficiente para o mútuo reconhecimento e alinhamento. Ora, ora, esse argumento além de ingénuo porque ignora as idiossincrasias que não só identificam como singularizam as instituições (a historicidade, as crenças, os valores, as práticas, etc.), sem as quais se perderia a sua própria razão de ser esmaecida entre as demais instituições, como beira ao tragicómico, sendo bastante lembrar que J. Stalin, Mao Tsé-Tung e A. Hitler, a seu modo, também amaram e cultivaram amizades, mas é verdade que não tanto e a todos quanto a si mesmos.
O observador mais arguto já percebeu que a mesma faculdade se verifica no interior de cada um dos construtos:
- todos os Ritos defendem a práticas das virtudes, do bem, logo … estas características não podem ser utilizadas nem para distingui-los e tampouco para hierarquizá-los como é o entendimento daqueles que “acreditam que o rito que praticam é o correcto e os demais são errados” (ISMAIL, 2017, p. 155); e,
entre as tantas religiões cristãs (católica, protestante, ortodoxa, …) não será difícil encontrar pontos em comum mas também os que as discriminam. Assim, a aproximação ou o distanciamento, tanto entre os Ritos quanto entre as Confissões, é questão que se resolve a partir da escolha de um critério que ao fim e ao cabo se submete aos interesses circunstanciais, por vezes mesmo à estratégia.
Esta é uma das características dos problemas complexos: é fácil um lado atacar (ou defender) o outro, pois no meio da sua complexidade podem ser encontrados, simultaneamente, tantos pontos em comum (a favor) quanto divergências (contrárias pois) ao argumento pertinente ao objecto do debate. Ignorar essa realidade é semear em campo fértil à discórdia, pois cada polo do discurso insistirá, com razão e por isso com poucas chances ao contendor para rebater, no seu ponto de vista e argumentos; a rigor, nestas circunstâncias qualquer um pode escolher o lado (a defender ou atacar) sem maiores prejuízos
[5]. Portanto, hoje, passados mais de 3 séculos da fundação da Grande Loja da Inglaterra
[6] (1717), no plano do livre debate uma mente preparada pode, a critério, defender ou atacar a compatibilidade entre a Maçonaria e a Religião, bastando que para tal escolha a variável mais adequada e construa a narrativa coerente com o posicionamento adoptado, excluindo todas as demais. Por evidente que isto não é intelectualmente honesto, mas é o que se verifica na maioria das ocasiões a exemplo dos debates e em razão não só da tendenciosidade já mencionada (McGrath, acima), como também do curto espaço de tempo
[7] que circunscreve os eventos dedicados à discussão da matéria.
E se aos elementos acima forem somados o desconhecimento generalizado mesmo daqueles dos quais se esperava o domínio, o recurso às falácias e aos silogismos, de boa ou má-fé em razão de interesses nem sempre declarados, o interlocutor com algum preparo terá o sucesso reconhecido por ter definitivamente esclarecido a questão. (SCHOPENHAUER, 1997) Todavia, dada a complexidade já referida, o assunto permanentemente volta à agenda e se mantém actual como se a questão da compatibilidade entre a Maçonaria e a Religião ainda estivesse aberta à espera de esclarecimentos definitivos.
Mas nem sempre foi assim, não havendo dúvidas quanto à religiosidade cristã dos maçons operativos bem como da sua proximidade com a igreja católica. Vale lembrar que o judaísmo estava restrito a alguns centros e com a expulsão dos árabes da península ibérica no final do séc. XV o islamismo foi contido na Europa
[8]. Iniciada por Lutero no séc. XVI, a Reforma Protestante trará novos elementos; todavia, o cristianismo permanecerá como eixo rotor dos usos e costumes na sociedade de então. Os termos iniciais da Carta de Bolonha
[9], um dos mais antigos registos da Maçonaria medieval, bem ilustra os usos e costumes no seio das corporações de ofício:
STATUTA ET ORDINAMENTA SOCIETATIS MAGISTRORUM TAPIA ET LIGNAMIISCARTA DE BOLONHA, 1248 E.V.Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém. O ano do Senhor de 1248, indicção sexta. Estatutos e Regulamentos dos Mestre do Muro e da Madeira Eis aqui os estatutos e regulamentos da sociedade dos mestres do muro de da madeira, feitos em honra a Deus, a Nosso Senhor Jesus Cristo, à Bem-Aventurada Virgem Maria e a todos os santos, e para a honra e bem estar da cidade de Bolonha e da sociedade de ditos mestres, respeitando a honra do podestade e capitão de Bolonha que a governa ou governam ou governarão no futuro, e respeitando os estatutos e regulamentos da comuna de Bolonha feitos e por fazer. E que a todos os estatutos que se seguirem se apliquem a partir do dia de hoje, o ano 1248, indicção sexta, o oitavo dia de Agosto.I – JURAMENTO DOS SUPRACITADOS MESTRESEu, mestre da madeira e do muro que sou, ou serei, da sociedade de ditos mestres, juro, em honra a nosso Senhor Jesus Cristo, à .Bem-Aventurada ‘Virgem Maria e a todos os santos, e em honra ao podestade e capitão que é agora ou serão no futuro, e para a honra e bem estar da cidade de Bolonha, aceitar e obedecer as ordens do podestade e capitão de Bolonha e de todos os que sejam governantes da cidade de Bolonha, aceitar e obedecer todas e cada uma das ordens que me dêem o maceiro e os oficiais da sociedade dos mestres da madeira e do muro, ou um deles, pela honra e bom nome da sociedade, e conservar e manter a sociedade e os membros da sociedade em bom lugar, e de guardar e manter os estatutos e regulamentos da sociedade tale como estão regulados agora ou serão no futuro, com respeito a tudo aos estatutos e regulamentos da comuna de Bolonha, estando preciso que estarei obrigado [e ele] a partir da [minha] entrada, e que serei livre após [minha] saída.
A religiosidade fazia parte do dia a dia profissional das corporações em geral (e não apenas na guilda dos maçons), que habitualmente iniciava com preces para solicitar protecção e auxílio, e terminava com agradecimentos, senão pelos êxitos, pela ausência de males. Nas Iniciações o juramento era perante Deus como revela o mais antigo ritual maçónico, o Manuscrito da
Edinburgh Register House [10], de 1696 (COOPER, 2009). A mesma religiosidade também pode ser constatada nos Regulamentos Gerais que acompanham as Constituições de Anderson:
XII – […]; e deve haver uma REUNIÃO TRIMESTRAL em Comemoração a São Miguel, Comemoração de Natal e o Dia de Nossa Senhora […] (ANDERSON, 2012, p. 171)[…]XXII – Os Irmãos de todas as Lojas dentro e fora de Londres e Westminster, deverão se encontrar para uma REUNIÃO ANUAL e Festa, em algum Lugar conveniente, no Dia de São João Batista, ou então no Dia de São João Evangelista, como a Grande-Loja achar […] nos últimos Anos se encontrado no Dia de São João Batista […] (op. cit., p. 179)
Quando, então, ocorreu a mudança que levou ao impasse actual que aponta para a incompatibilidade entre a Maçonaria e a Religião? Há duas linhas principais de esclarecimentos:
- a primeira remonta a acontecimentos anteriores a 1717 e salienta o desgaste e a perda gradual do poder (militar, político, económico) bem como da ascendência moral, intelectual e espiritual da Igreja Católica Romana e, por extensão, do cristianismo. Nesta linha, entre outros eventos podem ser arrolados o Grande Cisma do séc. XI, a derrota dos Cruzados, a Santa Inquisição, a Reforma e a luta pela unificação dos Estados Nacionais, este último, processo que viria a se consolidar após 1717; em suma: acontecimentos circunscritos pela emergência da Modernidade [11] seguida do Iluminismo. Gomes (2004), entre outros, trilha essa trajectória histórica que se estende à Contemporaneidade (ou Pós-Modernidade) a partir da defesa (ou omissão) da Igreja frente à escravidão, ao holocausto, ao papel da mulher na sociedade, todas matérias [12] que mereceram o reconhecimento e o pedido de perdão oficial, pelo Papa, no ano do Grande Jubileu – 2000. Frente a esses acontecimentos, entre outros, nem sempre os maçons perfilaram ao lado da Santa Sé [13], ao contrário, o que teria levado à crescente animosidade institucional, o que não impede, entretanto, a constatação de alguns maçons à época, como ainda hoje, serem católicos. Se admitida a tese de que os maçons são herdeiros dos Templários, parte das divergências históricas estão relatadas, em forma de romance, em O Papa Negro [14] (MEZZABOTTA, 2001);
e antes de adentrar na segunda, convém lembrar que desde o séc. XVI a Inglaterra adopta o Anglicanismo, ramo do cristianismo protestante que não reconhece a autoridade do Papa – da Igreja Católica Apostólica Romana – pois a sua autoridade eclesiástica maior [15] é o Rei (Rainha) desde o Acto da Supremacia. Ademais, desde a Revolução Gloriosa (1688), James II (católico) se exilara na França. Dito isto, a segunda tese centra os seus argumentos em acontecimentos mais recentes porém em torno de 1717: na questão sucessória ao trono inglês entre os dois ramos da Casa de Stuart, o católico (refugiado na França) e o protestante anglicano que até então ocupava o trono, mas que com a morte súbita das duas herdeiras em linha directa de sucessão, a coroa foi oferecida à Casa da Hanôver em obediência ao Decreto do Estabelecimento (Act of Settlement), acto do Parlamento que, desde 1701, impedia que os herdeiros católicos da Casa de Stuart assumissem o trono na Inglaterra (que com a Escócia constituía a Grã- Bretanha). Com isto, Jorge I, da Casa de Hanôver, assume o poder em 1714.
Ademais, cabe também lembrar que desde o fim do ciclo das catedrais, os maçons operativos experimentavam o ocaso: “A arquitectura medieval há muito se deteriorara. A Reforma deu o golpe de misericórdia […] o verdadeiro gótico da Inglaterra faleceu “em uma chama de glória” sob os Tudors [séc. XV a XVII] (GOULD
[16], 2017, p. 44). O grande incêndio de Londres, em 1666, deu uma sobrevida profissional aos operativos, mas a revolução científica e tecnológica em andamento se encarregaria de modificar não só a correlação de forças no mercado de trabalho, mas também a condição social dos pedreiros de ofício. Sem esquecer que tudo é processo, de difícil datação precisa, e que embora haja controvérsias, para alguns Elias Ashmole
[17] é considerado o primeiro Iniciado Especulativo, o que ocorreu em 1646. Os tempos eram, pois, outros, de franca transição da Maçonaria Operativa à Especulativa, a era dos franco maçons livres e aceitos.
O ponto em questão é que os componentes dessa primeira Grande Loja em Londres já não eram somente construtores em decadência, sem emprego, mas comerciantes, homens das leis, professores, filósofos, religiosos, como se tem registo. (LIMA, 2020, p. 175)
Tendo rememorado o ambiente geral, a cronologia dos eventos e a natureza dos principais actores na arena política, fica mais fácil entender o que teria levado o Reverendo J. Anderson (protestante da igreja presbiteriana), sob a orientação do também pastor protestante Jean-Théofile Desaguiliers (e cientista membro da
Royal Society [18]) a, em 1723, pouco antes de o Duque de Montagu assumir o grão-mestrado, ter introduzido nas suas Constituições os seguintes termos:
– Concernente a Deus e Religião
.
Um Maçom está obrigado, pela sua franquia, a obedecer à lei moral; e se ele compreende correctamente a arte, ele nunca será um ateu estúpido, nem um libertino irreligioso. Mas embora nos tempos antigos os maçons recebessem a determinação, em todos os países, de pertencer à religião daquele país ou nação, qualquer que ela fosse, contudo é agora considerado mais conveniente apenas obriga-los àquela religião sobre a qual todos os homens concordam, deixando a cada um a sua opinião particular; isto é, a de serem bons e leais homens, ou homens de honra e honestidade, sejam quais forem as denominações ou crenças que possam distingui-los; assim a maçonaria se torna o centro de união e o meio de conciliação da verdadeira amizade entre as pessoas que poderiam de outra forma ter permanecido perpetuamente afastadas. (ANDERSON,
op. cit., p. 149)
(Continua)Ivan A. Pinheiro [1]
Notas
[1] Mestre Maçom dos Quadros da ARLS Mário Juarez de Oliveira, 4.547, GOB-RS; da LEP Universum 147, GLMERS; da Loja de MESA Victor Meirelles; e, Membro Correspondente da Academia Maçónica de Letras, Ciências, Artes e do Ofício do GOB – BA. O autor não expressa o ponto de vista das Lojas, Obediências, Potências e Instituições das quais participa, mas tão somente exerce a sua liberdade de pensamento e expressão. Agradeço a leitura prévia e as contribuições dos Irmãos João G. M. Gobo, da ARLS Guatimozin, 68, GLESP; Gustavo V. Patuto, da ARLS Renovação da Luz, 155, GOPR; e, Jorge F. Perpétuo, da ARLS Compassos de Luz, 201, GLMERS; todavia, declaro-me responsável pelas opiniões e eventuais erros remanescentes. E-mail: ivan.pinheiro@ufrgs.br. Porto Alegre-RS, 08.05.21.
[2] No que interessa a este texto as alterações da versão de 1738 em relação a de 1723 são de menor importância.
[3] Há autores que preferem laico, mas é preciso registar que os fundamentos do Rito sofreram alterações ao longo dos anos.
[4] A defesa da liberdade também é um dos pontos em comum sempre citados.
[5] A propósito, trata-se de estratégia habilmente trazida a campo pelos Partidos Políticos no dia a dia das disputas: são claramente oponentes em alguns aspectos porém aliados em outros em razão da complexidade mesma da realidade e que convenientemente (sem que se possa contestar e para angariar apoio) são apresentados como os interesses maiores da população. Os operadores do Direito também são hábeis em explorar as lacunas e as ambiguidades existentes na estrutura normativa nacional. Cresce a prática do lawfare.
[6] Por vários referida como a de Londres, talvez para distinguir da Grande Loja de York, formada em 926 (PRESTON, 2017, p. 150), ainda que essa confusão não tenha lugar porque a de York está inserida no contexto da Maçonaria Operativa, enquanto que a londrina inicia (formalmente) a fase Especulativa.
[7] Como é o caso, por exemplo, do limite de páginas estabelecido pelos editores aos autores de artigos, mas também dos debates que ocorrem em Loja após uma apresentação dos trabalhos (Peças de Arquitectura).
[8] Pela segunda vez, por Carlos Martel.
[9] Uma versão completa poderá ser encontrada em https://bibliot3ca.files.wordpress.com/2011/04/statuta-et- ordinamenta-societatis-magistrorum-tapia-et-lignamiis.pdf. Acesso em: 07.08.20.
[10] Talvez o mais apropriado seja referir como o mais antigo ritual na forma de catecismo, pois Mata (2020) dá conta da existência de um ritual ainda anterior, o Mason Word, praticado na Escócia calvinista desde os anos 20-30 do séc. XVII.
[11] Expressão que, em si, também é um construto multifacetado e polissémico.
[12] Mais recentemente caberia acrescentar o escândalo dos padres pedófilos, de conhecimento mas acobertado pelas autoridades eclesiásticas superiores, bem como a polémica que envolve os relacionamentos homoafetivos.
[13] Mais dois exemplos para reafirmar a complexidade de tais problemas: tanto na Revolução Francesa (séc. XVIII) quanto na Revolução Farroupilha (séc. XIX) havia maçons lutando em ambos os lados. No que tange a essa última, a depender da narrativa e conveniência será ressaltado o heroísmo pacificador, conciliador, unitarista e a lealdade à Coroa revelados por Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias; mas também pode ser ressaltado a luta pela liberdade, pela independência e contra a opressão levada a termo pelo General Bento Gonçalves da Silva, o líder dos Farrapos – Rio Grande do Sul, Brasil.
[14] Livro que chegou a integrar o Index Librorum Prohibitorum editado pela Igreja Católica até 1966. Ademais, em vista das divergências existentes no clero com relação ao papado de Francisco, alguns já o denominam de o Papa Negro.
[15] Com as restrições de actuação que sucessiva e gradualmente e em todas as áreas foram impostas aos monarcas desde a Magna Carta (séc. XIII) e que, lato sensu, são bem representadas pelo dito: “a Rainha reina mas não governa”.
[16] 1836-1905: soldado, advogado, Maçom, historiador da Maçonaria e um dos fundadores da Loja de Estudos “Quatuor Coronati”.
[17] 1617-1692: antiquário, político, oficial de armas e estudante de astrologia e alquimia britânico. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Elias Ashmole. Acesso em: 23.04.21.
[18] Fundada em 1660, Londres, o papel da Royal Society (RS) vis-à-vis o surgimento da Maçonaria Moderna (Especulativa) não é de somenos importância. Christopher Wren, geómetra e arquitecto, um dos fundadores da RS, seu Presidente, foi Maçom e o grande coordenador do projecto de reconstrução após o incêndio de Londres. Além de Wren, outros relevantes personagens também eram maçons: Sir Robert Morey, Elias Ashmole e Sir Thomas Gresham, este fundador do Gresham College, local onde foram realizadas as primeiras reuniões da sociedade (PATUTO, 2020).
Ivan A. Pinheiro