TRAGÉDIA EM SETE ATOS
Ato 1. O julgamento
Alguma vez em sua vida você já experimentou uma paixão tão intensa, tão avassaladora, capaz de dominar por completo a sua mente, a ponto de não deixar pensar em mais nada? Já sentiu, dentro da sua cabeça, a presença de uma força que comanda a atividade do seu cérebro e por mais que você tente assumir o controle da sua vontade para mudar o curso das representações mentais internas que faz, não adianta, pois o pensamento sempre volta, instantaneamente, naquela imagem que você quer suprimir?
Se um dia você já se sentiu assim, poderá me entender; se não, sugiro que fique quieto e não emita nenhuma opinião. Você está olhando as coisas da mesma perspectiva das pessoas que fizeram parte daquele júri que me condenou. O que sabia aquela gente do que eu estava realmente sentindo? Nada. Para eles, eu era um estranho, um assassino, um demônio que precisava ser exorcizado do corpo da sociedade, para que seus membros pudessem dormir em paz o sono da mentira e da hipocrisia, crentes de que o bem havia sido preservado e o mal devidamente punido.
Sim, de certo eles fizeram bem o seu trabalho. Todos eles. Até o maldito promotor que me denunciou foi muito eficiente. Em sua demagógica arenga ele colocou toda sua habilidade dialética para mostrar ao júri que eu era culpado, que eu era um monstro asqueroso, uma criatura cruel e repugnante, cuja maldade excedia qualquer entendimento. Mostrou, com todas as imagens e letras que conseguiu eliciar no seu vasto repertório linguístico, que eu não merecia nenhuma clemência e devia ser condenado à pena máxima, sem direito a qualquer contemplação.
Ouvi a réplica da defesa e intimamente saudei meu advogado pelo esforço que ele estava fazendo para provar o impossível. Pobre homem! Como é difícil lutar por uma causa perdida. Como é inglória a tarefa de tentar desconstruir uma verdade que por si mesma já está mais que provada.
Eu sabia que o meu caso era indefensável e teria comparecido ao tribunal sozinho, mas a burocracia hipócrita do nosso sistema jurídico não permite que ninguém se apresente em um tribunal sem um patrono, mesmo que o acusado já tenha reconhecido publicamente a sua culpa e a tenha assumido cabalmente.
Até mesmo o diabo teria que ter um advogado se um dia fosse levado às barras dos nossos tribunais. E é bem possível que acabasse sendo absolvido, pois que nesses teatros de pantominas, o que vale são as habilidades dialéticas dos causídicos e não a verdade dos fatos que ali se discute. E no inferno, como se sabe, há muitos mais advogados competentes do que no céu, por isso Deus têm perdido a maioria das causas, o que explica o fato de a humanidade estar vivendo tempos tão estranhos como esse que vivemos hoje.
Mas no meu caso eu não fazia a menor questão de escapar sem penalidade. Eu mesmo forneci as provas, eu confessei, fiz questão de não deixar nenhuma dúvida sobre a minha culpa. E o meu defensor, que fez jus ao mérito da sua profissão, evidentemente não podia fazer mais do que fez. Ele tentou de tudo; sacou todos os recursos que tinha na sua polpuda caderneta de cultura jurídica, mas foi em vão. Procurou até levar o caso para a seara dos crimes passionais. Falou da violenta emoção que prejudica a razão das pessoas em momentos como esse, da comoção que eu devia estar sentindo, do sentimento de rejeição que me levou a perder a cabeça etc. O coitado esgotou todo o seu repertório de conhecimentos psicológicos e jurídicos e fez o possível e o impossível para convencer o júri de que eu era um caso de internação em manicômio judicial e não um assassino frio e metódico que deveria passar uma longa temporada numa penitenciária de segurança máxima.
Não conseguiu. Não havia meios de conseguir. Contra fatos não se opõem argumentos. Afinal, eu mesmo me incriminei. Confessei, com riqueza de detalhes, a minha participação no crime e declarei, com firmeza e concisão, as minhas motivações.
Tudo muito simples e muito claro. Não havia motivos para dúvidas e hesitações. Então o júri não fez por menos. Votou com unanimidade pela condenação. Não fiquei aborrecido com isso. Eles tinham razão. Eu era mesmo culpado. Por isso ouvi a acusação com a placidez de um oficial nazista no Tribunal de Nuremberg. Frio como o interior de uma geladeira. Impassível como um guarda no Palácio de Buckingham. Era como aquilo não fosse comigo. Como se estivessem falando de outra pessoa e não de mim.
Não movi um músculo na minha face quando o juiz abriu aquele fatídico envelope com o veredicto. Nem quando ele pronunciou a sentença. Menos ainda quando a pena foi cominada. Fiquei impávido como uma estátua de pedra, tal qual um Moal pascoano, olhando, com olhos fixos e vazios, na tela interna da minha mente, o infinito do oceano fundindo-se ao longe com o azul metileno do céu.
Minha frieza deve ter acalmado a consciência dos jurados, pois ela mostrava que eu correspondia a tudo aquilo que a acusação argumentou que eu era. Um monstro sem entranhas, um miserável sem alma, um psicopata assassino que não sentia um pingo de remorso diante da enormidade do crime que perpetrara. E nem precisava tanto. Estava tudo tão meridianamente claro, tão cristalino, que sequer se precisaria de tanta arenga para convencer o júri da minha culpa.
O que tem de ser, que seja. Eu ofendi a sociedade e peguei trinta anos de cadeia por causa disso. Que fossem cem, não me importaria. Nada me importa agora. Por isso renunciei até ao direito de apelação.
Ato 2. Minha filosofia de vida
Tudo aconteceu simplesmente porque eu me apaixonei. Nunca tinha sentido nada igual antes. Um desejo ardente de estar com uma mulher todas as horas do dia. Uma ânsia louca de abraçá-la, beijá-la, fazer amor com ela. Aquela mulher era o meu primeiro e último pensamento diário.
Deus! Como é bom se sentir assim. E como isso dói também. Uma paixão como essa é o maior dos prazeres e a mais atroz das dores!
Eu era um homem que se pode chamar de muito bem-sucedido. Perto dos quarenta anos bem vividos, naquela fase em que se está cheio de entusiasmo e com muitos planos na cabeça. Tinha uma existência para lá de confortável, invejável mesmo. Minha empresa era próspera e respeitada. Eu tinha um padrão de vida elevado, uma vida social intensa e gozava de um respeito profissional conquistado com muito trabalho e competência.
Obtive tudo isso praticando uma disciplina de vida quase espartana, que deixava pouco espaço para sentimentos pessoais e aventuras românticas mais sérias. Programei a minha vida e apliquei o meu talento e capacidade para a realização de um único objetivo: ganhar dinheiro e usufruir do prazer que ele pode proporcionar.
Com tudo isso, eu pensava, poderia comprar amigos, satisfação pessoal e até amor. Sucesso profissional e dinheiro, esses eram os meus sinônimos de felicidade, e até então eu acreditava piamente que não havia me enganado. Tinha tudo isso e era exatamente o que queria e precisava.
Durante vários anos não precisei me queixar do modo de vida que eu escolhi. Ele me satisfazia plenamente. Sentia-me feliz, estável, autossuficiente. Casei-me três vezes, tive vários relacionamentos com mulheres lindas, charmosas, gostosas. Algumas eram muito inteligentes, pois conseguiram viver bem comigo alguns bons anos (e olha que isso não é fácil) e depois me tiraram uma bela grana no momento da separação.
Nem disso eu me queixava. Afinal, sempre respeitei gente que tem boas estratégias para ganhar dinheiro. Mesmo que esse dinheiro seja baixado da minha conta bancária. Tudo bem. Nunca me importei em pagar o preço do meu prazer. Foi isso que eu comprei e foi isso mesmo que eu recebi. Elas se deram bem e eu tive o que queria delas. Todo negócio é bom quando satisfaz os dois lados.
Mas é claro que eu sabia que nada do que eu tive com elas era amor. Tinha certeza de que não era porque sempre tive consciência dos meus estados interiores. Sei quando gosto e quando não gosto. Quando estou alegre e quando estou triste. Aprendi a identificar quando estou ganhando ou perdendo na vida. Quando estou satisfeito ou insatisfeito. Nunca fui um homem dividido, incapaz de isolar e entender os meus sentimentos. Psicólogos e psiquiatras morreriam de fome se dependessem de clientes como eu. As igrejas também ficariam vazias e os profissionais da fé teriam que procurar, ou arrumar outra forma de enganar as pessoas para tirar o dinheiro delas.
Nunca me apaixonar, nunca me ligar a ninguém por laços de sentimento, de emoções profundas, de envolvimento comprometido, era uma opção consciente que eu fizera. Eu escolhera essa alternativa de vida e estava feliz com ela. Ela me dava liberdade para se relacionar com quem quisesse, na hora que eu quisesse e como quisesse. Assim, meus relacionamentos acabavam sendo praticamente negociais, daqueles que quando não estão mais produzindo os resultados desejados, a gente paga a multa contratual e desfaz o negócio sem levar para casa nada mais do que um desfalque na nossa conta bancária. Mas isso era o de menos para mim, porque dinheiro eu tinha de sobra.
Ato 3. A mulher dos meus sonhos
Foi assim até o dia em que encontrei aquela mulher. Aconteceu numa festa. Eu não a conhecia pessoalmente, mas já tinha visto a fotografia dela em jornais ou revistas. Ela não me chamara muito a atenção até então. Afinal, não sou mesmo um tipo muito visual. A mensagem visual não é muito impactante para mim. Isso significa que o que eu vejo não me impressiona imediatamente, pois logo a minha mente procura decompor a imagem para tentar descobrir o que há nela de produzido e o que sobra de natural.
Não me comovo com o que vejo nem me emprenho pelos ouvidos. Na verdade, eu sou um tipo muito sinestésico. Por isso não costumo comprar nada pela aparência, pelo designe ou pela cor. Nem pelo que se fala do produto. O que eu vejo, ou escuto, não faz minha cabeça. Sou daqueles sujeitos que quer testar, provar, pegar, tocar, cheirar, degustar, fazer um test drive antes de comprar.
Adoro o feeling da sinestesia pura. Por isso tenho absoluta certeza de que tudo aconteceu quando peguei na mão dela, no momento em que ela me cumprimentou. Ainda agora sinto o calor daquela mão na minha. Lembro-me que o aroma do hálito dela me atingiu como uma brisa, que tendo atravessado o laboratório de um perfumista, vinha me informar que uma nova e embriagante essência havia sido sintetizada com as flores que ela havia tocado.
E aquela pele macia que cobria a pequena e cinzelada mão que ela me estendeu para eu apertar...; a mão que eu apertei e em seguida beijei, muito menos para demonstrar cavalheirismo e muito mais para sentir o gosto da pele dela em meus lábios...
Ah! Com uma mulher daquela eu me tornaria até monogâmico, pensei imediatamente. Renunciaria às minhas crenças e viveria até o fim da vida em perfeita união conjugal, cumprindo à risca todas as falsas promessas que a gente faz no altar, diante do padre e das testemunhas.
Em poucos minutos de conversa e de contemplação eu já sabia que havia me apaixonado irremediavelmente. Tinha quebrado minhas próprias regras e me tornara para sempre vulnerável. Sentia-me como um cangaceiro, cujo corpo fechado havia sido aberto naquele instante por um feitiço irresistível.
Ato 4. Quem era aquela mulher
Ah! sim. Ela era uma socialite. Por isso eu tinha visto sua foto nos jornais e revistas. Uma professora universitária que fazia muito trabalho social. Aquele jantar estava sendo promovido pela ONG que ela presidia. Tratava-se de um evento organizado para arrecadar fundos para as obras de caridade que a sua entidade patrocinava.
Que maravilha! Além de linda, cativante, deslumbrante, também fazia um meritório trabalho social. Não que isso me impressionasse de qualquer modo. Não sofro dessa doença chamada responsabilidade social. Sempre achei que Deus fez os empresários para ganhar dinheiro e os intelectuais para sentir inveja deles e ficar inventando teorias escapistas de justiça social para justificar a sua incompetência em ficarem ricos; e os líderes religiosos para justificar a pobreza com ilusórias promessas de um futuro porvir em um mundo que só existe na cabeça deles. Tudo bem. Uns e outros são úteis para a dinâmica da sociedade, mas que cada um cumpra seu papel sem meter o nariz no negócio do outro. Às vezes fazemos parcerias, quando o interesse nos une, mas a coisa não deve passar disso.
Agora, quanto à aquela mulher, ela era deveras fascinante! Era perfeita. Uma professora universitária, intelectual, que se movimentava elegantemente pelos salões da sociedade paulistana, altiva como uma rainha e com a graça de uma bailarina clássica no palco! Era o autêntico modelo da intelectualidade inteligente, que faz sucesso na vida pessoal e social, sem aquele ranço do socialista invejoso que vive criticando quem tem muito dinheiro porque simplesmente ele não consegue ganhar nenhum. Também não tinha nada a ver com o capitalista envergonhado que patrocina projetos sociais para purgar a culpa que sente por ter ficado rico empesteando o ambiente com os resíduos da sua fábrica, ou do comerciante hipócrita que se sente culpado por manter um “caixa dois”, mas prefere pagar propina para o fiscal em vez de declarar corretamente os seus lucros.
Ela não. Ela parecia acreditar piamente no que fazia e tudo nela era natural.
Não tive dúvidas que ela era, realmente, a parceira que a vida inteira eu andara procurando sem saber. Nunca encontrara uma mulher de verdade, que fizesse o meu peito arder de vontade de estar com ela. Geralmente o meu ardume costumava se manifestar em outro lugar, no baixo ventre, entre as pernas. Nunca naquele lado do peito, onde fica o coração. Por isso adotara aquele comportamento de cínico inveterado, de machão imune a qualquer envolvimento que passasse de prazer, fosse o prazer do sexo, ou o que vinha da certeza de saber que os outros homens me invejavam pela capacidade que eu tinha de estar sempre acompanhado por mulheres elegantes, deslumbrantes, vistosas, gostosas, que provocavam a cobiça deles. Na verdade, sei agora, que o meu amor por aquelas mulheres nunca passou de puro erotismo e ostentação.
O convite para esse jantar me foi oferecido por um cliente. Fui porque estava avulso mesmo. Acabava de me divorciar da terceira esposa (uma das que me levou uma boa grana) e pronto para saltar sobre o cavalo que passasse encilhado embaixo da minha janela. Então fui ao tal jantar, até porque o meu cliente me garantiu que lá encontraria algumas mulheres bonitas e eu estava precisando.
O jantar não foi grande coisa. Os mesmos canapés, as mesmas massas e escalopes ao molho madeira, o mesmo vinho barato, ou uísque de segunda, que se costuma servir nessas festas. Mas quando ela veio à minha mesa e pegou na minha mão para cumprimentar-me, então o raio caiu em cheio na minha cabeça. Aquele rosto angelical, com aquela cascata de cabelos castanhos claros caindo em cachos sobre os ombros esculturais, aqueles lábios rubros e sedosos, os olhos de um azul profundo e tranquilizador, emoldurados em um conjunto que exibia um deslumbrante espetáculo de beleza e magia sedutora, onde cada olhar, cada palavra pronunciada entravam como promessas deliciosas nos meus sentidos, era algo simplesmente avassalador. Eu não conseguia ver, ouvir, ou pensar em mais nada, a não ser naqueles lábios carnudos, que se moviam feito pétalas da mais perfumada rosa, sendo acariciadas pelo vento.
Ato 5. A abordagem
Ah! sou romântico, isso sou. Não por inclinação de personalidade, mas por razões práticas mesmo. Sempre achei que uma postura romântica é uma eficiente ferramenta de sedução e eu aprendi a usá-la bem. Descobri que os homens que abrem a porta do carro para a mulher, puxam a cadeira nos restaurantes para ela se sentar, mandam flores dia sim, dia não, e nunca criticam abertamente itens da sua maquiagem ou do guarda-roupa, têm muitas vantagens sobre aqueles que não fazem nada disso. Eu sei que o cavalheirismo é compensador. Se os homens soubessem o quanto ele rende nesse tipo de investimento, todos aplicariam um pouco de si mesmos nesse verniz e nenhuma mulher precisaria reclamar da insensibilidade masculina.
Durante toda aquela noite não tirei meus olhos dela. “Deus! O que fizestes comigo? Foi castigo por eu nunca ter acreditado que existias? Foi por isso que pusestes aquela deusa na minha frente, como a dizer-me: ─ Negue-me agora, seu filho da puta! Agora que te mostrei que a divindade existe e o paraíso é uma realidade!”
Falei com ela naquela noite e disse que a minha empresa estava disposta a patrocinar um dos projetos de sua ONG. Não estava mentindo. Tenho no orçamento da minha empresa uma verba para essas coisas. Cumprimos, com isso, a nossa parte nessa nova idiotice que esses socialistas de araque inventaram ― a tal noção de responsabilidade social ― e melhoramos a nossa imagem junto ao mercado. Sei que tudo isso é uma baita hipocrisia, mas o sucesso nos negócios exige algumas concessões. A hipocrisia é a maquiagem dos homens bem-sucedidos e a principal alavanca dos políticos.
Marcamos um almoço para dali a dois dias. Eu estava ansioso, mas a razão dizia que eu não devia dar passos tão rápidos. A minha libido reclamou, mas a minha razão sempre foi uma conselheira de respeito. A experiência me ensinou que as mulheres que realmente valem a pena não gostam de abordagens muito explícitas já no primeiro encontro. Elas gostam de namorar um pouco. Querem saber com quem estão se envolvendo antes de se abrir para um relacionamento mais profundo.
Fomos jantar no Gigeto. Eu queria impressionar. Fazia questão de mostrar que não sou um tarado que se atira em cima das mulheres logo no primeiro encontro. Jantar num lugar fino sempre cria um clima de romantismo, sem resvalar para o lugar comum. Se a coisa não rola, sempre fica o charme e o prazer da noitada.
Adotei uma estratégia de aproximação bastante convencional. Falei da minha empresa, dos meus planos, ouvi os dela, deixei-a falar bastante sobre o seu trabalho, sobre os projetos da ONG, as ideias que ela gostaria de implementar. Eu sei que esse tipo de mulher gosta disso. Adoram ser tratadas como pessoas que têm coisas mais valiosas para negociar, além do sexo. E ela na verdade, tinha mesmo. Além de linda e cativante, era uma mulher bem-preparada, inteligente, de conversação muito agradável. Combinação difícil de encontrar numa pessoa só. Companhia perfeita para um homem como eu.
Indaguei, com muito cuidado, sobre a vida pessoal dela. Aí veio a decepção. Ela era casada com um advogado. Acho que devo ter sido muito explicito em minha linguagem não verbal, pois ela logo percebeu a minha intenção, embora eu tenha feito um imenso esforço para não mostrar o que estava sentindo com aquela revelação. Mulher tem muito feeling para essas coisas. Daí, acredito, a convicção com que me ela falou da sua paixão pelo marido.
Do jeito que ela falou, se eu fosse mulher, teria me apaixonado pelo tal sujeito. Ele era perfeito. Inteligente, versátil, compreensivo, amoroso, eficiente em seu trabalho, e pelo visto, em tudo o mais. Mesmo acreditando que não existe um homem assim – pois em tudo existe um componente de custo e benefício que nos força a tirar de um lugar para pôr em outro –, eu ouvi tudo com um silêncio respeitoso por fora e uma tempestade de inveja e rancor por dentro. Acredito ter sido a soma desses sentimentos que denunciou o meu estado interno, pois ele deve ter se estampado em meu rosto com uma nitidez inconfundível enquanto ela falava das excelências do marido e do quanto era feliz no casamento. Pudera, eu estava queimando por dentro como um vulcão, ardendo de despeito e ódio por aquele indivíduo.
Mulher é um ser muito sutil. Quando quer, ela sabe afastar qualquer aproximação indesejável. Basta mostrar, com muita convicção, que nenhum novo romance poderá ser melhor do aquele que ela está vivendo no momento. Que ninguém será capaz de melhorar o que ela já tem. E para o homem que se aventura numa empreitada dessas, nada pior do que saber que entra num jogo onde suas chances de vencer estão reduzidas a zero.
Mas eu não sou de desistir tão fácil. Ainda mais com aquela paixão que me consumia como um fogo inextinguível que se acendia de manhã, quando eu acordava, e me queimava até o último momento em que eu conseguia fechar os olhos, à noite, bêbado do sono que não chegava, e não raras vezes de álcool mesmo, que eu tomava para dormir, justamente porque não conseguia deixar de pensar naquela mulher.
Fui para casa naquela noite moído de inveja e frustração. Mas as tratativas para os investimentos que eu prometera fazer na sua ONG iriam me dar a oportunidade de manter mais alguns contatos com ela. Isso me daria a chance de fazer mais algumas investidas, para tentar penetrar naquela fortaleza de virtude e perfeição estética, que havia me humilhado justamente naquele ponto nevrálgico, que era o meu orgulho de machão conquistador. Assim, ao longo dos demais encontros, usei todos os meus trunfos, meu charme, meu dinheiro, minhas promessas de eterno amor, mas nada disso adiantou. Por fim, depois da quarta investida, ela me disse com uma firmeza que não deixava dúvidas: “Por favor, não insista mais. Eu não quero ser indelicada com você. Mas eu amo de verdade meu marido. E o amarei enquanto ele viver.”
Ato 6. A estratégia
“Enquanto ele viver”. Essa frase ficou ressoando no meu cérebro como se fosse um mantra diabólico. “Enquanto ele viver”. Foi aí que eu tive o maldito insight. “Então, se o problema é esse, removamos o problema.”
Contratar um matador em São Paulo é mais fácil do que achar um bom encanador. Basta ter dinheiro e tutano para fazer uma coisa dessas. Eu tinha os dois. E também tinha amigos na polícia. Alguns deles faziam bico na minha empresa como seguranças. Disse a um deles (eu já tinha informações que o cara era do ramo) que estava sendo ameaçado por um antigo funcionário que havia sido despedido da empresa por justa causa. Estava preocupado com isso porque o sujeito já mostrara ser violento e perigoso. Ele entendeu logo o que eu queria. Nem precisei dar detalhes. O danado era mesmo do ramo. Piscou um olho e disse para eu não me preocupar. Era só dar a ficha do indivíduo, que eu podia dormir em paz. Serviço limpo e garantido. Faria parecer um assalto. Coisa tão comum e corriqueira nesta cidade, que nem a polícia se importa mais. No fim vira tudo estatística.
Os meus motivos não interessavam, só o quanto eu podia pagar. Combinamos o preço, tratamos de todos os detalhes, mostrei uma foto do tal sujeito, dei o endereço, disse quando ele poderia ser pego sozinho, enfim, municiei o prestador de serviços com todas as informações necessárias.
Daí para frente era só ficar esperando pelas notícias. Tínhamos combinado que eu pagaria a metade antes e o resto depois que o serviço fosse feito. Fiquei aguardando, com uma ansiedade mortal.
Três dias depois, à noite, recebi um telefonema bem lacônico. “Dê uma olhada nos jornais de amanhã”. Logo de manhãzinha corri a uma banca e comprei o jornal. Nas páginas policiais estava a chamada. “Casal assassinado ontem á noite em seu apartamento.” A matéria dizia: “Ontem à noite um homem e uma mulher foram encontrados mortos em seu apartamento na Rua... Ele foi identificado como sendo o advogado... e ela a professora ..., presidente da Associação... Tudo indica que se trata de um latrocínio, pois o assassino revirou o apartamento todo e segundo a perícia, levou dinheiro e algumas joias. A polícia está examinando o local em busca de pistas e já requisitou todas as fitas gravadas pelo sistema de segurança do prédio e locais vizinhos. Nas próximas horas as autoridades policiais esperam ter alguma novidade sobre o caso (...)”
Meu coração deu um salto e todo o meu corpo esfriou, como se naquele momento eu tivesse sido trancado dentro de um freezer. Era como se eu tivesse morrido. Aliás, tenho certeza de que a morte de verdade não será tão fria, opressiva e dilacerante como foi aquele golpe que me atingiu direto no coração, com um punhal que me estivesse sendo espetado ali, num golpe certeiro e fatal.
Não fui trabalhar naquele dia. Fiquei no apartamento, me consumindo numa angústia dilacerante, opressiva, mortal, esperando o matador vir buscar o restante do dinheiro. O que fizera aquele imbecil? Ele destruíra também o objeto dos meus desejos, o prêmio pelo qual eu me envolvera naquela aventura insana. Não sabia se o que eu sentia era medo ou ódio. Ou dor e desespero. O que aconteceria agora? Que loucura eu fizera? Era aquilo um castigo de Deus? Uma ironia do destino? O diabo estaria brincando comigo?
Ato 7. O desfecho
─ Meu Deus! O que você fez, imbecil? Eu não lhe dei todas as indicações? Não lhe disse para ir exatamente naquele dia e naquela hora para pegar o cara sozinho? Por que você matou a mulher? Era só dele que eu queria me livrar.
─ É verdade patrão, o senhor falou, estava tudo certo, mas não deu não. Eu tinha acabado de despachar a encomenda e já estava pronto para sair. Antes dei uma revirada no local e peguei algumas joias e um pouco de dinheiro para simular um assalto. Mas, de repente, aquela mulher entrou no apartamento. Ela havia saído como o senhor disse, mas não sei por que cargas d’agua voltou. Acho que esqueceu alguma coisa. Ela me viu e começou a gritar. O senhor sabe, eu não podia ser reconhecido, por isso atirei nela também. Mas não se preocupe que eu não vou lhe cobrar por isso.
Ah! Maldito seja aquele desgraçado! E maldito seja eu também pelo resto da minha agora curta e odiosa existência e por toda a eternidade também, se algo assim existir. Para que continuar vivendo agora?
Confesso que fiquei até satisfeito quando a polícia pegou aquele idiota e ele entregou tudo. Ele não tinha argumentos, nem álibis para destruir as provas que as câmeras de televisão do prédio proveram contra ele, e eu não tinha motivação e nem vontade de negar a minha participação nesse sórdido negócio.
A promotoria e a imprensa adoram casos como esse. A mídia exulta quando o escândalo aflora na parte fina da sociedade. Todo mundo sabe que a podridão, neste nosso mundo grã-fino é um lugar comum, mas ela quase nunca é percebida porque costuma ser disfarçada com o perfume do dinheiro e encoberta com a máscara do poder. Na classe pobre ela é comum e banalizada. Como dá poucos pontos no Ibope, a mídia a ignora e o Ministério Público a trata como rotina. Agora, um empresário que encomenda a morte de um advogado bem-sucedido porque queria ficar com a mulher dele e contrata um pistoleiro trapalhão que mata os dois, que prato poderia ser mais saboroso para um promotor com alma de mariposa e para um repórter com DNA de abutre?
Eis porque fui condenado a trinta anos de cadeia. Mas isso é o que menos me aborrece. Afinal, eu mereço. E além de merecer, que me importa a vida agora, se tudo que eu mais desejava já não existe? Na verdade, já estou morto também. Esta minha primeira morte antecede a segunda, que deve ocorrer esta noite. Eu a estou digerindo como uma espécie de antepasto, de sabor igual aqueles que eu comia nos jantares caros, naqueles restaurantes bacanas que eu ia.
O quanto tudo isso me parece vazio e sem propósito agora... Não sou muito dado a tiradas filosóficas, mas não posso deixar de me sentir como aquele personagem de um romance de Sartre, que via a vida como um longo rosário de ações destinadas a preencher um vazio sem fim. Uma jornada inglória, besta e inútil, entre o Ser e o Nada.
Esta noite, no escuro da minha cela, vou dar um fim definitivo aos meus miseráveis dias. Para quem tem recursos, tudo pode ser obtido no nosso sistema penitenciário. O veneno que vai me livrar dessa agonia já está comigo.
Se tudo que fazemos na vida se destina a preencher um vazio que nunca se esgota, então algumas gotas a mais, ou a menos, não farão diferença no conteúdo deste vaso de amarguras.
Talvez eu me encontre com a minha deusa, nessa outra vida que dizem existir depois desta. Eu nunca acreditei nisso, mas hoje, antes de realizar esse ato supremo, vou rezar com muita devoção para que isso seja verdade. Quem sabe, livre destas loucas memórias de um louco amor, nós possamos dar um final diferente para esta história.
Se não, irei arder para sempre no inferno, se esse lugar efetivamente existir. Mas isso não me amedronta nem um pouco. Não acredito que a minha existência nesse lugar de horrores possa ser menos suportável que essa dor que estou sentindo agora.