A visão de Jorge Luís Borges
Na visão do grande poeta argentino Jorge Luís Borges, a grande tradição judaica conhecida como Cabalá é uma metáfora do pensamento que pode servir-nos para pensar, especular, poetizar, viajar pelas esferas místicas do universo e voltar para a terra com uma compreensão mais completa dele. Seria, outrossim, uma forma de ver os mistérios do cosmo com uma nova visão que envolve, não só a percepção dos sentidos, mas também a nossa ligação com a própria realidade cósmica. Visão essa que só pode ser percebida pela parte mais sutil do nosso aparelho perceptivo, que é a nossa mente.
Borges tem razão. O Sepher há Zhoar, Bíblia cabalística por excelência, é uma extraordinária aventura espiritual vivida por um grupo de rabinos que se isolaram da vida comunal para buscar nos mistérios da Bíblia o sentido da vida e do próprio universo como realização divina.
E como todas as aventuras vividas à nível de espírito, dela não se volta com a mesma perspectiva da realidade. Como bem salienta o historiador Gershon Scholem em sua análise histórica da tradição cabalística, os cientistas desdenham da metafísica, mas não conseguem se desvencilhar dela quando pesquisam as profundezas dos mistérios da natureza.[1]
Essa é uma verdade que não pode ser contestada hoje. Pelo menos pelos pesquisadores da física quântica, que estão percebendo no comportamento do mais íntimo da matéria universal (os átomos) a existência de uma realidade que muito se aproxima das intuições dos místicos em relação ao mundo que eles chamam de espiritual.
Borges era um poeta genial que sabia, melhor que qualquer outro pensador, explorar as profundezas da consciência universal para criar metáforas do pensamento. Algumas dessas metáforas, como as que constam do conto “O Aleph”, colocaram muitos críticos literários positivistas em dificuldade para explicá-la. Nesse conto, a descrição do conceito místico que os cabalistas desenvolveram em torno dessa letra é um magnífico exemplo de uma metáfora que só agora, muitos anos depois, começa a fazer sentido para os cientistas.
O Aleph é um conto cabalístico publicado pela primeira vez em 1949. Nele Borges descreve sua experiência mística com o conceito cabalístico da criação do universo através da sefirá Kether, que na doutrina da Cabalá é a primeira floração da Árvore da Vida. A Árvore da Vida, como sabemos, é um diagrama filosófico místico desenvolvido pelos cabalistas para mostrar como o universo é construído através das emanações da Potência Divina, concentrada em dez esferas de manifestações teúrgicas, que resultam no mundo real.[2]
A letra Aleph, que é a primeira do alfabeto hebraico, simboliza o fenômeno luminoso que se concentra na primeira séfira da Arvore da Vida. Na visão do poeta argentino o universo inteiro está concentrado em uma esfera de dois centímetros de diâmetro, onde todo o passado, presente e futuro do mundo pode ser contemplado no exato momento de sua ocorrência.[3]
A visão científica do fenômeno
Analogicamente, podemos comparar a visão de Borges à proposição do astrônomo George Lemaitre sobre a origem do universo, que ele identifica na explosão de uma espécie de átomo, ocorrida cerca de quatorze bilhões de anos atrás. Essa proposição, que está na origem do fenômeno do Big Bang, é a de que no início, o universo estava concentrado em um ponto único de altíssima densidade energética, que não podendo se conter em um espaço tão pequeno explodiu, dando origem ao mundo físico. [4]
Esse é um conceito interessante que hoje é aceito pela grande maioria dos cientistas que estudam a origem do universo. Stephen Hawking, um dos mais acreditados cientistas atualidade, em um de seus trabalhos descreve essa visão da seguinte forma: “Há cerca de 15 bilhões de anos todas (as galáxias) teriam estado umas sobre as outras, e a densidade teria sido enorme. Esse estado foi denominado átomo primordial pelo sacerdote católico Georges Lemaitre, o primeiro a investigar a origem do universo que agora chamamos de Big-Bang.” A partir desse momento, segundo essa tese, o universo hoje conhecido, que estava contido nessa região extremamente carregada de energia, tornou-se uma imensa bolha que nunca mais deixou de se expandir.[5]
Ben Yochai, tido como o codificador da Cabalá, que resultou no livro conhecido como Sepher há Zhoar, descreve essa visão da seguinte forma: “Ele (Deus) é o Ancião dos Anciões; o Mistério de todos os Mistérios; o mais Desconhecido do Desconhecido. Ele tem uma certa forma que nos é conhecida (o universo material) e mesmo assim, Ele nos é desconhecido. Sua vestimenta nos aparece como branca: seu aspecto, brilhante. Ele está sentado sobre um trono de faíscas de fogo que está submetido à Sua Vontade. Ele não tem princípio nem fim. Antes que pusesse a sua Coroa para estabelecer o Seu Reinado, Ele delineou e encerrou o Ilimitado dentro de limites. Correu uma cortina diante D’Ele, e nela ele começou a desenhar Seu Reinado. Mas nada existia antes, exceto o Seu Nome.”[6]
O Ancião dos Anciões referido pelo mestre cabalista é o tempo. Os cientistas são unanimes em afirmar que o universo começou a ser construído concomitantemente com ele. Hawking estima 15 bilhões de anos para esse começo. A ideia aqui expressa é a de que, antes do início do universo real, e concomitantemente, do tempo, Deus existia somente em forma de Potência (energia). Essa energia concentrou-se em um ponto que a Cabalá chama de Tzim Tzum. Esse ponto, como bem viu Borges em sua visão do Aleph, concentrava o universo em todas as suas características de tempo e qualidades dentro de uma esfera de dois centímetros de diâmetro. O passado, o presente e o futuro já estavam delineados dentro dele.
Tzim Tzum é a palavra hebraica que significa contração. A ideia aqui expressa é a de que Deus contraiu (condensou-se) a si mesmo em um ponto (um átomo), para poder realizar a Criação. Esse átomo, por conter uma infinita densidade energética, desintegrou-se em uma grande explosão de luz: o Big Bang dos cientistas. É por isso que o cronista bíblico, ao dissertar sobre a Criação do mundo diz: “E Disse: haja luz. E a luz foi feita.”[7]
É nesse sentido que encontramos no Zhoar a mística descrição desse fenômeno através das palavras de Ben Yochai: “Eis que eu vejo todas as luzes brilhando do outro lado da cortina. O Santíssimo estendeu uma cortina sobre quatro pilares, para as quatro direções do mundo. Um desses pilares vai desde o Mundo Inferior ao Superior (...)Entre os pilares dezoito pedestais iluminados pela Luz Suprema.” [8]
A cortina a que se refere o mestre cabalista é o que a Bíblia chama de escuridão sobre a face do abismo. Nesse mesmo sentido é que físicos teóricos como Chopra e Kafatos dizem:”o big bang, que fez um universo inteiro emergir instantaneamente, foi uma mudança de estado que não pode ser explicada como algo que ocorreu em um lugar ou hora específicos. Durante a Era de Planck, todo lugar e nenhum lugar eram a mesma coisa, assim como antes e depois. Apesar do muro que nos impede de testemunhar a Era de Planck, poderíamos chamá-la de uma fase de transição por meio da qual um estado se transformava em outro e o virtual se tornava manifesto. É bastante intrigante pensar que, estando aqui, onde os relógios trabalham, percebemos que, da mesma forma que um elétron salta para uma nova camada, o mesmo ocorreu com toda a criação quase 14 bilhões de anos atrás.”[9]
Essas palavras foram escritas pelos referidos cientistas a partir das observações do comportamento dos átomos num acelerador de partículas, em que se pesquisava como a energia se transforma em matéria, ou seja, como a matéria que constitui o universo é formada. A Era de Planck, a qual eles se referem é tida pelos pesquisadores como sendo a era anterior à formação do universo real, quando a chamada “matéria escura”, ou seja, a energia pura ainda não havia se convertido em massa, dando nascimento ao universo como o vemos hoje. Analogicamente, a Era de Planck pode ser entendida como uma “cortina” que cobre toda a visão do mistério oculto que está na origem do cosmo. É nesse sentido que vemos a visão cabalista cantando um afinado dueto com as descobertas da moderna física, especialmente aquela que pesquisa a intimidade da matéria.
(continua)
[1] Gershon Scholem- Copyright © 1962 by Walter de Gruyter & Co. Berlin Engolis translato copyright © 1987 by The Jewish Publication Society First English edition.
[2] Teurgia, do grego, Teurgia, do grego θεουργία significa (“obra de Deus")
[3] O Aleph (no original, El Aleph) é um livro de contos escrito por Jorge Luís Borges, com primeira publicação em 1949. Ele contém, entre outros, o conto que dá título ao livro. Nesse livro, o grande escritor e poeta argentino aborda vários temas como a imortalidade, a identidade, a antimatéria, a eternidade, o tempo etc., com uma alta dose de espiritualidade, fazendo dessa obra um clássico da literatura mística.
[4] Georges-Henri Édouard Lemaître, (1894 - 1966) foi um padre católico belga, que se tornou famoso como astrônomo, cosmólogo e físico. Em 1931 publicou artigo na revista Fortune, defendendo uma teoria que explicava a origem do universo a partir do chamado átomo primordial, também conhecido como "ovo cósmico", que posteriormente foi desenvolvida por George Gamov, dando origem à chamada teoria do Big Bang.
[5] Stephen Hawking- O Universo Em Uma Casca De Noz, pg. 22.
[6] Sepher Há Zhoar- O Livro do Esplendor, pg. 84
[7] Gênesis, 1:4
[8] Idem Zhoar, pg. 77
[9] Deepack Chopra e Menos Kafatos- Você é o Universo- Ed. Alaúde, 2017