Na obra mais conhecida do filósofo alemão Friedrich Nietzsche encontramos os seguintes dizeres: “Quem é o grande dragão a que o espírito não quer chamar Deus nem Senhor? “Você deve”: assim se chama o grande dragão; porém, o espírito do dragão diz: “eu quero”.
O “tu deves” está plantado no seu caminho, como animal escamoso de fulgor áureo; e em cada uma de suas escamas brilha em douradas letras: “Tu deves”!
Valores milenários cintilam nessas escamas, e o mais poderoso dos dragões assim fala: “Em mim cintila o valor de todas as coisas”!
Meus irmãos, que falta faz o valor em todas as coisas!
Todos os valores já criados foram, e eu sou todos eles. Para o futuro não deverá existir o “eu quero”. Assim disse o dragão.
Meus irmãos, que falta faz o leão ao espírito? Não bastará a besta de carga que renuncia e cultua?
Criar novos valores é coisa que o leão ainda não consegue: contudo, criar uma liberdade para a nova criação, isso o consegue o poder do leão.” [1]
Não é segredo para ninguém que Nietzsche era antissemita e ferrenho inimigo da cultura judaico-cristã, que ele tachava de pobreza e conformidade lastimosa. Na linguagem tonitruante do “Assim Falava Zaratustra” ele anunciou a morte de Deus (o Deus judaico cristão) e o despertar do homem-deus, o super-homem, galante guerreiro, libertado da moral tacanha e servil do indivíduo contaminado pelas crenças de um povo que durante toda a sua história sempre foi escravo de um Deus ciumento, injusto e cruel, que ao invés de fazer dos seus escolhidos um modelo de felicidade, força e virtude, só o submeteu a um rol imenso de desgraças, servidão e agruras. Algumas das suas diatribes contra a cultura judaico-cristã foram usadas pelos nazistas para justificar as atrocidades que eles cometeram contra os judeus e os outros povos que eles julgavam inferiores.
O Zaratustra de Nietzsche é um profeta que contesta Moisés e todos os profetas da Bíblia, em nome de Zeus e dos deuses olímpicos da Grécia e Roma, que tinham ascendência sobre o homem, mas o temiam como se ele fosse o principal dos seus opositores.
No entanto, o “Assim Falava Zaratustra”, na verdade acaba sendo uma espécie de Zhoar produzido por um filósofo antissemita para contrastar a grande obra cabalista dos rabinos judeus. Se o contraditório filósofo alemão não teve essa intenção, pelo menos uma coisa a nós parece bastante clara: “Assim Falava Zaratustra” foi inspirado no Zhoar. A sua composição, abusiva em termos de imagens psicodélicas, e permeada de simbolismos, metáforas e alusões a temas tão caros a místicos e taumaturgos, lembra demais o Livro do Esplendor para que possa negar que uma coisa não tem a ver com outra.
A composição dessa obra magistral não foi apenas uma inspiração de Nietzsche para combater uma estrutura que ele, como vários intelectuais na Alemanha e outros países da Europa achavam que estava destruindo o espírito ocidental. Na verdade, há vários séculos, desde o início da Idade Moderna, e principalmente com o advento da chamada Renascença, um movimento intelectual de repúdio à chamada cultura judaico-cristã havia sido instaurado em varios países europeus e tinha nos judeus o seu principal centro de responsabilização.
Nietzsche, como os demais autores e intelectuais antissemitas sabiam, e tinham convicção de que uma grande parte da doutrina que havia informado o Renascimento cultural da Europa tinha sido inspirado pelas novas ideias plantadas pela interpretação cabalista da Bíblia e pelas inspirações místicas contidas no Zhoar.
Como já dissemos em outra obra da nossa autoria, a Cabala mística foi iniciada pelos filósofos neoplatônicos, tendo o judeu Filon de Alexandria como seu precursor. Depois ela foi adotada por vários escritores e místicos gnósticos durante os primeiros séculos da era cristã e largamente ampliada pelos cabalistas medievais. E viria a alcançar o seu apogeu como doutrina no início da Idade Moderna, com os chamados pensadores do chamado movimento Rosa–Cruz.
Esse apogeu teve no cabalista Isaac Lúria o seu grande inspirador. [2] Luria introduziu na doutrina da Cabala um sistema de moral que substituiu a ideia messiânica de uma salvação futura, em um mundo alhures, incognoscível e inatingível pela mente humana, como o que era pregado pelos doutrinadores judaico-cristãos, por uma doutrina de salvação aqui e agora. Esse mundo seria atingido pela adoção de um comportamento ético e moral, que segundo ele, estava todo previsto na Torá. Era um sistema que valia não só para a alma do indivíduo judeu, mas também para toda a humanidade, porque a Torá não era um livro escrito só para Israel. Com isso ele lançou a tese de que a redenção espiritual estava vinculada à redenção social e ela só viria quando ambas fossem realizadas.
Eram exatamente os argumentos que os pensadores da chamada Renascença estavam procurando para justificar as suas especulações. Assim, como diz Gerson Scholem, se o messianismo sabataísta forneceu o estofo para os argumentos sociológicos dos teóricos do Iluminismo, foi Isaac Lúria quem lhes deu a base para a sustentação teológica de suas teses pois, como ele diz “o desejo de libertação total, que desempenhou um papel tão trágico no desenvolvimento do niilismo sabataísta, não foi de maneira alguma puramente uma força autodestrutiva; ao contrário, debaixo da superfície da ausência da lei, do antinomismo e da negação catastrófica, poderosas forças construtivas estavam em ação.” [3]
Scholem se refere ao verdadeiro reboliço que o sabataísmo provocou nas hostes mais conservadoras do judaísmo com as ideias de um livre arbítrio que concedia ao homem o leme de seu próprio destino. Nesse sentido, o descanso sabático, introduzido pela locução bíblica que falava do descanso de Deus após a criação do homem, era uma verdadeira introdução ao niilismo, no sentido de que tudo, a partir da chegada no homem no cenário da criação, passava a ser de sua responsabilidade. Era como se Deus se ausentasse do mundo a partir desse momento e o universo passasse a ser criação da mente humana.
As ideias desenvolvidas por Luria e os cabalistas que aderiram a esse sistema de interpretação da Bíblia exerceram um papel preponderante na formação do pensamento ocidental, especialmente naquele que emergiu da Reforma protestante. Como diz o referido autor, no plano teórico, essa nova visão trazida pelo Zhoar preparou o terreno para o moderno secularismo e o surgimento do chamado Século das Luzes. Isso porque a Lei, expressa na Torá, agora era vista com claros contornos visionários, no sentido de que ela “não é mais que uma sombra do Divino Nome, do mesmo modo que se pode falar em uma sombra da Lei, cuja projeção é cada vez mais longa ao redor da vida dos judeus. Mas, na Cabala, o pétreo muro da Lei se faz gradualmente, de forma transparente. (...) Essa alquimia da Lei é um dos mais profundos paradoxos da Cabala (...).[4]
Com isso podemos entender que a Lei, tal como expressa na Torá, não foi dada por Deus para ser entendida e praticada como uma rígida displicina que condiciona o comportamento humano a um único padrão de conduta; ao contrário, ela serve para orientar o desenvolvimento do universo como se ele fosse um organismo em construção, que busca, em cada conformação, o seu melhor desenho.
A conclusão que se tirava dessa doutrina era a de que o homem, por livre arbítrio, sua própria escolha, podia escolher o seu caminho e não estava mais submisso ao poder coercitivo da interpretação literal que dela davam os talmudistas conservadores, que interpretavam a Torá como se ela fosse um rígido código de leis cuja interpretação devia ser literal.
Na vida espiritual outra grande mudança se operava com as teorizações sobre o carma e a transmigração das almas, desenvolvidas por Lúria e seus seguidores, pois agora podia o próprio homem influir no seu destino. A projeção dessas ideias no plano da redenção social foi enorme, pois aqui o homem passava a ser o próprio responsável por ela. Era a libertação total das amarras psíquicas, que tanto o judaísmo ortodoxo, quanto a doutrina da Igreja Católica haviam lançado sobre o espírito do homem medieval. É possível aquilatar o peso que tais ideias devem ter tido numa sociedade que estava, justamente naquele momento, vivendo os episódios que levaram à chamada Reforma Protestante e ao movimento que se convencionou chamar de Renascimento.
Pois nasceram, a partir dessas ideias, as diversas inspirações utópicas dos intelectuais renascentistas e um grande anseio espiritual pelo estabelecimento de uma nova ordem mundial. Essa disposição pode ser recenseada principalmente nas místicas aspirações dos pensadores do movimento Rosacruz e outros movimentos religiosos, políticos e filosóficos, dentre os quais um dos mais importantes foi a Maçonaria, no início do século XVIII.[5]
Com essa nova visão do mundo, justificadas na própria Torá pela interpretação cabalista, o “tu deves” foi substituído pelo “tu podes”. Essa, entre outras, é a principal razão de pensarmos que Nietzsche, na sua psicodélica visão atribuída ao profeta persa Zaratustra, se inspirou no Zhoar, o Livro do Esplendor.[6] Tudo, nessa obra, faz lembrar o delírio cabalista, desde o estilo literário, as visões gnósticas de um universo que reflete continuamente a si mesmo, até a redenção do homem como senhor do seu próprio destino, ele mesmo liberto por Deus para ser o Senhor da terra e coautor do universo.
O super homem de Nietszche nada mais é do que o Homem Universal da visão cabalista. O homem sem medo e sem pecado, porque não tem a consciência do bem e do mal, mas apenas uma consciência que o leva a sobreviver. E nessa luta para sobreviver, sobrepor-se a tudo e a todos e a todos. Por essa e por outras razões é que vemos em Nietszche um cabalista disfarçado.
[1] Nietzsche- Assim falava Zaratustra- 1979- Ed. Hemus
[2] A obra em questão é “Cabala e Maçonaria”, livro publicado pela Editora Madras em 2018.
[3] Cabala e Contra História, citado, pg. 101. O sabataísmo é uma corrente do pensamento judaico fundada por Shabatai Tizvi (1626 –1676) famoso rabino judeu-turco que se auto nomeou Messias e deu origem à doutrina que leva o seu nome. Essa doutrina também é conhecida como messianismo.
[4] Idem, pg. 96.
[5] Ver, nesse sentido, as obras de Frances Yates, Giordano Bruno e a Tradição Hermética e o Iluminismo Rosacruz, na qual essa autora destaca a importância do movimento Rosacruz no estabelecimento da cultura renascentista. Essas obras foram publicadas no Brasil pela Editora Cultrix.
[6]Zaratustra, que também ficou conhecido pelo nome grego Zoroastro, (Ζωροάστρη), foi um profeta e poeta persa (atual Iran) que viveu, segundo as fontes mais acreditadas, no século VII a.C. Ele foi o fundador da religião conhecida como Mazdeísmo, que muitos historiadores afirmam ser a primeira religião monoteísta da História, embora haja quem conteste essa afirmação pelo fato de o Mazdeísmo estar baseado na crença da existência de dois deuses: um que presidia o bem e outro que presidia o mal. Esse conceito seria depois desenvolvido em um sistema filosófico que ficou conhecido como Maniqueísmo, por causa do seu fundador, o filósofo Maniqueu.