João Anatalino

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UMA PALAVRA SOBRE O ZEPHER HÁ ZHOAR

 

 

O Sepher há Zhoar é a Bíblia dos judeus místicos denominados sefardins.[1] Trata-se de uma composição teológica escrita em forma de poesia, onde predomina a imaginação, o simbolismo e a inspiração própria de pessoas que viveram uma experiência transcendental de extraordinária profundidade e aproveitaram o caráter extremamente sutil do alfabeto hebraico para transformar tudo em um clássico literário que antecede as mais originais obras dos movimentos psicodélicos modernos. [2]

Se a Bíblia escrita nos provoca algumas perplexidades, em face do senso crítico que nos é induzido pela nossa civilização científica - positivista por excelência -, o Zhoar, por sua vez, nos leva de volta ao ambiente espiritual que informou a sua produção. Esse ambiente são os místicos anos dos primeiros séculos do segundo milênio na Europa Ocidental, particularmente nas regiões conhecidas como SeptímanIa e Provença respectivamente, onde também medrou a extraordinária experiência dos Cátaros e dos Cavaleiros Templários, que ainda hoje despertam tanto interesse midiático.[3]

Em outra ocasião, nesta mesma obra, falaremos dos antecedentes da tradição zhoárica, mas por ora diremos que o Zhoar é um produto do inconsciente de pessoas que viveram naturalmente uma experiência mística que teve a capacidade de penetrar na consciência cósmica do universo para dela extrair imagens do Inconsciente Coletivo, na exata concepção em que Jung a intuiu.[4]

Dessa forma, o Zhoar nos reconecta com a alma do Cosmo, devolvendo-nos aquela percepção que foi perdida no cultivo da lógica pura dos fatos e na procura de um sentido prático para a vida. Ele recupera o amor espiritual - que substantiva todos os demais tipos de amor, seja ele o amor divino, fraterno, romântico –, enfim, todos os sentimentos que nos levam ao êxtase.

O leitor do Zhoar passa a ver a Bíblia com outros olhos. Não apenas os olhos que veem o dogma, a mensagem teológica, a crença pura e simples em um Deus que age como um ditador que não precisa ser compreendido, mas que deve ser temido, como se o temor fosse sinônimo de amor. Ao contrário, o Zhoar nos coloca em estreita e sensível relação com o Infinito a partir de uma visão que é lírica, romântica, quase onírica, carregada de poesia e enlevamento.

Ele nos leva a fugir de tudo que uma mente chumbada no material e concreto espera encontrar em um livro. E nos faz sentir que, de fato, existe uma realidade que, embora esteja além do nosso conhecimento consciente e não possamos alcançá-la com os sentidos neurais, ela está conectada, de uma forma envolvente e lúdica, com a nossa mente mais profunda.

Dessa forma restabelece a conexão com a realidade cósmica, que a nossa mente consciente mitiga em favor de uma necessidade neurológica que nos é induzida pela própria vida, ou seja, a de se movimentar em um universo racional, onde tudo precisa ser explicado e compreendido.

O Zhoar, na verdade, é o retrato do inconsciente de um povo – o povo judaico. Nele se reflete a nostalgia de indivíduos privados da sua terra e de seu país, mas que, ciosos da sua nacionalidade buscam manter a identidade através de uma tradição milenar. Mostra que a Torá, o Shabatt e a língua hebraica são os três pilares que ajudam o povo de Israel a manter essa tradição em meio à uma saga de ascensões e quedas, exílios e diásporas, limpezas étnicas e outras tragédias vividas ao longo da sua extraordinária história.

E nesse sentido que podemos entender o caráter onírico, romântico e até psicodélico que sentimos nessa obra invulgar. Nela a nação de Israel aparece como uma noiva que um amante - o próprio Deus-, escolhe para ser a sua amada. Perdida e mutilada em meio à uma epopeia épica onde enfrenta as mais terríveis experiências, ela só poderá ser resgatada por um herói que o seu divino amante suscitará para essa tarefa: o Messias. Mas em meio a idas e vindas de uma humanidade caótica e perdida em suas próprias contradições, a noiva Israel, ela mesma se torna o Messias Salvador, encarnando o herói da história. Assim, Israel, a noiva prometida de Deus, passa a ser a redentora da humanidade, pois a ela cabe realizar a Tikun, ou seja, a recomposição da Ordem no Caos, que foi instalada com o pecado do homem Adão ao comer o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal.

Além desse romantismo teológico que envolve a relação entre Israel e Deus, encontramos no misticismo zhoárico um sugestivo clima de sensualidade que poderia ser considerado quase panteísta, no sentido de que a Divindade – aqui designada pela palavra hebraica Shechiná - assume a sua natureza feminina para proporcionar ao Poder Divino a sua obra mais grandiosa: a criação do universo real.

Não se trata apenas de um simbolismo erótico, evocado para dar fumos de romantismo à uma crença que tem acompanhado o povo de Israel durante toda a sua história. Trata-se mais de tipificar, com alusões à sexualidade presente na própria natureza da vida, o ardente desejo que a nação israelita sempre teve de união com o Divino e sua Criação. Essa é a expressão que encontramos, por exemplo, no Cântico dos Cânticos, poemas que exaltam o amor romântico e o êxtase sexual como forma de buscar aproximação com a Divindade.[5]

O povo judeu tem tirado grande proveito espiritual da leitura do Zhoar. Ele o ajudou a suportar as agruras sofridas ao longo da sua singular história. Tornou o exilio menos cruel e mais suportável, criando uma atmosfera de sonho, quimera e esperança de um Porvir, que teve o poder de mitigar as dores das tribulações sofridas. O Zhoar tornou-se um oásis de santidade e promessas de uma redenção que se realizava na própria recitação de seus versículos, embalados pela entonação quase mântrica que é própria da língua hebraica.

Tal como a música que enleva a alma ou o hino que desperta o sentimento patriótico do indivíduo, a leitura do Zhoar é para ser sentida e não para ser compreendida. Dessa forma, ele tornou-se um cântico à esperança de redenção, longamente sonhada pelo povo de Israel, submetido a tantos exílios e diásporas ao longo da sua singular e sofrida história. Foi esse sonho, que nunca deixou de ser acalentado pelos judeus, juntamente com o apego à uma tradição, que o manteve vivo durante milênios enquanto outros povos, seguramente mais fortes e desenvolvidos desapareceram no limbo da História.

O povo de Israel nunca deixou de acreditar na restauração da Tenda de Davi e no brilho da sua estrela. E a guiar essa crença sempre esteve à frente, como um estandarte, o brilho da Torá, estampado nas cores lúdicas, românticas e sonoras que lhe deu o Zhoar. Por isso, diz o mestre Shimon ben Yochai: “O Zhoar reflete a luz da nossa Mãe Suprema, a Shechiná, fonte de nossa penitência. Aqueles que estudam o Zhoar provarão da Árvore da Vida e não estarão mais sujeitos a provas. Então Israel (e toda a humanidade) não dependerá mais da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal e não mais se submeterá às leis do deves ou não deves fazer.[6]

 

 

 

 

 

 


[1] Na opinião de Gershon Scholem (Origins of Kabbalah, Ed. English 1987 - The Jewish Publication Society) O Zhoar é uma parte dos Midrashin, comentários à Torá, constante do Talmud. É sua parte mística, feita pelos estudantes da Lei, conhecidos como sefardins, grupo ligado ao movimento chassidista.

[2] O termo psicodélico resulta de uma composição entre as letras gregas psique (ψυχή - alma) e delein (δηλειν - manifestação). A experiência psicodélica é caracterizada pela mentalização de imagens, sons e sensibilidades estranhas à mente consciente, muitas vezes intraduzíveis em linguagem escrita ou falada e apenas comunicada através de símbolos ou alegorias. Caracteriza-se por uma total liberdade mental, que cancela todas as censuras da mente consciente. Por movimento psicodélico queremos nos referir às várias experiências artísticas e religiosas modernas que são produzidas em estado alterado de consciência, seja ele produzido pelo uso de drogas alucinógenas, por práticas rituais, ou por qualquer atividade que produza efeitos profundos sobre a mente consciente.

[3] Septimânia era um território constituído por terras à nordeste da Espanha e sudoeste da França, habitadas por judeus, muçulmanos e cristãos, ora governados por soberanos cristãos ou mouros. O território da Septimânia foi totalmente absorvido pelos reinos espanhóis e franceses em fins do primeiro século do segundo milênio. Já a Provença, constituída por principados situados no sudoeste da França também abrigaram uma população constituída por árabes, cristãos e judeus que viviam em relativa harmonia até a ocorrência da chamada Cruzada Albigense (guerra movida pelo Vaticano e coroa francesa contra os Cátaros). Após a eliminação dos Cátaros, a região foi praticamente absorvida pela coroa francesa em fins do século XIII.

[4] Inconsciente coletivo é um termo usado pelo psicanalista e filósofo Carl Gustav Jung para designar o conjunto de memórias, tradições, costumes e crenças herdadas dos nossos ancestrais e que não aparecem normalmente na nossa mente consciente, mas estão armazenadas no nosso inconsciente. Elas nos levam a comportamentos que muitas vezes não conseguimos identificar a razão. Essa tendência nos leva a uma inconsciente identificação com os nossos antepassados.

[5]Cântico dos Cânticos (em hebraicoשִׁיר הַשִּׁירִיםŠīr HašŠīrīm) é o quarto livro da terceira seção (Ketuvim) da Bíblia hebraica. Junto com os Salmos, Eclesiastes e Provérbios, eles formam o conjunto de livros artísticos e sapienciais da Bíblia. Também conhecido como Cantares de Salomão, esse livro é atribuído ao famoso rei israelita que tinha esse nome, embora a maioria dos historiadores rejeitem essa informação.  

[6] Idem, Zhoar, pg 64

 

João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 25/04/2022
Alterado em 26/04/2022


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