INTRODUÇÃO
Este livro é um estudo sobre as inspirações que os mestres cabalistas que escreveram o Sepher Há Zhoar tiveram com a leitura e interpretação dos chamados mistérios da Bíblia. Não é, como se perceberá ao longo dos textos aqui elencados, uma incursão mais profunda nesse volumoso repertório de metáforas e visões da mente inconsciente que os místicos rabinos que elaboraram essa preciosa obra, mas sim um conjunto de intuições particulares que o autor teve ao ler o Zhoar e os comentários de que dele fizeram os diversos autores que se debruçaram sobre esse estranho e maravilhoso poema gnóstico.
O Zhoar, como sabem os estudantes dessa estranha doutrina que convencionou-se chamar de Cabalá, ou Cabala, é um livro que interpreta a Bíblia de uma forma mística e transcendente, fugindo das exegeses tradicionais, lógicas e conservadoras, que se fazem desse formidável monumento literário legado ao mundo pelo povo de Israel. Nele, toda a obra de Deus na construção do universo nos aparece na forma de metáforas, imagens, visões e alegorias que uma mente programada na racionalidade tem dificuldade para entender.
Por isso tantas lendas e mistérios envolvem a sua criação e seus criadores. Ninguém pode provar onde, quando e por quem o Zhoar foi escrito. O que sabe, com certa dose de certeza, é que ele foi compilado e revisado por diversos autores que certamente devem ter acrescentado a ele suas próprias visões do tema. Isso acontece com todos os grandes livros que registram o desenvolvimento da espiritualidade humana.
O que é certo e pode ser sentido na leitura do Zhoar, é que seus revisores e comentadores conseguiram fazer com que esse livro nos desse uma impressão de antiguidade e modernidade ao mesmo tempo. A antiguidade é referida no sentido de que ele reflete ideias, conceitos e sensibilidades que podem ser recenseadas no tempo como contemporâneas das mais vetustas intuições humanas. Assim podem ser entendidas as ideias da existência de um Princípio Único na origem do universo (Tzimtsum), a reencarnação e o carma como estratégias da divindade para colocar ordem e sentido no processo de evolução da vida, a própria construção da realidade universal a partir de um sistema ordenado de evolução e continuidade que explica a origem e a função do bem e do mal (presentes no diagrama da Árvore da Vida); e o próprio papel do povo e da nação de Israel nesse processo, expresso no engenhoso conceito da Tikun.
E nessas estratégias podemos sentir a modernidade dessas concepções quando fazemos um paralelo dessas visões com recentes publicações científicas que nos mostram a intimidade dos processos que dão origem à matéria universal, estudados pela física quântica e pela astronomia, integrando também as recentes descobertas da ciência genética que estuda a origem da vida e seus processos de desenvolvimento e adaptação ao ambiente.
Como a grande maioria dos livros “inspirados” por revelação divina, seu conteúdo não é de fácil absorção pela mente do homem moderno, que prima pela logicidade das suas concepções. O Zhoar é, antes de tudo, um produto do inconsciente coletivo de um povo que viveu uma saga extraordinária de ascensões e quedas, e foi formado no ideal de uma utopia que nunca se realiza, mas que também não pode ser descartada como esperança a ser concretizada, porque se acredita ser esse o próprio objetivo da Divindade.
O Zhoar é um livro de revelações (tanto quanto o Apocalipse cristão, os escritos proféticos da Bíblia, as visões extraordinárias dos místicos orientais em seus poemas épicos), que contém a magia aliciadora da linguagem do Alcorão. É, como vários outros livros de inspiração mágica, um produto da fértil mentalidade oriental, cujas crenças nunca se despregaram da ideia de que o sobrenatural está na origem de tudo.
No fundo, o que o Zhoar revela nada mais é do que o ego transcendental do homem. É, como diz Jung em seus trabalhos sobre os conteúdos místicos da nossa mente, uma viagem pelo inconsciente da espécie humana em busca da sua origem luminosa. Porque toda a estrutura do livro tem como finalidade última e precípua a defesa de uma ideia que tem sido proposta mais explicitamente por outros sistemas de pensamento místico, pelas mais variadas religiões e até por pensadores racionalistas e modernos ensaístas: a de que tudo, no universo, tem como base um fenômeno luminoso, seja ele oriundo de uma Divindade, de uma fonte de energia desconhecida, ou até mesmo de um corpo celeste como o sol, como pensavam os praticantes das religiões solares da antiguidade.
A novidade do Zhoar é sua compatibilidade entre as visões místicas dos sábios da antiguidade e as modernas descobertas da física quântica e as especulações de pensadores e ensaístas como Teilhard de Chardin, Carl Gustav Jung e Fritjof Kapra, por exemplo, cujos trabalhos têm procurado encontrar o elo perdido entre o homem e sua alma.
E nós, em nossas especulações a respeito do tema, encontramos muitos paralelos com estruturas de pensamento mais recentemente desenvolvidas, como a Gestalt terapia e as técnicas da chamada Programação Neurolinguística. Esses paralelos serão expostos neste trabalho e estão sujeitos ao crivo crítico dos leitores tanto quanto as demais especulações que já foram feitas e publicadas sobre o assunto.
O que se releva, em relação ao Zhoar, é que, como diz Jorge Luís Borges, a Cabalá é uma metáfora do pensamento humano, que pode servir como estratégia para pensar e tentar compreender como funciona o universo. E Gershon Sholem nos lembra que a Bíblia foi escrita segundo um método muito utilizado pela tradição oriental, especialmente pelos israelitas, que é chamado de Kavaná. Esse método consiste numa meditação profunda sobre determinada palavra, acompanhada de uma melodia. Por isso a Torá foi escrita em versos, para ser lida em voz alta, com entonação melódica, como se faz com os Salmos, que são poesias cantadas em louvor ao Senhor.
Assim, o Zhoar nos aparece como sendo um poema esotérico que trata os temas desenvolvido no Talmud de uma forma mística e transcendente. Como no Talmud, ele também se divide entre a parte operativa da obra de Deus (Halachá|) e a narrativa (Hagadá), embora seja difícil separar uma da outra, devido a estranha forma de composição adotada pelos seus autores. Nesse sentido ele se assemelha a um grande poema surrealista moderno, no qual se propõe exprimir o funcionamento real do universo e da vida que nele se desenvolve.
Ditado pelo pensamento livre de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou lógica, o Zhoar se nos afigura como uma grande aventura espiritual. E como tal deve ser lido e sentido. E como todas as aventuras vividas nesse nível, dela não se volta com o mesmo espírito com que se começou.
( excerto da nossa obra "VIAJANDO NUMA RÉSTIA DE LUZ", Título provisório de obra no prelo para ser publicada proximamente.)