CAPÍTULO VII
Memórias da infância e adolescência
Minha infância e adolescência me trazem especiais recordações. Em 1958, o Brasil ganhava a sua primeira Copa do Mundo e eu me lembro bem das comemorações que foram feitas na cidade por conta dessa grande vitória. Ainda hoje vejo as bandeiras do país penduradas nas janelas, ouço a gritaria do povo nas ruas e as estridentes buzinadas dos automóveis desfilando em corso pelas ruas de São Paulo, os fogos de artifício e sinto toda a alegria daquela conquista. Vem-me à memória a marchinha que foi composta para homenagear os jogadores daquela memorável epopeia:
Brasil, Brasil, Brasil,
No futebol você é campeão.
Brasil, Brasil, Brasil,
Nesta homenagem vai a nossa saudação.
Brasil, Brasil, Brasil,
Você mostrou que é valente e tem raça,
Ao apossar dessa almejada taça
Com a seguinte constituição...
Gilmar, De Sordi e Belini
Zito, Orlando e Nilton Santos.
Garrincha, Didi, Vavá, Pelé e Zagallo
São mestres do nosso futebol...
Castilho, Djalma Santos e Mauro
Dino, Zózimo e Orecco
Joel, Moacir, Mazzola, Dida e Pepe,
São todos craques de escol.... [6]
Doces lembranças... Mas a principal recordação desses dias da minha infância foi o nascimento do meu irmão Henry. Meu querido e doce irmão Henry. Eu tinha um ciúme danado dele. Ciúmes de criança que antes tinha toda a atenção dos pais e de repente tem que dividi-la com outra. Eu não tinha ainda a consciência de que ele era um bebê e precisava de mais atenção do que eu, que já estava com seis anos e podia fazer quase tudo sozinha. É fato, mas só vim a entender essas coisas quando tive meus próprios filhos e precisei administrar as atenções que dava a um e outro.
Ainda bem que esse ciúmes de criança não perturbou a boa relação que sempre tive com meus irmãos, especialmente o Henry. Pena que ele morreu jovem. Faleceu aos quarenta e cinco anos de idade, vitima de um acidente (de carro?)
Mas esses anos da minha infância não foi só a época em que o Brasil foi comentado no mundo inteiro graças ao virtuosismo dos nossos craques de futebol. Foi também um tempo em que o país viveu uma era de desenvolvimento e prosperidade, com a abertura da nossa economia e o pleno exercício das liberdades democráticas. Foram os anos em que Juscelino Kubistschek governou o país, opondo ao nosso velho sistema político fundamentado no coronelismo e no apoio de uma elite retrógrada e aproveitadora uma nova visão de país, conectado com o resto do mundo e aberto às novas tecnologias.[7]
Mas não foi só isso que marcou esses anos da minha infância. A época de Juscelino ficou conhecida como “Anos Dourados”, principalmente pela atmosfera de otimismo e esperança que tomou conta dos brasileiros nesse período. A televisão havia assumido um importante papel na vida dos brasileiros nessa época. Ela havia sido inaugurada em 18 de setembro de 1950 em uma cerimônia que poderia ser considerada hoje até muito simplória para a ocasião em questão. O grande responsável por essa conquista foi o jornalista Assis Chateaubriand, que instalou vários aparelhos pela cidade para que o povo conhecesse o novo meio de comunicação, pois no Brasil poucas pessoas tinham visto um aparelho daqueles. O primeiro programa, chamado TV na Taba, foi apresentado pela TV Tupi, que é considerado o primeiro programa da televisão brasileira. Homenageava os indígenas brasileiros, em alusão ao próprio nome da emissora, que ostentava, como símbolo, um garoto indígena, que aparecia na tela dizendo: “está no ar a primeira televisão do Brasil”. A fala foi dublada pela atriz mirim Sonia Maria Dulce e é, historicamente, a primeira fala da TV brasileira.[8]
Mas eu me lembro bem dos programas que assistíamos na TV. Hebe Camargo era a grande estrela da telinha naqueles tempos. Tinha também o Repórter Esso, o “Alô Docura” com Eva Vilma e Jonh Herbert, O Sítio do Picapau Amarelo, O Programa Manoel da Nóbrega, que depois virou “Praça da Alegria”, onde o destaque eram os comediantes Ronald Golias, Rony Rios, Zilda Cardoso, Simplício, Viana Júnior, Walter Dávila e outros que sobreviveram até os dias de hoje. Alguns deles, até há pouco tempo, ainda estavam atuando programas nos humorísticos da TV.
As pessoas da minha idade, que tinham televisão em casa, ou iam assistir na casa dos vizinhos, devem se lembrar da Formiguinha Gilda (a única formiga no mundo que usava "rabo de cavalo"), da Gatinha Clarinha, a Peixinha Marci, a Abelhinha Domi, a Cachorrinha Lelete e o Sapo Godô. E aquele programa famoso "A Estrela é o Limite", patrocinado pela fábrica “Brinquedos Estrela, que promovia uma competição entre colégios cariocas sobre vários assuntos de conhecimentos gerais. Era um programa educativo que transmitia vários conhecimentos de uma forma gostosa e lúdica. Hoje não temos mais isso.
Ah! Tinha também os palhaços. Carequinha e Fred, ao lado do Zumbi e o anão Meio-Quilo, que faziam "O Grande Circo Bombril". E o palhaço Arrelia com o seu "Circo do Arrelia". Hoje a gente ri da ingenuidade daqueles programas, mas na época era o que divertia e trazia cultura para a população. Nada parecido com o que temos hoje na TV, onde predominam os filmes violentos, os programas de auditório com muito apelo sexual, o jornalismo com ênfase mais na interpretação e na repercussão da notícia do que no fato em si.
Posso dizer que a primeira feminista da TV foi Hebe Camargo, com seu programa "O Mundo é das Mulheres, na TV Record em 1955. Depois vieram os outros programas do gênero, mostrando que, pelo menos na TV, as mulheres estavam ganhando mercado muito antes da famosa “queima dos sutiãs”, ocorrida em 1968 nos Estados Unidos.[9] Nesse sentido, programas como o "Revista Feminina" com Maria Thereza Gregori e Ofélia Anunciato, na TV Tupi-Difusora de São Paulo, "Consultório Sentimental" com Helena Sangirardi na TV Rio, o "Chá das Cinco" com Aziza Perlingeiro na TV Tupi o "Clube do Lar" na TV Paulista, com Jane Batista, ajudaram a firmar esse contexto, dando à mulher brasileira uma importante faixa de domínio nesse mercado da mídia televisiva, que viria a se firmar nos dias atuais com Ana Maria Braga, Kátia Fonseca, Claudete Troiano, Patrícia Poeta, Fátima Bernardes e outras.
O povo de São Paulo tem suas melodias tradicionais, escolhidas de acordo com o gosto das gerações que se sucedem e dos momentos vividos. Eu, se tivesse que escolher as canções que falam mais ao meu coração, escolheria "Sampa", de Caetano Veloso, "Ronda", de Paulo Vanzolini e São, São Paulo, Meu Amor, de Tom Zé. A primeira pela qualidade da poesia, a segunda pela identificação que tive com essa canção, composta por Paulo Vanzolini em 1945, quando ele ainda era um estudante de medicina, e que fala dos bares boêmios da Avenida São João, que eu muito frequentei nos anos sessenta, e a terceira, pela lembrança dos festivais de música popular, que eu presenciei no final dos anos sessenta. Essa, aliás, era a canção que melhor retratou São Paulo no crucial ano de 1968, que segundo o jornalista Zuenir Ventura, foi o ano que não acabou. [10]
São, São Paulo quanta dor
São, São Paulo, meu amor
São oito milhões de habitantes
De todo canto em ação
Que se agridem cortesmente
Morrendo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor
São oito milhões de habitantes
Aglomerada solidão
Por mil chaminés e carros
Caseados à prestação
Porém com todo defeito
Te carrego no meu peito
São, São Paulo quanta dor
São, São Paulo meu amor
Salvai-nos por caridade
Pecadoras invadiram
Todo centro da cidade
Armadas de rouge e batom
Dando vivas ao bom humor
Num atentado contra o pudor
A família protegida
Um palavrão reprimido
Um pregador que condena
Uma bomba por quinzena
Porém com todo defeito
Te carrego no meu peito.
São, São Paulo quanta dor
São, São Paulo meu amor
Santo Antônio foi demitido
Dos Ministros de cupido
Armados da eletrônica
Casam pela TV
Crescem flores de concreto
Céu aberto ninguém vê
Em Brasília é veraneio
No Rio é banho de mar
O país todo de férias
Aqui é só trabalhar
Porém com todo defeito
Te carrego no meu peito.[11]
E a letra de “Sampa”, que é um verdadeiro poema cantado, em homenagem à São Paulo, feito por um baiano que, mais que qualquer paulista, soube em versos de extraordinária qualidade a verdadeira essência de São Paulo:
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruz a Ipiranga e a avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas
Ainda não havia para mim, Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos Mutantes
E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso
Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva
Pan-Américas de Áfricas utópicas do mundo do samba
Mais possível novo Quilombo de Zumbi
Que os Novos Baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa
Como diz a letra da canção do Tom Zé, São Paulo é só trabalhar. E isso me trás de volta as lembranças do meu pai. Ah! O meu velho... Ele trabalhava muito. Lembro-me dele trabalhando como escriturário no antigo IAPI.[12]
Recebia o salário e entregava o envelope fechadinho para a minha mãe. Era ela quem administrava a casa, o dinheiro e todas a vida econômica da família. Meu pai só ficava com o dinheiro do cigarro. Fumar era o único vício dele.
Fora a música, que era o seu principal hobby, ele gostava muito de pescar. Muitas vezes, eu ainda menina, o acompanhei em pescarias no Rio Paraíba, quando morávamos em Taubaté. Na música ele foi quase um profissional. Tocou violino na Orquesta Sinfônica de São Paulo e tornou-se um frequentador assíduo dos saraus organizados no bairro, onde as valsas e os chorinhos eram as melodias preferidas dos participantes.
Tanto meu pai como minha mãe eram muito católicos. Meu pai, aliás, foi seminarista diocesano e só não se tornou padre porque se apaixonou pela minha mãe. Não obstante, jamais deixou de cumprir as obrigações da sua crença e me criou na mais estrita obediência à fé católica, coisa que eu nunca abandonei. Por isso, ainda hoje sou muito ligada às tradições da Igreja, participando de quase tudo que ela promove, em termos de festas, missas, apostolados, campanhas, etc. Sou tão comprometida com campanhas filantrópicas e movimentos sociais que a minha própria filha, Manuela, às vezes, me questiona por envolvimento.
Mas é disso que eu gosto, e por isso faço tudo com muito amor e dedicação. Não importa se desse trabalho voluntário que faço vem algum reconhecimento. Eu me sinto feliz fazendo.
Acho que essa minha inclinação pelas causas sociais vem dessa minha educação católica e principalmente da personalidade afável e cativante do meu pai, que incutiu em mim o amor pela música, o amor ao próximo e o anelo pela liberdade.
Meu pai falava oito idiomas e tinha habilidades pedagógicas bastante desenvolvidas. Aprendi o italiano com ele e também um pouco de francês e inglês, que não desenvolvi depois por conta dos rumos que a minha vida tomou na adolescência e juventude. Mas aos cinco anos de idade eu já sabia ler e escrever por conta das lições que ele me dava em casa. Quando fui para a escola pela primeira vez eu já lia e escrevia bem, o que causava admiração nos professores e uma certa inveja nas colegas.
Fiz primário e ginasial no antigo Colégio São José. Depois fiz o segundo grau no Colégio Nossa Senhora de Assunção. Era uma escola de orientação católica tradicional, administrada por freiras carmelitas. Aprendi com elas o respeito à hierarquia e a amar os valores tradicionais, como a família, a honra, a palavra dada, e principalmente o amor ao próximo, que era a principal vocação daquelas missionárias do bem.
Tanto que, ao terminar o colegial, eu me engajei como missionária assuncionista para uma missão entre os índios do Tocantins. Mas essa é outra história, que contaremos em um capítulo próprio. Por enquanto, é das nossas lembranças do Bixiga que estamos falando.
Dessa experiência, que marcou profundamente a minha vida pessoal, falarei no próximo capítulo. [13]
[1] A cantora Marlene nasceu e cresceu no bairro paulistano da Bela Vista, filha de pais italianos. Tornou-se uma das mais famosas artistas do Brasil, experimentando fama internacional nos anos cinquenta, quando também foi eleita a “rainha do rádio”.
[2] Na imagem o cantor Silvio Caldas, o Seresteiro do Brasil. Fonte: Vagalume. com
[3] Na imagem a comemoração do IV centenário de São Paulo no Vale do Anhangabaú. Foi uma festa que durou três dias. Fonte: O Estado de São Paulo, 12-7-1954
[4] Na foto, a comemoração do Centenário de São Paulo no Anhangabaú, em 1954; Foto: arquivo Estado de São Paulo
[5] Na imagem, a jovem Inezita Barroso, intérprete inesquecível do clássico Lampião de Gás, canção de Zica Bérgami, que homenageava os quatrocentos anos de São Paulo.
[6]
[7] Juscelino Kubitschek, mais conhecido pela sigla JK, governou o país entre 1956 e 1961. Médico por formação, ingressou na política na década de 1930, elegendo-se prefeito de Belo Horizonte e governador de Minas Gerais. Em 1955 elegeu-se presidente do Brasil em meio a uma crise política iniciada em 1954, com o suicídio de Getúlio Vargas. Juscelino elaborou um plano de metas para o desenvolvimento do país, no qual a matriz principal foi a abertura da economia nacional aos investimentos estrangeiros, especialmente às montadoras de automóveis, que passaram a fabricar carros no Brasil. Foi também responsável pela chamada “marcha para o oeste,” com a construção de Brasília no Planalto Central. (nota do redator)
[8] Chatô - O Rei do Brasil, Fernando Morais, Editora Companhia das Letras, 1994.Informações colhidas pelo redator destas memórias.
[9] A "Queima de sutiãs" (em inglês, "Miss America protest", ou simplesmente "bra-burning") foi um protesto público feito por cerca de 400 ativistas do "Women's Liberation Movement" (WLM) por ocasião da realização do concurso de "Miss América", em Atlântic City, nos Estados Unidos. Na verdade, não houve queima de sutiãs, mas apenas protesto das ativistas contra aquilo que elas entendiam como exposição da mulher como símbolo sexual e banalização do papel feminino na sociedade, pois na visão delas, concursos de beleza como o de “miss”, pelo mundo inteiro nada mais representava do que uma “vitrine” onde a mulher era exposta como um objeto de adorno e desejo. (nota do autor).
[10] 1968: o Ano Que não Terminou- Nova Fronteira, 1989.
[11] Na imagem, o cantor Tom Zé, vencedor do Festival de música popular da TV Record em 1968.
[12] IAPI- sigla que identifica o antigo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários, órgão criado em 1936,] durante o Estado Novo para proporcionar aposentadoria e assistência social aos trabalhadores da indústria. Depois de 1945 o IAPI expandiu suas áreas de atuação, passando também a financiar projetos de habitação popular nas grandes cidades. No início do governo militar ocorreu a fusão de todos os institutos de pensão, resultando no atual Il (INPS). (nota do autor) Instituto Nacional de Previdência Social.
[13] Na foto, Henriette em sua primeira comunhão, aos 15 anos.
(nota: as imagens citadas constam do texto original mas nao foram trazidas para o texto aqui copiado por não terem a configuração aceita pelo modelo do site).