A ERA VARGAS
CAPÍTULO 3
Minha infância no Bixiga
Nesse cadinho de raças, onde a música era um dos principais elementos de ligação entre as diversas culturas que ali se interavam, eu nasci, terceira filha, em uma família de quatro irmãos. ]
A rua Cincinato Braga, onde minha família foi morar mais tarde, no centro do bairro da Bela Vista, tornara-se um dos principais redutos de imigrantes italianos que escolheram São Paulo como sua nova pátria. Era uma rua calma e tranquila naqueles tempos, quando a Avenida Paulista e suas adjacências ainda não eram considerados um novo centro da capital paulista, mas sim um bairro nobre onde a nata da elite paulistana começava a se concentrar. Nessa avenida os grandes fazendeiros que haviam enriquecido com a economia cafeeira e os primeiros industriais paulistas que haviam prosperado com a crescente industrialização que então principiava a se instalar em São Paulo, construíam os seus vistosos palacetes, dando à famosa avenida a visão de opulência e majestade que ela conserva até hoje, como cartão postal da cidade e símbolo da pujança e da prosperidade paulista.
Eu sou uma típica filha do pós-guerra. Não senti, como minha mãe, as agruras de ser olhada como inimigo, pelo simples fato de ser oriunda de um país que oficialmente esteve em guerra com o Brasil, como foi o caso da Itália. Embora nunca tivesse ocorrido um conflito real entre os dois países, o fato de estarem em campos opostos ensejou um mal-estar entre brasileiros e italianos, que felizmente, na época em que eu nasci, já estava completamente superado.
Por isso, a mim sempre pareceu nunca ter acontecido esse conflito, pois tanto quanto eu me lembro, jamais presenciei qualquer constrangimento entre brasileiros e italianos por causa desse fato. É certo que, em 1948, quando eu nasci, esse problema já estava amplamente superado, e os italianos e seus descendentes estavam perfeitamente integrados na vida paulistana. Aliás, tinham já se tornado uma das mais prósperas colônias estrangeiras em São Paulo, e na elite paulistana eram comuns os sobrenomes italianos.
Entretanto, o mundo esteve em guerra durante os anos de 1939 até 1945. E toda guerra sempre deixa suas fraturas. O conflito, que começara em 1º de setembro de 1939, com a invasão alemã na Polônia, só chegou ao Brasil, formalmente em 1942. Nele entramos efetivamente em 1944, com o envio de uma Força Expedicionária à Itália. Lembro-me especialmente da música composta pelo maestro Spartaco Rossi, com letra do poeta Guilherme de Almeida para homenagear os soldados brasileiros que embarcaram para a Itália. Era uma marcha empolgante, com uma letra maravilhosa, que destacava lugares e tradições cultivadas no país. Postas num ritmo contagiante de marcha militar, arrancava lágrimas e fazia bater com mais força o meu coração quando a escutava sendo cantada pelos pracinhas, nos desfiles realizados na Avenida Tiradentes no dia Sete de Setembro.
Você sabe de onde eu venho?
Venho do morro, do engenho
Das selvas, dos cafezais
Da boa terra do coco
Da choupana onde um é pouco
Dois é bom, três é demais.
Venho das praias sedosas
Das montanhas alterosas
Dos pampas, dos seringais
Das margens crespas dos rios
Dos verdes mares bravios
Da minha terra natal
Por mais terras que eu percorra
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá
Sem que leve por divisa
Esse V que simboliza
A vitória que virá
Nossa vitória final
Na mira do meu fuzil
A ração do meu bornal
A água do meu cantil
As asas do meu ideal
A glória do meu Brasil....
Amei de pronto essa canção, principalmente porque falava de temas ligados à músicas famosas do cancioneiro popular brasileiro e da nossa literatura, como a casa do caboclo, canção de Hekel Tavares e Luíz Peixoto, onde um é pouco, dois é bom, três é demais; os verdes mares bravios, do romance Iracema, de José de Alencar, do nosso instrumento musical favorito, o violão; do meu limão, meu limoeiro, nossa mais conhecida cantiga de roda, o pé de jacarandá, onde canta o sabiá, de poemas famosos de Castro Alves, da casinha pequenina que tinha um coqueiro do lado, que coitado, de saudade morreu...
Não tinha como não se emocionar. A cultura brasileira, expressa nas suas canções, era tão rica que a sua influência, mesmo em meu espírito de criança já projetava suas raízes. E por mais que a vida trouxesse intempéries e vicissitudes que viriam a prejudicar seu florescimento, jamais seria capaz de secá-las por completo. A música ficou incubada em mim por muitos anos, mas um dia floresceu. E com a força que nenhum tempo ruim poderia mais mitigar.
Entretanto, a Segunda Guerra Mundial não deixou de projetar seus reflexos no Brasil. De início, como se sabe, o governo brasileiro, chefiado por Getúlio Vargas, tinha manifestado sua simpatia pelos países do chamado Eixo, formados por Alemanha, Itália e Japão. Afinal, os alemães e os italianos também eram governados por ditadores, como ele. E o Japão imperial também tinha um governo autoritário fortemente influenciado por militares, ávidos por conquistas territoriais e fama nos teatros de guerra.
Mas o desenrolar do conflito acabou convencendo Getúlio Vargas a optar pelo lado contrário, principalmente em razão da pressão exercida pelos Estados Unidos sobre o governo brasileiro. E foi principalmente em razão disso que o Brasil acabou entrando na guerra em 1944, quando ela já estava praticamente vencida pelos aliados ocidentais.
São Paulo contava com cerca de um milhão e quatrocentos mil habitantes quando o Brasil entrou na guerra e já era, nessa época, o maior centro industrial da América Latina, com 4.000 fábricas. Uma boa parte delas pertencia a imigrantes italianos ou descendentes deles. Em São Paulo, por exemplo, o maior complexo industrial da época pertencia à família Matarazzo.
Lembro-me, especialmente, do enorme complexo industrial do grupo Santista, onde meu pai trabalhava. Era um barracão que me parecia tão grande, que se tivesse que procurá-lo lá dentro, tinha certeza de que me perderia. No entanto, já nos primeiros anos da minha infância, eu percorria de bicicleta todo o centro velho de São Paulo com a maior segurança e tranquilidade. Não havia o trânsito caótico de hoje nem a insegurança que nos mantém presos em casa com medo dos assaltantes. São Paulo, apesar de ser, já nessa época, uma grande metrópole, era calma e segura.
Na política, como já referido, vivia-se a primeira era Vargas, época do chamado Estado Novo, e o estado de São Paulo estava sob intervenção federal, tendo como interventor o político Adhemar de Barros.
A entrada do Brasil na guerra aproximou o país dos Estados Unidos da América e dos países aliados, todos estados democráticos. Com isso, ficou mais difícil para Getúlio Vargas manter o regime autoritário que implantara em 1937. Já em 1942, aproveitando o fato de o Brasil ter declarado guerra às potências do Eixo, ocorreram várias manifestações populares pedindo a redemocratização do país. Essa pressão continuaria por todo o ano de 1943 e aumentaria em 1944, forçando Getúlio a tomar uma posição em 1945.
Entre essas manifestações destacou-se o “Manifesto dos Mineiros”, em 1943, assinado por eminentes políticos daquele estado. Em São Paulo a UNE organizou grandes passeatas. O Governo reagiu a esses movimentos com repressão, e os ânimos se acirraram. Em 1944 as Forças Armadas aderiram ao movimento pela redemocratização. Os Generais Eurico Gaspar Dutra e o Brigadeiro Eduardo Gomes começaram a articular uma candidatura militar à Presidência da República, com a promessa de levar o país de volta ao Estado de Direito.
Embora Vargas tivesse prometido eleições livres e diretas em 1946, acompanhado de uma Assembleia Nacional Constituinte para elaborar uma nova Carta Magna, a grande maioria dos políticos e as principais instituições do país desconfiavam que ele, no último momento, iria arranjar um jeito de continuar com o regime autoritário. Assim, durante todo o ano de 1945 o país iria assistir a uma intensa mobilização pela volta da democracia, a qual culminaria com a deposição de Getúlio Vargas por um golpe militar em 29 de outubro de 1945.(1)
As eleições para a Presidência foram realizadas em 2 de dezembro de 1945. Ganhou o candidato apoiado por Getúlio, o General Eurico Gaspar Dutra. Getúlio concorreu a uma vaga de Senador pelo Rio Grande do Sul e foi eleito.
Dutra promoveu a redemocratização do país e promulgou uma nova Constituição, restituindo o Estado de Direito e as liberdades democráticas. O Brasil entraria então numa era de estreita colaboração com os Estados Unidos da América.
Mas em São Paulo, como vimos nos capítulos anteriores, o fato de o Brasil ter entrado na guerra ao lado dos países que lutavam contra a Itália em nada prejudicou os italianos que viviam na capital paulista. Ao contrário, em fins da década de 1940, eram eles que dominavam a cena política e econômica paulista.(2)
(continua)
(do livro, Henriette, uma canção por amor), no prelo
] 1 -Getúlio Dornelles Vargas assumiu o governo brasileiro em 1930 em razão de um movimento armado liderado pelos estados de Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul, que depôs o presidente eleito Washington Luíz e colocou no seu lugar o líder dos gaúchos.Getúlio Vargas. Em 1937 Vargas deu um novo golpe de Estado e implantou o chamado “Estado Novo”, que durou até 1945. Durante o “Estado Novo” Vargas implantou um regime ditatorial inspirado no modelo nazi-fascista europeu, então em voga na época na Alemanha e na Itália. Pelos programas sociais criados no seu governo e pela proteção dada aos trabalhadores e à população menos favorecida, Vargas ficou conhecido como o “pai dos pobres”. Na imagem, Vargas conversa com as pessoas em praça pública. Fonte: O Estado de São Paulo.
[2- As informações históricas acima referidas foram inseridas pelo autor para dar ao leitor um panorama histórico do ambiente político em que antecedeu o nascimento de Henriette Fraissat. Entendemos útil essa interpolação para situarmos o momento histórico em que esse fato ocorreu. (nota do redator)