João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


A GAROTA DA MÁSCARA NEGRA

 

... Quarta-feira de Cinzas amanhece
Na cidade há um silêncio que parece
Que o próprio mundo se despovoou
Um toque de clarim, além, distante
Vai levando consigo, agonizante
O som do Carnaval que já passou...

 

  Sentado num banco da praça da catedral, às três horas da manhã de uma Quarta-Feira de Cinzas, “Seu” Ernesto estava cumprindo um ritual que já praticava a três anos. Desde que sua esposa morrera, sempre fazia isso. Saia para assistir ao desfile das escolas de samba, depois ia para aquela praça e ficava ali, sentado até as primeiras horas da manhã, esperando a igreja abrir para “tomar as cinzas”. Depois voltava para casa, com um gosto amargo de saudades na boca.

 Ali, naquela praça, de madrugada, tudo lhe parecia igual aos anos anteriores. Só não sabia por que o som de uma velha canção da sua infância estava sendo recuperado naquele momento pela sua mente febril e cheia de lembranças. Era uma antiga canção cantada pelo Chico Viola, apelido do cantor Francisco Alves, o “Rei da Voz”, morto em um acidente de carro na Rodovia Presidente Dutra, em 1952.

Fazia mais de cinquenta anos que ele não ouvia aquela música. E nem se lembrava de um dia ter gostado dela ou de ter aprendido aquela letra. Lembrava-se apenas que seu pai gostava, pois sempre que ela tocava, naqueles programas noturnos que ele ouvia todo dia, com aquele antigo radialista chamado Moraes Sarmento, o velho a cantarolava com sua voz rouca e desafinada, tirando dele uma risadinha debochada.

Mas ali estava ela, em sua mente, a canção cantada na voz chorosa daquele cantor que ele mesmo nem sabia  o nome. Pudera. A música nem era do seu tempo. E ele, muito a custo se lembrava dela por causa do pai. Era uma canção melancólica, que falava de um amor perdido, de um passado tão distante, que parecia estar se referindo a outro mundo, diluído na bruma do tempo, como a Avalon das lendas...

 

...E repete-se a cena de costume
Cacos dispersos de lança-perfume
Serpentina e confete pelo chão
É a máscara que a vida jogou fora
Mostrando que a alegria foi-se embora
Nos rastros da passagem da ilusão...

 

Confetes, serpentinas, lança-perfumes. Tudo isso já havia sido banido da história do carnaval há muito tempo, assim como a alegria dos festejos, que ele tanto experi-mentara, ali mesmo naquela praça onde estava agora sentado, não sabia a quanto tempo já. Deixara a passa-rela do samba naquela noite, onde as escolas se apre-sentavam com fantasias luxuosas, moças seminuas, enor-mes carros alegóricos e uma estranha batida de samba

que mais parecia marcha militar.

Não se sentira bem lá. Muito barulho, farta demons-tração visual, pirotecnia nas evoluções dos blocos, mas pouca melodia nos sambas enredos, com suas poesias desconexas, tratando de temas folclóricos e estranhos para ele. E um ambiente que parecia muito mais uma feira de plumas, paetês, artigos feitos de plástico reci-clado e outros materiais. Tudo organizado como se fosse um ballet ensaiado durante o ano inteiro para ser apre-sentado em uma hora naquele palco montado em uma rua especialmente preparada para isso.

Era a rua do sambódromo, estranha palavra que ele não encontrara no seu velho Aurélio, mas que agora designava uma espécie de arena existente no país inteiro, mostrando que a língua, às vezes é mais lenta que a vida e leva mais tempo para mudar do que o próprio povo que a utiliza. Não pode deixar de pensar também que a evolução daqueles blocos absurdamente coloridos parecia uma parada militar. Ninguém podia perder o passo. Todos tinham que evoluir e dançar ao som das batidas dos instrumentos e da voz do cantor que se esgoelava em cima de um carro de som.

 

 Em outros tempos tudo era diferente. Os blocos desfilavam pelas ruas principais da cidade. Saiam lá do começo da rua principal, onde ficava a velha rodoviária, e desciam em direção ao Largo da Matriz, cobrindo com sua algazarra alegre a única rua da cidade que era calçada com paralelepipidos. Iam até a praça do jardim, onde ficava o único cinema da cidade. Todos podiam participar dos blocos.Cada um com sua própria fantasia. Vampiros, lobisomens, bebês-chorões, arlequins, palha-ços, colombinas, um ou outro soldado romano, e a grande maioria dos homens, que saiam sempre vestidos de mulher.

“Engraçado”, pensou “Seu” Ernesto, com um simulacro de sorriso. “Homens gostam de se vestir de mulher.” Pensou que eles aproveitam o carnaval para viver esse lado feminino que durante o resto do ano são obrigados a esconder. No carnaval podem fazer isso sem o medo de que alguém desconfie de sua masculinidade. Mas a reciproca não era verdadeira. As mulheres não costumavam se fantasiar de homens. Eram raras as que se aventuravam a fazer isso. Nem naquele tempo, nem agora. Seriam as mulheres mais seguras na sua condição sexual e por isso não precisariam usar dessas artimanhas para praticar projeção?

“De qualquer modo”, concluiu “Seu Ernesto”, “hoje tudo isso já perdeu o sentido, pois mulher que quer ser homem assume e homem que quer ser mulher não precisa mais se esconder. Ninguém precisa mais esperar o carnaval para “soltar a franga”.”

 

Antigamente eram poucas as mulheres que se aventuravam a participar daqueles cortejos. Aquelas que se arriscavam dificilmente escapavam da má fama pela manhã. Só as mais corajosas topavam sair nos blocos. Depois todos iam para os salões. Ai sim, a mulherada se esbaldava. Por que ali bastava usar uma máscara, um spray de lança-perfume, um saquinho de confete e a farra estava garantida. Todo mundo podia se divertir à vontade. “Seu” Ernesto sentiu saudades dos carnavais da sua mocidade. O estranho era que, misturada com aquelas lembranças sempre vinha a memória daquela velha canção...

       

...Minha alegria também durou três dias
Alimentada pelas fantasias
Recordações da minha vida inteira.
Um retrato, uma flor, uma aliança
Na maior festa da minha esperança
Que também teve a sua quarta-feira...

 

...Marli. Ele a conhecera no salão do clube que frequentava. Quase não se falaram naquela primeira noite. Era um sábado. Ela estava num grupo com várias amigas e dançavam de mãos dadas, formando uma roda que se fechava para a entrada de estranhos. Parecia que naquele cordão eram todos conhecidos. Ele estava sózinho. Sempre ia sozinho a esses bailes.

 Ás vezes, conforme a música, os grupos formavam um trenzinho. Ele aproveitou um desses momentos para entrar sorrateiramente na fila que rodava o salão e não saiu mais. Foi justamente atrás de uma garota com uma máscara negra que ele entrou. Rompeu a corrente ocupando o espaço entre ela e a garota que estava atrás dela. Tornou-se um elo daquela corrente. A garota da máscara negra sentiu que eram outras as mãos que se escoravam no seu ombro. Olhou para trás, viu que não era mais a amiga e não protestou. Na verdade, ela gostou da troca. A amiga, que agora estava com as mãos nos ombros dele, também sorriu de modo cúmplice. Já havia percebido os olhares que ele havia trocado com a colega. O trenzinho se desfez e ele pegou na mão dela para dançar como um par. Não largou mais a mão dela  o resto da noite. Ela também não largou mais da mão dele. Gostara do calor daquela mão que iria segurar pelos próximos trinta anos da sua vida.

 

Foram três dias de intensa emoção, que ao “Seu” Ernesto pareceram uma vida inteira. Em comparação com o carnaval de agora, pensou, tudo aquilo era tão ingênuo e puro...Três dias de folia e na quarta-feira, na igreja, as cinzas do expurgo daquela orgia. Essa transição das cinzas da quarta-feira se lhe afigurava uma grande hipocrisia, mas era a oportunidade de vê-la fora do buliçoso e barulhento ambiente do salão e então ele foi. Aproveitou a oportunidade para falar de um amor que já nascia forte e quase adulto, pronto para enfrentar uma vida juntos. E depois a troca de fotografias, que até agora ele ainda tinha na carteira, uma foto muito amarelada, enrugada, quase sem brilho, da sua Marli, nos seus esplendorosos vinte anos...

Aquela praça, as flores, as pipocas que eles comiam juntos ali. Será que o pipoqueiro ainda era o mesmo? Olhou para a aliança que ainda brilhava no seu dedo anelar. Fazia agora parte da sua anatomia. Para tirá-la teria que cortar o dedo fora. Não, seria melhor levá-la para o túmulo junto com ele. Duas grossas lágrimas rolaram dos seus olhos. E aquela velha canção que não saia da sua mente.

 

...Hoje ante o silêncio sepulcral
Dos despojos de mais um carnaval
Confronto este cenário à minha dor;
O que ontem pra mim foi iluminado
Hoje são restos mortais do passado
Cinzas do carnaval do meu amor...

 

A letra da música ressoava no seu cérebro. Estranho. Jamais se dera conta de que ela tivesse sido registrada na sua memória com tanta intensidade emo-tiva. Conseguia agora se lembrar dela toda como se a tivesse ouvido a vida inteira.

 

– Como é que você consegue ficar tão triste numa noite de carnaval? – perguntou a moça que havia se sen-tado ao seu lado no banco da praça.

Ele levou um susto. Não havia percebido a presença dela.

– Hum? – Foi o único som que conseguiu pronun-ciar, como se seu espírito tivesse sido puxado brusca-mente de outra dimensão e alocado violentamente dentro do seu próprio corpo. Por isso talvez, sentira concomi-tante com o susto, aquele arrepio que percorreu a tota-lidade da sua espinha, desde o alto do couro cabeludo até a sola dos pés.

 – Eu não estou triste – respondeu ele, depois de alguns segundos, respirando fundo para recuperar-se do susto.

 – Estou recordando disse ele. Há quarenta anos atrás eu estava sentado nesta mesma praça, neste mesmo banco, com a minha esposa, depois do baile, esperando a igreja abrir para “tomarmos as cinzas”. Éramos recém-casados. Casamo-nos nessa igreja ai em frente. Eu a conheci num baile de carnaval – completou “Seu” Ernesto, com um longo suspiro e um tanto surpreendido por estar confessando à uma desconhe-cida coisas tão íntimas.

 – E onde está ela agora?– perguntou a moça.

 – Ela faleceu há cinco anos atrás – respondeu ele, olhando para a moça e reparando, pela primeira vez, que ela usava uma máscara negra de papel acetinado.

– Desde então completou ele toda terça-feira de carnaval, de madrugada,  eu venho me sentar nesta praça, onde nós passamos os nossos melhores momen-tos.

 – Então essa é a causa da sua tristeza – disse ela. – Deve ser mesmo muito triste perder alguém a quem se amou muito e com quem se dividiu tanta coisa.

 – É estranho– disse ele. – Mas eu não me sinto como se a tivesse perdido. Para mim é como se ela tivesse viajado para algum lugar e eu, um dia, também irei para lá me encontrar com ela.  

– E você se sente preparado para ir ?– perguntou a moça.

        – Estive me preparando nestes três últimos anos– disse ele, – mas agora não posso deixar de reconhecer que estou com medo.

       – Todo mundo tem medo de viajar para um lugar que não conhece – disse ela. – Eu também, quando fui, tive muito medo. Mas logo me dei conta que era apenas a sensação do desconhecido. Por isso me deixaram vir aqui para buscar você.

Ele ouviu as palavras dela como se fosse uma música que se ouve quase dormindo. Depois olhou para ela com espanto e alegria.

- Marli!  Exclamou ele. Meu Deus, é você...


     A última sensação que ele teve foram os lábios dela colando nos dele. A princípio os sentiu frios. Mas depois veio a vertigem e a frialdade foi substituída por uma sensação de leveza e fluidez. Era como se um aspirador o sugasse com uma força que ele não conseguia resistir. Sentiu-se puxado por uma mão que o conduzia por um túnel escuro e estreito. Mas ele não sentia medo agora. Sabia que havia uma presença sutil ao seu lado, guiando-o.  Logo ele viu no fundo daquele túnel uma estranha luminosidade. Nunca havia visto uma luz como aquela. Ela o atraia como um ímã faz com limalhas de ferro. Sentiu que vivia uma eternidade num único segundo. Contente e já com uma sensação de paz em todo o seu ser, caminhou em direção a ela, mas agora já sem dúvidas nem temores. E quando entrou no raio daquela luz sentiu-se leve como um balão de gás que escapa das mãos de um menino. Estava levitando.

 

Os amigos que compareceram ao velório do “Seu” Ernesto foram unâmines em dizer que ele tinha morrido do jeito que queria. Um enfarto fulminante que não lhe dera tempo nem de sentir dor. Tinha sessenta e seis anos. Morreu na madrugada da quarta-feira de cinzas, sentado num banco da praça da catedral da cidade. Os frequentadores da praça também se lembravam bem dele. Todo ano, religiosamente, ele costumava se sentar lá na noite da terça-feira de carnaval e ficar até de manhã para tomar as cinzas. Ele não frequentava mais os salões, mas ainda gostava de ver as escolas de samba desfilan-do no sambódromo. Mas seu principal prazer era ver a cidade vazia e silenciosa depois da muvuca do carnaval.

Ele era uma pessoa de quem todo mundo gostava. Por isso houve muito choro e lamentação no seu funeral. O único sujeito que não ficou triste com a morte dele foi o gari que varria a praça da catedral pela manhã. Isso porque, no banco em que ele morreu, junto com um punhadinho quase imperceptível de cinzas, uma máscara preta, feita de papel acetinado e o retrato amarelado de uma moça de cerca de vinte anos, ele encontrou duas grossas alianças, que vendeu a um comprador de ouro por duzentos reais.       

João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 20/02/2023


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