João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos

 

O “Pão da Vergonha”

 

Originalmente, a Luz do Criador foi dada a todas as espécies vivas da terra. Esse é o significado da metáfora do Eden, onde todas as espécies viviam em paz, sob o domínio do homem. O pecado de Adão foi o seu Desejo de Receber exercido com egoísmo. Ele quis reter a Luz só para si (ser igual a Deus) e tornar-se também um criador.

Adão era um recipiente da Luz. No Eden tudo estava à disposição dele. Ele recebia a Luz sem precisar fazer nada para isso. Quer dizer, ele não tinha que compartilhá-la com ninguém. Enquanto ele era um ser espiritual, tudo bem. Ele tinha a Luz do Criador como uma qualidade da sua própria alma. Mas a partir do momento em que se tornou um ser humano pelo conhecimento do bem e do mal, ele quebrou o “vaso” no qual a Luz do Criador tinha sido projetada na terra. Daí em diante ele perdeu o direito de receber a Luz sem a correspondente necessidade de compartilhá-la.

O recebimento da Luz sem o devido compartilhamento, na Cabala é chamado de “Pão da Vergonha”. Por isso Deus disse ao casal humano no momento em que os expulsou do Eden: “comerás o pão com o suor do teu rosto até voltares para a terra, de onde fostes tomado.”[1]

A história de Adão e Eva é uma metáfora da criação da vida no universo. É a divisão atômica do genoma que resultou nos dois polos necessários à captura da energia que dá origem à vida. É como diz a filosofia do taoísmo: “conhecendo o masculino e conservando o feminino, a pessoa torna-se uma corrente universal. Tornando-se uma corrente universal, não se sente separada da virtude eterna.”[2]

O “Pão da Vergonha” é pois, o exercício do Desejo de Receber só para sí a Luz do Criador e não compartilhá-la. É receber sem merecer. Por isso a Cabala aconselha a não dar esmolas, nem fazer filantropia só pelo mero desejo de ajudar alguém a superar suas dificuldades ou aliviar as suas dores. A ajuda que podemos dar a alguém deve ser para que ela, por si própria, possa fazer melhores escolhas na vida e assim, ela mesma obter merecimento.

Nietszche também diz isso pela boca do seu Zaratustra: "não sou suficiente pobre para dar esmolas." Todos temos que fazer por merecer. Essa, aliás, é a lei do carma. A cada causa corresponde uma consequência. Podemos ajudar uma pessoa a aliviar a consequência de uma má ação, uma escolha equivocada que ela fez; mas não podemos eliminar a causa que a provocou. Os maus resultados continuarão a acontecer enquanto as causas não forem eliminadas.

Receber sem merecer implica em ser só criatura e não criador, ser consequência e não causa, controlado em vez de controlar, meramente reativo ao invés de proativo. Ao optar por ser humano, Adão escolheu o livre arbítrio. Ele barrou a Luz do Criador para poder fazer brilhar a sua própria Luz. O genial poema de John Milton “O Paraíso Perdido” retrata bem essa intuição. Ao escolher essa alternativa o Criador lhe disse: “tudo bem, faça por merecer. Ganhe o pão com o suor do seu rosto”. E á mulher disse: “multiplicarei o teu sofrer e tua concepção, e com dor dará à luz aos teus filhos”. Porque só assim o ser humano justificaria a sua elevação a criador, fazendo jus à coparceria que ele assumia com o C:riador na construção do edifício universal.

 

Reativo x proativo

 

A fonte do comportamento reativo é nosso Desejo de Receber. Na contrapartida o comportamento proativo é informado pelo Desejo de Compartilhar. 

O Desejo de Receber hospeda arquétipos desejáveis e indesejáveis. São as formas ideais, que segundo Platão, saem do pensamento dos deuses para determinar o comportamento dos homens. Para a moral social os indesejáveis podem ser chamados de vícios e virtudes, e para as religiões de mal e bem. Alguns hóspedes indesejáveis são o ressentimento, o ódio, a inveja, ganância, ciúme, medo, egoísmo, ira, cupidez, preguiça etc. São componentes do nosso Ego, que aderem à nossa alma e a tornam cascuda, impedindo que ela reflita a Luz do Criador.

Da mesma forma os desejáveis são aqueles que concorrem para eliminar essas “cascas” (kelipots) que obstruem a nossa Luz interior. Bondade, Caridade, Sabedoria, Tolerância, Compassividade, Humildade, Justiça, Equidade etc são algumas dessas formas ideais que concorrem para que a nossa Luz interior brilhe com maior intensidade.

O nosso organismo foi construído para reagir aos estímulos que o ambiente nos submete. Esses estímulos nos vêm na forma de dor ou de prazer. Esse comportamento é decorrência do nosso Desejo de Receber. Todos queremos ter prazer e viver sem dor. Mas esse resultado só pode ser obtido com a adoção de um comportamento proativo ao invés de simplesmente reativo.

O comportamento proativo implica em buscar a Luz ao invés de submeter-se à escuridão. Quer dizer: procurar a sabedoria vencendo a ignorância; significa um reencontro com a Luz Infinita do Criador, que é igual a um estado de felicidade plena. É a recuperação das informações constantes do DNA divino que está instalado em nossas almas e que foi contaminado pelas impurezas que a nossa submissão ao Ego nos coloca.

É nesse sentido que a Cabala nos aconselha a agir com coragem e determinação para vencer as dificuldades ao invés de convocar arquétipos indesejáveis, como a raiva, a inveja, a mágoa, autopiedade, o escapismo etc, para nos ajudar a superá-las. Isso porque, ao nos deixar dominar por esses sentimentos estamos permitindo que o controle escape das nossas mãos e sejamos manobrados por fatores externos. Nesse caso, é o Ego que guia as nossas ações e não a alma; é típico comportamento de recipiente e não de emissor. É puro Desejo de Receber sem o Desejo de Compartilhar. E não foi para isso que o Criador nos colocou aqui.

Os arquétipos indesejáveis nos levam a desejar comer o “Pão da Vergonha”. Quer dizer obter prazer sem custo. Receber sem merecer. A prostração neurológica que acompanha uma explosão de raiva, um sentimento de inveja, ciúme ou qualquer outra reação inspirada por um desses arquétipos é um claro exemplo desse fato. O uso de drogas e outras substâncias entorpecentes ou estimulantes também se insere nessa conjuntura. Depois da euforia, a energia artificialmente aliciada é descarregada e o que sobra é a angústia, o estresse, a culpa, a depressão, a prostração neurológica.

É o que acontece com todo prazer obtido à custa de um estímulo externo. Um elogio, um presente, uma conquista feita sem trabalho, sem esforço, pode nos dar um prazer momentâneo. Mas passada a exaltação neural o que sobra é o vazio psicológico provocado pelo “Pão da Vergonha”, ou seja, o Receber sem merecer.

Essa é a razão de a Cabala aconselhar sempre a proatividade. Ao invés de apenas reagir, agir. Porque a reatividade só ataca a consequência, enquanto a proatividade trabalha em cima da causa. É como diz um soneto de nossa autoria publicado no nosso livro “Sonetosofia”.   

 

Se ainda podemos sentir um coração bater
Isso diz que nós ainda estamos bem vivos.
Pois Deus nos deu um dia mais para viver
Não para usar com pensamentos negativos.

 

Respire fundo, encha o peito, erga a fronte,
No que você crê, isso mesmo é o que terá.
Jesus disse ─ Se tens fé, diga a este monte:
Sai daqui, lança-te ao mar: e ele obedecerá.

 

A vida é justa e só nos dará o que pedirmos,
Nunca mais, nunca menos que o acordado;

E os acordos somos nós que os redigimos.
 

Exija da vida tudo que ela tem para lhe dar,
E vá em frente. Mas não espere aí sentado;
Porque ela dá, mas você tem que ir buscar.

 

Excerto do livro " Estrela Flamejante"- Uma Introdução à Cabala Filosófica - No prelo para publicação

 


[1] Gênesis, 3:21

[2] Tao te King-verso, 28

João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 27/04/2023
Alterado em 27/04/2023


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